A ética entre os agrônomos ou Como faz falta o extensionista rural
Desde que assumi meu atual emprego há quase três anos tive a inestimável oportunidade de conhecer de perto e com certa riqueza de detalhes produções de hortaliças em todas as regiões do Brasil, tanto em campo aberto como em cultivo protegido. Uma impressão que tive e cada dia mais tenho é a de que o produtor de hortaliças em geral e por uma série de razões aduba muito mal suas culturas. Em um número recente do Boletim da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo fiquei sabendo que os campos produtores de fruteiras no Brasil também não são muito bem adubados. Não sei dizer nada sobre a fertilização das grandes culturas, então não generalizarei minhas impressões. Infelizmente, esta má adubação de hortaliças e fruteiras é quase invariavelmente sinônima de adubação em excesso. Digo infelizmente porque me parece que é mais fácil corrigir a adubação deficiente do que a excessiva e os impactos ambientais daquela são certamente menores do que os desta.
Como já disse, as causas do uso excessivo de adubo certamente são vários mas tenho notado um tipo de ocorrência que tem me deixado perturbado e triste – a ação de agrônomos recomendando adubos e corretivos quando não há necessidade ou recomendando altas doses quando a necessidade é pequena ou mínima. Sem dúvida, talvez seja lícito em muitos casos pensar-se que não há má fé, há má formação. Mas quando um agrônomo de alguma revenda ou empregado de empresas produtoras de fertilizantes faz isso, a suspeita de má fé não me parece descabida. Pergunto-me se as escolas formadoras de agrônomos têm dado a ênfase necessária à questão da ética na atuação profissional. Esta é uma necessidade premente. Independentemente da causa, se a má formação ou a má fé, permanece o fato de que estão sendo formados ou maus agrônomos ou agrônomos maus, talvez ambos.
Uma outra faceta deste problema, a que me refiro no título, é a escassez e as más condições de trabalho dos extensionistas rurais, profissionais que deveriam levar o melhor da tecnologia e do conhecimento gerado pelas ciências agrárias para o campo. Em um outro texto, infelizmente pouco lido, falei de minha impressão de que muitos dos problemas ambientais e de outras naturezas geradas na e pela agricultura seriam muito reduzidos se tivéssemos no Brasil uma extensão rural tão forte e incentivada quanto a pesquisa agrícola. Já tivemos no Brasil uma Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural, Embrater, mas o ilustríssimo então presidente Fernando Collor de Mello cometeu o crime de extingui-la. Desde então, as empresas estaduais de extensão rural, quando existem, competem de forma ineficiente com os agrônomos e técnicos da iniciativa privada, presumivelmente mais interessados em vender seus produtos do que em realmente informar os agricultores.
Sou um entusiasta de minha profissão e acredito no papel importante da Agronomia na resolução presente e futura do grande desafio de alimentar uma enorme população humana sem destruir e de preferência melhorando o ambiente. Sei que é uma injustiça generalizar-se qualquer tipo de atitude. Creio que há agrônomos honestos e éticos mesmo na iniciativa privada mais competitiva. Mas não há como deixar o papel da extensão rural nas mãos desta mesma iniciativa privada, até porque não raro o mais moderno conhecimento gerado desaconselha o uso de muitos dos produtos vendidos como “a solução para os problemas do campo”.
Mudanças climáticas versus desenvolvimento
A reflexão sobre os impactos das mudanças climáticas globais sobre a agricultura e o inverso tem feito parte constantemente de minhas atividades e atribuições profissionais, principalmente desde o último ano. Tenho dedicado muito esforço intelectual e mesmo físico à questão, tendo me concentrado com um pouco mais de foco às práticas de manejo do agroecossistema que minimizem a emissão de gases de efeito estufa ou mesmo que os sequestrem, as ditas ações mitigadoras, como o plantio direto e a aplicação de carvão como condicionador de solo.
Um colega por quem tenho grande respeito e que trabalha diretamente na área de sustentabilidade agrícola me chocou um tanto hoje ao afirmar que não gostava desta ênfase excessiva nas medidas de mitigação por parte de países em desenvolvimento. Vejam bem, ele não pertence a esta espécie retrógrada que se auto-denomina de “céticos do clima” – ele não tem dúvida que as mudanças climáticas causadas pelo clima são reais. Sua opinião no entanto é de que os países em desenvolvimento, como o Brasil, não deveriam arcar com o ônus da mitigação destas mudanças em detrimento de seu desenvolvimento social e econômico. Para ele, quem deveria arcar com este ônus seriam os países ditos desenvolvidos. Antes que se lancem as pedras, ele não é agrônomo, é um biólogo com doutorado em impacto ambiental.
