No tempo do agora

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Casal de camponeses
Vincent Van Gogh 

Jean Baudrillard saiu da minha estante hoje. Não abria as páginas de “O sistema dos objetos” desde 1997, conforme última anotação, a lápis, nas páginas derradeiras do livro. É curioso como me surpreendo, de tempos em tempos, com pequenas notas por mim feitas no momento da leitura. Algumas tornaram-se ininteligívies, pois temos – ou o tenho eu  – o costume de acreditar que, as ideias e relações estabelecidas naquele particular momento, serão para sempre imortalizadas em nossa memória. No livro de Baudrillard, li a seguinte nota: “revolução industrial; sol; tez.”  Não sem esforço, pude rememorar o significado daquelas palavras. No período pré-revolução industrial, a economia era essencialmente agrícola, o que tornava a tez dos donos dos meios de produção nada ou quase nada bronzeada, pois mantinham-se abrigados do sol enquanto os camponeses sofriam a agressão direta dos raios ultravioleta. Com o advento das fábricas, tornou-se necessária a imediata diferenciação entre o dono do capital e os seus subordinados. Pois eis que não se inverteram os papéis mas se inverteu a tez: nas fábricas, onde chegavam pela madrugada e só saiam quando a noite já havia avançado, os trabalhadores empalideceram. Por outro lado, os burgueses (não me recrimine pela palavra, caro leitor) se postaram ao sol. Na mesma página, outra anotação, mais prolixa: “As sociedades, desde tempos imemoriais, sempre estabeleceram meios de tornar patente a existência de categorias hierárquicas.” Lembrei-me bem o que quis dizer. No tempo do agora, é o consumo que, fetichizado, estabelece a hierarquia. No tempo do agora. Infelizmente.                         

Vampiros

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Castelo de Bran, Transilvânia

A onda das sagas vampirescas parece não ter fim. Desde as prateleiras das livrarias até as salas de cinema, passando pelas vitrines de lojas de roupas para adolescentes e revistas de fofoca, há uma verdadeira invasão. Não assisti aos filmes e nem li os livros que tratam do tema, embora isso não invalide as minhas opiniões a respeito do fenômeno. Antes de mais nada, precisamos analisar a mítica figura do vampiro e a razão contextualizada de seu sucesso em pleno século XXI. Ora, os predicados encarnados pelo conde Drácula são irresistíveis: imortalidade e sex appeal. Temos, acesso
riamente, a forma esbelta, que, não nos esqueçamos, é moldada às custas de sangue humano, e o poder de encantamento de animais noturnos. Em uma sociedade que valoriza cada vez mais a juventude, o vigor sexual, o corpo sarado e as explicações místico-religiosas para os fenômenos naturais e evolutivos, nenhuma surpresa causa o triunfo da figura diabolicamente sedutora do vampiro. Li que há jovens que conhecem em detalhes inacreditáveis tudo o que diz respeito a tal série de Stephenie Meyer – Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse e Amanhecer. Existem, até mesmo, relatos de pacto de sangue envolvendo adolescentes e a fidelidade a preceitos “vampirescos”. Lembrei-me destes versos do poeta maldito François Villon:

“Príncipe, eu sei, de tudo estou a par,
Conheço os de tez branca ou de carmim,
Sei que a Morte vem tudo consumar,
Tudo conheço, caso exclua a mim.”

Será assim? Esses jovens conhecem tudo, menos a eles próprios?                          
   

Ler

Acredito que o desfrute de certos autores, o mesmo valendo em relação a compositores, é um processo lento, sem fim, alinhavado pelas experiências de leituras sucessivas e, claro, pelas experiências de vida. Ninguém começa – pelo menos não deveria – por James Joyce ou J.L. Borges a deleitosa jornada da leitura. Passei por muito Monteiro Lobato e um pouco de Júlio Verne. Descobri, depois, a coleção “Para gostar de ler”, que reunia crônicas de três dos “quatro cavaleiros do apocalipse”, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, além de outro ilustre mineiro, Carlos Drummond de Andrade. Lembro-me como se fosse hoje quando, ao voltar da escola, ainda dentro do ônibus, abri o livro na página de uma crônica de Drummond intitulada “Recalcitrante”. Como um foguete, assim que cheguei em casa, corri até a estante e abri o Aurélio:”adj.2g.s.2g. que ou aquele que recalcitra, que resiste obstinadamente”. A adolescência me trouxe Machado de Assis – por prazer e obrigação-, Eça de Queirós – por obrigação e prazer, inicialmente nessa ordem- , George Orwell e Guimarães Rosa – então um choque para os meus padrões conservadores de linguagem -, dentre outros. Atrevi-me a folhear livros de filosofia, sem muito entusiasmo. A exceção foi Platão, que me prendeu com os diálogos de “A República” que descobri num volume amarelado de meu pai. Minha vida de leitor se incrementou depois do contato com a professora de literatura Walquíria, no primeiro colegial. Alicerçadas as bases,  o caminho estava pronto para os livros. Descobrir, escolher, ler, apreender, reler e opinar. Certa passagem também ficou para sempre gravada em minha memória. Aos 11 anos, recebemos, na escola, a visita do escritor Ignácio de Loyola Brandão. Ele falou sobre a sua infância em Araraquara, sobre coisas de criança e, claro, sobre livros. A sua alegria e emoção ao falar me contagiaram. Naquele dia, cheguei em casa com uma decisão definitiva: a leitura sempre seria a minha companheira. Cara professora Walquíria, caro Ignácio, se este post chegar até vocês, recebam a minha perene e sempre insuficiente gratidão.       

