Ainda sobre excessos, extensionistas e divulgação científica sobre solos

Não fiquei muito satisfeito com meu post anterior, no qual discorri sobre certas questões éticas no exercício da profissão de agrônomo. Gostaria de elaborar um pouco mais sobre os problemas levantados, lançando mão de alguns exemplos reais que podem esclarecer minhas preocupações sobre este assunto.
Como comentei anteriormente, tem me preocupado muito o problema do excesso no uso de fertilizantes pelos produtores de hortaliças nas várias regiões do Brasil. Uma leitora e colega blogueira corretamente apontou a solução mais óbvia – mostrar aos agricultores, através da análise química do solo, que já há nutrientes em quantidade adequada ou demasiada e eles não adubarão mais. Acontece que é exatamente isto o que eu e muitos outros colegas temos feito ultimamente, mas o problema não parece ter diminuído. Muitos agricultores, mesmo de posse de uma análise de solo e de um laudo de agrônomo, agarram-se a um tipo de “princípio de precaução” que os leva a adubar (ou irrigar) seus campos mesmo quando assegurados de que não há necessidade. Mas esse é um problema que aflige até mesmo alguns agrônomos.
Há alguns meses assisti um agrônomo responsável pela área de produção de alho de uma grande empresa agrícola afirmar que periodicamente aplicava em torno de 12 toneladas de calcário por hectare apesar de sua análise de solo mostrar que a necessidade real era em torno de 10 vezes menos do que isso. Segundo ele, como sua cultura “não morreu”, os pesquisadores da empresa onde trabalho deveriam rever as recomendações. Em um outro trecho da conversa, o mesmo profissional nos disse que aplicava uma alta dose de fósforo, anualmente e desconsiderando as recomendações, que outros produtores aplicam em culturas que atingem produtividade de mais de 100 toneladas por hectare. Acontece que a produtividade do alho deste senhor não chega a 25 toneladas por hectare. Novamente ele sugeriu que nós pesquisadores precisaríamos refazer nossas pesquisas. Um agrônomo de uma grande empresa aplicando uma dose desproporcionalmente maior do que a necessária, novamente pelo “princípio de precaução”.
Minha preocupação com o uso excessivo de insumos agrícolas é tanto ambiental quanto econômica. Eu esperaria que aqueles diretamente envolvidos com a produção agrícola se preocupassem pelo menos com o aspecto econômico do problema. O uso de quantidades desnecessárias de insumo representa claramente um gasto extra e encarece a produção bem como o preço final do produto. Se apenas produtores cometessem este erro, eu entenderia a questão como mera falha de comunicação e divulgação, possivelmente pelo descaso com a extensão rural no Brasil, do qual falei neste texto e neste. O fato de técnicos agrícolas, agrônomos e mesmo pesquisadores da área agrícola cometerem o mesmo erro me leva a pensar que há também um problema de má formação. O que não sei é se é um problema na formação em solos ou na formação agronômica como um todo. Em qualquer dos casos, é necessário que tenhamos atenção nesta dificuldade, nesta falha técnica recorrente.

Volto à sugestão feita pelo agrônomo produtor de alho citado acima e sua sugestão de que refizéssemos as pesquisas relativas às necessidades de nutrição das hortaliças. Não direi que tudo está resolvido e solucionado em termos de nutrição de plantas. Se isto fosse verdade, aliás, meu emprego seria um gasto de dinheiro público desnecessário. Não, nem tudo está solucionado. Mas se, como sugerido, refizéssemos nossas pesquisas para mostrar que aplicar 12 toneladas por hectare de calcário a um solo com pH de 6,0, adicionar 4 toneladas por hectare de calcário a um solo com 13cmolc/dm3 de cálcio, utilizar a mesma dose de fósforo em uma cultura que produz 20 toneladas por hectare que utilizaríamos em uma cultura que produz 100 toneladas por hectare, estaríamos não só redescobrindo a roda, mas dando um atestado de incompetência. Realmente, desde que entrei na empresa na qual atualmente trabalho, tenho tido a impressão de que boa parte das demandas de pesquisa que nos chegam já têm soluções tecnológicas disponíveis. Sob o risco de parecer repetitivo, para estes problemas, muito mais do que pesquisa, é essencial uma extensão rural estatal e não-ideológica.
Além disto tudo, parece-me também que falta de nossa parte, nós profissionais da Ciência do Solo, uma maior atividade de divulgação de nossa ciência. E falo em divulgação para leigos, não apenas a produção de artigos científicos em periódicos especializados, sob o risco de nossas pesquisas parecerem irrelevantes ou inexistentes para a sociedade. Digo mais: parece-me que estamos sendo ineficientes em divulgar a Ciência do Solo de forma acessível até para os profissionais das Ciências Agrárias. Se não melhorarmos nossa performance, corremos o risco de continuarmos a ser cobrados a pesquisar o óbvio.