Não digo que seus argumentos não tenham alguma lógica, mas não posso deixar de pensar que os impactos das mudanças climáticas não se restringirão aos países desenvolvidos. Embora alguns cenários prevejam condições de relativo conforto para a agricultura no sudeste do Brasil, estes mesmos cenários, e talvez evidências atuais, prevêem condições mais que preocupantes para o semi-árido e mesmo para a Amazônia. Por nosso despreparo, talvez venhamos mesmo a sofrer mais as consequências do que os países desenvolvidos. Bem, é uma questão a se pensar, se alguem quiser opinar sobre o assunto, sinta-se à vontade.
O Desafio das Idéias e a Ordem Estabelecida: Um Ensaio
É um grande desafio ter idéias próprias, livres – como diz nosso Amigo Ítalo, usando as palavras de Riobaldo: pensar forro! – É complicado pensar forro.
Não vou considerar como “complicador” o fato de que duas ou mais pessoas possam ter, separadamente, as mesmas idéias – chamo a isso de pressão do conhecimento – pois a cada nova descoberta, um conhecimento vai pressionando o outro e as novas idéias surgem, pipocam, quase que ao mesmo tempo, em pessoas diferentes, em lugares diferentes. Foi mais ou menos assim com Darwin e Alfred Wallace; Mendeleiev e Lothar Meyer; Oparin e Haldane; e muitos outros.
Nesta relação de desafios, não vou considerar também o fato que algumas pessoas possuem uma facilidade, uma capacidade inata de raciocínio, de conclusões lógicas dentro de seu universo de conhecimento. Conheço algumas pessoas assim, que não frequentaram a escola formal, mas possuem uma capacidade de raciocínio lógico, contextualização e síntese acima da média geral.
E é bom lembrar ainda que, além dos desafios, quem se propõe a raciocinar, às vezes pode esbarrar no ridículo e chegar a conclusões medíocres. O que é comum e natural, pois isso faz parte do processo, vem com o pacote. O anedotário da ciência e tecnologia está cheio de frases e posturas equivocadas e famosas de alguns gênios destas áreas. Mas esses pequenos equívocos em nada desabonam seus autores.
Os grandes desafios de ter idéias próprias, aos quais quero me referir, são outros. O primeiro deles são os estudos. É preciso exercitar o cérebro para que ele possa funcionar com desenvoltura. O estudo, além de exercitá-lo, fornece um arsenal de informações que são, no fim das contas, a matéria prima de onde surgem as idéias. Estudar demanda disciplina, tempo e descaso com as vaidades humanas. Daí o grande desafio para a maioria das pessoas que não nasceram gênios. O mundo das vaidades é uma tentação quase irresistível, como argumenta, e se justifica para a esposa, um veterinário amigo meu em relação às suas vaidades: “fui pressionado pela mídia!”
O outro desafio, talvez o maior deles, é que as novas idéias podem esbarrar na ordem estabelecida, ir de encontro, bater de frente com o “sistema”, bater de frente com os dogmas e desafiar o senso comum. E isso já rendeu processos, execrações públicas e mortes na Fogueira do Santo Ofício. Para ficar nos exemplos mais famosos, foi assim com Giordano Bruno, Joana D’Arc, Galileu Galilei e Darwin que, se este não enfrentou A Fogueira, suas idéias enfrentaram e ainda enfrentam o Tribunal do Santo Ofício.
O processo de pensar forro é um grande desafio. É mais fácil seguir o rebanho, não importa para onde ele vá. E assim, vejo o mundo caminhando irremediavelmente na direção do que previu o “visionário” George Orwell, no romance 1984, com o seu Big Brother. Sim! É daí que nasceu o Big Brother da holandesa Endemol.
Vejo meus colegas quase desesperados correndo em busca de “publicações e papers“, sendo pressionados por seus orientadores, pelos departamentos, pelas agências de fomento, pelos concursos públicos, pelo “sistema”. Ninguém quer saber de qualidade, nem de maturidade profissional. O que importa é o número. E quanto mais rápido, melhor! Vejo pouca gente criticando esse processo. E essa pouca gente, até onde sei, resume-se ao Geófagos.
