Que a terra mostre meus erros

Alguns fiéis leitores do Geófagos, além de fiéis comentadores são quase colaboradores permanentes. O Sr. Manuel, um agrônomo português que sempre nos honra com relevantes comentários, narrou há pouco um caso interessante ocorrido certamente durante sua atuação profissional: uma generalizada deficiência do micronutriente maganês em videiras de certa região portuguesa em solos em que a falta deste nutriente não seria esperada.
Coincidentemente, durante o curto período em que trabalhei em uma empresa de adubos no interior de Minas Gerais, observei, em um pomar de laranjeiras, o claro sintoma foliar de falta de ferro, um outro micronutriente metálico, em um solo em que talvez fosse mais lógico encontrar excesso de ferro. Apesar da distância geográfica, das diferenças entre espécies e solos, em ambos os casos o agente causador da falta dos dois micronutrientes nestas folhas foi o mesmo: o calcário.

Sintoma de deficiência de manganês em planta ornamental:

Manganês.jpg

Sintoma de deficiência de ferro em cafeeiro:

Ferro.jpg
Alguem mais atento aos fatos da agricultura estranhará o que disse, afinal o calcário não é em geral utilizado como um melhorador das condições químicas do solo? Verdade, mas como afirma o dito popular, até os remédios podem ser venenos, dependendo da dose. O calcário, majoritariamente composto de carbonato de cálcio (CaCO3) é largamente utilizado em solos ácidos de regiões tropicais para corrigir a acidez e, principalmente, tornar indisponível o íon alumínio (Al3+), extremamente tóxico à maioria das plantas e muito solúvel sob condições de baixo pH, como nos Latossolos dos Cerrados. Basicamente, a reação que leva à correção da acidez do solo é a seguinte:
CaCO3 + H2O = Ca2+ + HCO3 + OH-
O íon OH-, hidroxila, além de reagir com os íons H+, diminuindo a acidez, reagem também com o alumínio, da seguinte forma:
Al3+ + 3OH- = Al(OH)3
O hidróxido de alumínio (Al(OH)3) é bastante insolúvel, ficando o alumínio assim numa forma pouco disponível para as plantas, anulando seu efeito tóxico. Mas as hidroxilas não são seletivas, não reagem apenas com o alumínio – podem reagir também com outros cátions metálicos que não são tóxicos ou até mesmo com nutrientes:
Fe3+ + 3OH- = Fe(OH)3
Mn2+ + 4OH- = MnO2 + 2H2O + 2e-
Tanto o hidróxido de ferro quanto o óxido de manganês são insolúveis, tornando estes dois nutrientes indisponíveis às plantas e causando os sintomas de deficiência. Isto é comum em plantios onde a calagem (aplicação agrícola do calcário) é feita de forma incorreta, em excesso, em geral porque não se faz a análise química do solo para a correta recomendação da calagem. Foi exatamente isso o que ocorreu no pomar de laranjeiras ao qual me referi acima: um agrônomo inexperiente ou descuidado recomendou a aplicação de calcário “no olho”, por adivinhação, e recomendou em excesso. O pH do solo subiu demais e o micronutriente ferro ficou indisponível às plantas, na forma insolúvel de hidróxido de ferro.
No caso das videiras do senhor Manuel, apesar de o calcário também ter sido o “culpado”, a história foi um tanto diferente e curiosa. Dou a palavra ao agrônomo português:
“O solo,aparentemente,tinha,porém,manganésio para dar e vender,assim se pode dizer. Só que estava muito pouco disponível. Coisas que acontecem quando sucedem outras coisas. E o que tinha acontecido? Anos atrás, as estradas eram de macadame calcário. A passagem de carros e carretas levantava nuvens de poeira calcária,que o vento dominante se encarregava de ir depositando,sobretudo, numa das bermas. E calcário a mais faz das suas e,neste caso particular,levou o manganésio a um estado muito menos solúvel.”
Como se costuma dizer nas escolas de agronomia, os médicos têm uma clara vantagem sobre os agrônomos: seus erros são encobertos pela terra. Os erros dos agrônomos, a terra mostra.

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