A ética entre os agrônomos ou Como faz falta o extensionista rural

Desde que assumi meu atual emprego há quase três anos tive a inestimável oportunidade de conhecer de perto e com certa riqueza de detalhes produções de hortaliças em todas as regiões do Brasil, tanto em campo aberto como em cultivo protegido. Uma impressão que tive e cada dia mais tenho é a de que o produtor de hortaliças em geral e por uma série de razões aduba muito mal suas culturas. Em um número recente do Boletim da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo fiquei sabendo que os campos produtores de fruteiras no Brasil também não são muito bem adubados. Não sei dizer nada sobre a fertilização das grandes culturas, então não generalizarei minhas impressões. Infelizmente, esta má adubação de hortaliças e fruteiras é quase invariavelmente sinônima de adubação em excesso. Digo infelizmente porque me parece que é mais fácil corrigir a adubação deficiente do que a excessiva e os impactos ambientais daquela são certamente menores do que os desta.
Como já disse, as causas do uso excessivo de adubo certamente são vários mas tenho notado um tipo de ocorrência que tem me deixado perturbado e triste – a ação de agrônomos recomendando adubos e corretivos quando não há necessidade ou recomendando altas doses quando a necessidade é pequena ou mínima. Sem dúvida, talvez seja lícito em muitos casos pensar-se que não há má fé, há má formação. Mas quando um agrônomo de alguma revenda ou empregado de empresas produtoras de fertilizantes faz isso, a suspeita de má fé não me parece descabida. Pergunto-me se as escolas formadoras de agrônomos têm dado a ênfase necessária à questão da ética na atuação profissional. Esta é uma necessidade premente. Independentemente da causa, se a má formação ou a má fé, permanece o fato de que estão sendo formados ou maus agrônomos ou agrônomos maus, talvez ambos.
Uma outra faceta deste problema, a que me refiro no título, é a escassez e as más condições de trabalho dos extensionistas rurais, profissionais que deveriam levar o melhor da tecnologia e do conhecimento gerado pelas ciências agrárias para o campo. Em um outro texto, infelizmente pouco lido, falei de minha impressão de que muitos dos problemas ambientais e de outras naturezas geradas na e pela agricultura seriam muito reduzidos se tivéssemos no Brasil uma extensão rural tão forte e incentivada quanto a pesquisa agrícola. Já tivemos no Brasil uma Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural, Embrater, mas o ilustríssimo então presidente Fernando Collor de Mello cometeu o crime de extingui-la. Desde então, as empresas estaduais de extensão rural, quando existem, competem de forma ineficiente com os agrônomos e técnicos da iniciativa privada, presumivelmente mais interessados em vender seus produtos do que em realmente informar os agricultores.
Sou um entusiasta de minha profissão e acredito no papel importante da Agronomia na resolução presente e futura do grande desafio de alimentar uma enorme população humana sem destruir e de preferência melhorando o ambiente. Sei que é uma injustiça generalizar-se qualquer tipo de atitude. Creio que há agrônomos honestos e éticos mesmo na iniciativa privada mais competitiva. Mas não há como deixar o papel da extensão rural nas mãos desta mesma iniciativa privada, até porque não raro o mais moderno conhecimento gerado desaconselha o uso de muitos dos produtos vendidos como “a solução para os problemas do campo”.

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