A falta de bom senso é tanta que, recentemente, participei de um concurso público para docente de uma universidade federal em que a prova escrita tinha peso 4. A pessoa que passou no concurso não ficou entre os primeiros colocados na prova didática. Não estou querendo dizer que um bom professor não necessite saber escrever bem, ao contrário, mas não estamos selecionando alguém para a Academia de Letras, e sim para professor. Então, se era preciso atribuir peso, deveria ser para a prova didática. É o que me parece óbvio. Fui o segundo colocado na prova didática, mas quando ponderaram a nota do currículo, fui DESCLASSIFICADO. Eu não tinha um “currículo bom” na avaliação deles. Classificaram três pessoas e meu nome nem apareceu na lista. Meus 12 anos de efetivo serviço de docência e extensão rural não serviram para nada, pois são anteriores a cinco anos, a data limite que estabeleceram. Não estou querendo dizer que eu deveria ter sido classificado apenas porque tirei boa nota na prova didática, mas sim que a coisa fosse feita com coerência, razão e bom senso.
Acabei de assistir a um filme chamado Austrália. Falaram muito mal desse filme, por razões de clichês e outras filigranas. É um filme mediano na minha avaliação, mas traz nos diálogos uma frase memorável e forte: “não é porque é assim, que deveria ser assim!” Vejo o mundo caminhando na direção oposta desta consciência. Não vejo nada de bom nisso. Mas posso, talvez, estar equivocado!
Ciência e Subjetividade!
Nobres colegas!
Estou com a versão definitiva de minha tese pronta para a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFV, ou seja, com isso vou cumprir com o último dos “doze trabalhos” desta fase da vida, que escolhi e que me trouxe muita satisfação pessoal.
Aproveito para dizer, em tom de nostalgia e saudade, esse “charme brasileiro de alguém sozinho a cismar”, que tenho uma enorme dívida de gratidão com a Serra do Cipó. Dívida esta que eu mesmo me atribuí, pois a Serra, metaforicamente falando, não me cobrou nada, nem a admiração por aquela beleza surpreendente. Peço licença para saldar um pouco dessa dívida aqui. É certo que precisamos separar o que é ciência, necessária e objetiva, do que é subjetivo, adverbial, e lúdico. Mas, por favor, estas coisas não precisam ser díspares, adversas, opostas. Elas podem, e devem, conviver de forma independente e sadia, mas dando-se à virtude, numa atitude ética e oportuna, do auxílio mútuo, enquanto fatores da evolução humana.
Digo isso porque estas duas atitudes se aproximaram de forma bastante imperativa durante o meu trabalho na Serra do Cipó. Quando conheci a Serra, no curso do meu doutorado, inevitavelmente o primeiro modelo que se construiu sob minha percepção foi subjetivo. Depois, numa tentativa de desvendar a matemática por trás daquela beleza toda, vieram as análises, correlações e conclusões objetivas, científicas, necessárias. A ciência é necessária!
E assim, depois da tese pronta, das conclusões revistas, pensei: é insatisfatório, além de injusto, que se desenvolva uma pesquisa científica em um lugar como a Serra do Cipó e tal trabalho, embora necessariamente objetivo, não revele de alguma forma, em algum canto ou parágrafo, que o seu autor não foi apenas um pesquisador-observador frio, mecanicista, que não enxergou ali nada mais do que fatores ambientais e a convergência de variáveis pedobioclimáticas. A Serra do Cipó não merece isso, assim como muitas outras riquezas naturais desse Brasilão imenso, e do mundo.
Daí, senhores, eu me senti na obrigação moral e ética de manifestar o meu entendimento pessoal, subjetivo, adverbial, em relação à Serra. Em uma página da tese, anterior aos agradecimentos (pois não realizei o trabalho sozinho), eu registrei essa percepção. Dei-lhe o título de A Serra do Rio Cipó. Peço licença, de novo, para disponibilizá-la aqui no Geófagos:
A Serra do Rio Cipó, na Cordilheira do Espinhaço, em Minas Gerais, é um ambiente extremamente peculiar. Há ali uma convergência de fatores ambientais, geológicos, geomorfológicos, pedológicos, fitofisionômicos e climáticos, que moldam um sistema admirável. É um ambiente pobre em recursos químicos, no que tange aos solos e às rochas que lhes dão origem. No entanto, é um sistema que compõe uma paisagem espantosamente bela, apresentando geoambientes diversos, que se sucedem em curtos espaços ao longo da Serra, formando gradientes de campos graminosos, matas de candeia e capões florestais.
