Seqüestro de carbono pela agricultura

Comentei no post anterior que se tem tentado manipular o ciclo biogeoquímico do carbono. Como espero que tenha ficado claro, esta manipulação visa diminuir ou estancar o aumento nas concentrações atmosféricas dos gases de efeito estufa CO2 e CH4, principalmente o primeiro. Historicamente, das práticas humanas maiores contribuidoras de gás carbônico para a atmosfera, a agricultura se sobressai. Derrubadas e queima de florestas para estabelecimento de novos campos e práticas consolidadas como aração e gradagem dos solos contribuem enormemente com o aumento da concentração de CO2 na atmosfera terrestre. Atualmente um número considerável de técnicas agrícolas têm sido desenvolvidas com o objetivo, primeiro, de otimizar a produção agrícola mas com o efeito secundário (e desejável) de diminuir a oxidação da matéria orgânica do solo, grande depositório de carbono. As tradicionais práticas de revolvimento do solo (aração, gradagem, subsolagem…) usadas para favorecer o desenvolvimento de culturas agrícolas apresentam o inconveniente de acelerar a decomposição da matéria orgânica do solo. Estas práticas melhoram superficialmente a oxigenação do solo, quebram agregados que protegem fisicamente partículas de matéria orgânica e fracionam o material vegetal morto, o que facilita a ação dos microrganismos decompositores. As práticas modernamente utilizadas que podem auxiliar não só na diminuição desta decomposição mas até mesmo no aumento nos teores de matéria orgânica nos solos em geral envolvem a diminuição ou quase completa eliminação do revolvimento (movimentação) do solo. O exemplo típico disto é a adoção do plantio direto, em que os restos de culturas são deixados sobre o solo após as colheitas.

Ciclos biogeoquímicos

A trajetória do átomo de carbono narrada por Primo Levi em sua Tabela Periódica é um exemplo, claramente literário e muito simplificado, de um ciclo biogeoquímico. Resumidamente, a ciclagem biogeoquímica de um elemento é o caminho percorrido pelo mesmo no planeta passando por compartimentos biológicos (os organismos) e por compartimentos não biológicos (solos, sedimentos, rochas e magma) ao longo da história geológica da Terra. Obviamente, a ciclagem biogeoquímica só ocorre onde há vida (bio), senão haveria apenas uma ciclagem geoquímica, como ocorreu por uma boa parte da história da Terra, antes que os primeiros organismos surgissem. Atualmente, em tempos de aquecimento global, o ciclo biogeoquímico mais estudado e sobre o qual mais se tenta fazer manipulações é exatamente o do carbono. Os dois gases de efeito estufa mais importantes, gás carbônico (CO2) e metano (CH4) podem ser considerados como duas fases do ciclo biogeoquímico do carbono. Os combustíveis fósseis (petróleo e carvão mineral, principalmente) são basicamente compostos de carbono que hoje fazem parte do compartimento geológico mas já pertenceram ao compartimento biológico, ou seja, a energia hoje gerada pela combustão destes materiais foi energia fixada pela fotossíntese de algas unicelulares (petróleo) e de vegetais superiores (carvão) há milhões de anos. A fotossíntese é a transformação do CO2 que os organismos autotróficos (que sintetizam seu próprio alimento) absorvem da atmosfera em compostos orgânicos, principalmente açúcares (C6H12O6), e esta transformação só é possível porque os organismos fotossintetizantes conseguem capturar e utilizar a energia do sol (fotos é luz em grego). Quando estes organismos morrem ou perdem suas partes, como quando as plantas deixam cair as folhas, por exemplo, este material pode ser totalmente decomposto, e volta a se transformar em CO2, ou sofre algumas transformações e se transforma no que chamamos de matéria orgânica (do solo, de sedimentos, da água). Esta matéria orgânica é em geral difícil de ser decomposta, principalmente se levada pelas águas e depositadas no fundo de lagos ou mesmo do mar: dificilmente os microrganismos conseguem degradá-la, por isso se diz que o carbono na forma orgânica está seqüestrado, ele está temporariamente indisponível para os microrganismos decompositores retirarem a energia de suas ligações e oxidá-lo a gás carbônico. Ao longo do tempo geológico, a matéria orgânica vai se depositando no fundo de corpos d’água e sofre transformações químicas tornando-se cada vez mais resistente à decomposição e muito lentamente se transforma em petróleo ou carvão, de maneira que o material orgânico produzido por organismos vivos passa a fazer parte do compartimento geológico. Além disso, o CO2 pode ser utilizado por organismos marinhos na síntese de exosqueletos calcários (conchas e outras estruturas), compostas basicamente de carbonato de cálcio ou calcário (CaCO3). Após a morte destes organismos, este material deposita-se (sedimenta) no fundo do mar por milhões de anos até que ocorre a litificação deste material, isto é, este material, cada vez mais pesado devido às sucessivas camadas, se transforma em rocha (esta é a via biológica da formação das rochas calcárias, também há vias não biológicas), por causa principalmente da pressão: este carbono também está seqüestrado no compartimento geológico, porque não voltará à atmosfera na forma de CO2 por muito tempo.

Fotodegradação de carbono em semi-árido

No dia 03 de agosto postei um comentário rápido sobre um trabalho publicado na Nature avaliando a decomposição do carbono do litter (liteira ou serapilheira, o material vegetal que cai sobre o solo) em clima semi-árido da Patagônia na Argentina. Gostaria agora de fazer umas considerações mais longas sobre o assunto. Em geral se aprende que o aumento de umidade e temperatura aumentam a atividade decompositora dos microrganismos do solo, responsáveis pela oxidação biológica (decomposição) da matéria orgânica que de outra forma se acumularia indefinidamente e as propriedades químicas e físicas dos solos seriam afetadas, geralmente de forma negativa, impossibilitando ou dificultando muito o crescimento vegetal. Uma conclusão lógica a que se chegaria é que em regiões semi-áridas em que a temperatura é alta mas há limitação severa de água, indispensável para a atividade microbiana, o material vegetal que cai ao solo deveria estar sendo só parcialmente decomposto, com uma acumulação líquida de matéria orgânica no solo. Não é o que acontece. No artigo referido os autores observaram que o principal fator ambiental influenciando a degradação do carbono sobre o solo naquela região semi-árida era a radiação solar, notadamente a radiação UV-B, independente da quantidade de microrganismos ou da disponibilidade de nutrientes (carbono de fácil decomposição e nitrogênio). Nas regiões semi-áridas parece que a correlação entre umidade e matéria orgânica do solo é fraca, ao contrário de regiões mais úmidas. O trabalho deixa razoavelmente claro que o sombreamento do solo, quer seja por uma cobertura vegetal mais densa, quer por maior nebulosidade, provavelmente é mais importante para que haja maiores teores de matéria orgânica no solo de regiões semi-áridas do que a própria pluviosidade. Mais um bom motivo para se combater o desmatamento no Nordeste brasileiro.

Carbono em Semi-árido

Na edição de hoje da Nature há um artigo sobre mineralização de carbono de litter na Patagônia, sob clima semi-árido. Os autores observaram mineralização do carbono orgânico por fotodegradação, ou seja, não houve decomposição do material orgânico por microrganismos, mas uma “queima” direta pela luz solar, de forma que este carbono não contribuiu para a matéria orgânica do solo. Imaginem o que ocorreria com a diminuição da nebulosidade em regiões semi-áridas. O clima semi-árido da Patagônia não é, obviamente, igual ao do Nordeste brasileiro, então generalizações inconseqüentes não devem ser feitas, mas é possível que a fotodegradação seja um processo importante em outras regiões sob semi-aridez.

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