Quando se analisa aquela composição ambiental com o olhar objetivo e necessário da ciência, esbarra-se com um contraste, que se manifesta em um aparente paradoxo. O sistema é pobre, paupérrimo, em recursos químicos do ponto de vista nutricional, no que reza a cartilha da fertilidade do solo com seu viés agronômico, embasado na filosofia mecanicista. Mas ali estão irrecusáveis, diante dos olhos, os capões de mata, as vochysias, candeias, byrsonimas, velózias, paepalanthus, richiteragos, lavoisieras, marcétias, microlícias e muitos outros gêneros de plantas que se desenvolvem impávidas. Quando florescem, elas apresentam seus indescritíveis canteiros naturais, colorindo a Serra com variadas tintas.
A quem se dá o prazer (ou não) de enxergar esse fato, a natureza é imperativa, mostrando de forma inquestionável que a pobreza é um conceito relativo, restando-nos, da surpresa, o deslumbramento, pois é impossível ser indiferente diante daquela paisagem.
No Divã do Geófagos: o Geófagos também é terapia!
Nosso amigo Manuel, que muito nos honra com sua presença constante no Geófagos, muito apropriadamente qualificou de “peregrinação” as minhas andanças dos últimos tempos. Já fiz outras peregrinações além destas últimas. Sinto-me razoavelmente qualificado para falar deste assunto.
Tenho visto, entre colegas e professores das universidades, pessoas que desconhecem a realidade do Brasil, desconhecem as carências, as dificuldades que os brasileiros mais humildes enfrentam. Podem até ter alguma informação a respeito, mas não esbarraram com isso na prática. Existe um importante Brasil rico, de que falei no texto passado, mas existe outro, o Brasil carente, que conheço e reconheço ao longo de minha vida.
No início de minha pós-graduação eu assistia a um excelente seminário de um grande amigo nosso, pessoa muitíssimo cara ao Geófagos. Ele falava sobre os fitólitos, assunto interessante, curioso e de grande relevância acadêmica em diversas áreas. Uma “autoridade” do Departamento de Solos da UFV questionou-o sobre a “aplicação social prática” de seu estudo. Eu esperei impacientemente que alguém da platéia lhe desse (à “autoridade”) uma resposta à altura. Havia gente gabaritada para isso lá. Eu era um “calouro” ali naquele momento. Não me manifestei, embora todos os Anjos e Demônios que me acompanham me impelissem para isso. Eu tinha, e tenho, a dizer àquela “autoridade” que ela nos apontasse uma, apenas uma “aplicação social prática” da Teoria da Relatividade, da Teoria da Evolução, entre outros tantos exemplos, como o Raio Laser, que quando foi inventado dizia-se que era uma solução sem problema (isso é histórico). Nada pode pautar a Ciência, exceto a ética, mesmo assim, em alguns poucos casos onde isso se faz necessário. A Ciência pode, e deve, colaborar nas questões sociais, mas quem tem o dever de resolvê-las é a administração pública, é o setor político-administrativo, são os Três Poderes da República no Brasil.
Estou tecendo este comentário porque estive com estes dois Brasis nesta minha atual peregrinação. Mas esta não é a primeira vez que os encontro. Minha biografia e meu currículo lattes mostram e confirmam isso.
Recomendo aos amigos, colegas e aos simpatizantes do Geófagos, que não percam a oportunidade de conhecer o Brasil. Aproveitem uma de suas férias e viajem de ônibus pelo Brasil afora, não fica caro. Repito, não pode ser de avião ou automóvel, é preciso viajar de ônibus, preferencialmente nos mais humildes, de localidades distantes, para encontrar e reconhecer o Brasil de que falo.
No meu retorno de Jataí, em Goiás, para Viçosa, viajei no Gontijo 11240, linha de Porto Velho a Mantena. Recomendo também o Expresso Linhares, de Jaboticatubas, na Serra do Cipó, ou a Viação Araguarina de Goiás. Tais viagens serão muito proveitosas se forem realizadas como complemento ao melhor dos exercícios, que é trabalhar com Extensão Rural em municípios com menos de 10.000 habitantes.
A peregrinação voluntária, em busca de sabedoria, pode nos ajudar muito. Pode ajudar a ponderar nossas atitudes pessoais e ponderar o exercício de nossa vida profissional. Mas tenha cuidado. O seu “Caminho de Santiago de Compostela” só terá validade se você estiver atento ao que busca. Senão você pode sair de lá pior do que quando entrou!