P.S.: Estive na Argentina, sem tempo para o blog. Peço a compreensão dos fiéis leitores.
                    

Horowitz plays Mozart piano concerto 23 2nd mov

Desaparecer



Labirint
Labirint

O último livro do escritor catalão Enrique Vila-Matas acaba de ser publicado no Brasil. “Doutor Pasavento” (Cosac Naify, 410 páginas) trata do desaparecimento do sujeito e do ato de escrever como artifício para se ausentar de si mesmo. Recheado de eruditas e bem humoradas citações, Vila-Matas percorre o tema desde o imperador romano Tibério até Robert Walser e – claro – J.D. Salinger. Em seu ensaio-romance anterior, “Bartleby e companhia”, o assunto já havia sido abordado, ainda que com outro enfoque. Parece que, assim como os recorrentes tigres e labirintos de Borges, o  catalão é obcecado pela ideia de desaparecer e existir apenas na amorfa e anônima multidão, reflexão mais do que oportuna na atual era da celebrização a qualquer preço. Paradoxalmente, Vila-Matas assinala a perenidade da obra, que abrigaria a sombra quase esquecida do voluntário recluso autor. Citando o poeta sírio Adonis, o paradoxo está desfeito e esclarecido: “Todos esses mortos ao nosso redor,/ onde sepultá-los senão na linguagem?”. Ou, como diria o escritor brasileiro Pedro Maciel, “o leitor é mais importante do que o autor”.

Doutor Pasavento roubou minha voz. Parece que após algum tempo sem falar perdemos a vontade de assim o fazer. E percebemos que não há nada para dizer. Tudo já foi dito. Tudo é irrelevante. Calemo-nos.

Oxímoro dominical

Ando sem tempo. Para os pragmáticos, nada mais que indisciplina. Para os místicos, inferno astral. Para mim, um pouco dos dois. Seja lá qual for a razão, passei o domingo sem nenhuma pausa livre para o blog. No rádio, por acaso, uma canção de Lenine chamou a minha atenção. Paciência. Vontade de parar tudo, fugir do caos de São Paulo meio a la Bouvard e Pécuchet ou a la Jack Kerouac. Entendi o que quis dizer Manoel de Barros com o verso “não aguento ser um sujeito que olha o relógio”. É isto – sou um escravo do relógio. Reificação absoluta; as coisas têm a mim e eu não as tenho. Será lúcida essa loucura imposta pelas coisas? Apenas um oxímoro, talvez. A ciência já comprovou: inferno astral tem fim. Ou será só mais um oxímoro?

Paciencia – Lenine

Carnaval: canto de paz?


Jovem defendendo-se de Eros
(Bouguereau, 1825-1905)

Acho que foi em alguma crônica do Mário Prata, não me lembro ao certo. Li a provável origem da palavra carnaval, uma corruptela da expressão latina “Currus navalis“. Nos idos da antiga Roma, após o período de construção de barcos que ocorria de abril a janeiro, no mês de fevereiro os “carros navais” eram levados até a água. A procissão era acompanhada pela cantoria de uma multidão de romanos enfeitados e embriagados – a perfeita comunhão de Eros e Baco. (Em se tratando de romanos, talvez o mais correto fosse dizer Cupido e Baco). Exceção feita aos barcos, o carnaval continua sendo a festa desses dois deuses. Mas não nos esqueçamos que Eros é filho de Caos e, como diz a sabedoria popular, quem sai aos seus não degenera. Para mim é isto: carnaval é a antropomorfização do caos. Nada mais prudente do que manter distância de tudo que se refira a ele. Não há sociologia nenhuma que me convença do contrário. Sou mais apolíneo que dionisíaco, ainda que consiga enxergar a beleza da “Marcha de quarta-feira de cinzas”, de Vinicius e C. Lyra. Oxalá se concretizem os seus últimos versos: “Quem me dera viver pra ver/ E brincar outros carnavais/ Com a beleza dos velhos carnavais/ Que marchas tão lindas/ E o povo cantando seu canto de paz/ Seu canto de paz.”              

A wikipédia informa outra origem para a palavra carnaval, embora não haja embasamento para a explicação nem a fonte. Fico com o Pratinha.        

Cony

A obra de Carlos Heitor Cony sempre me prendeu do começo ao fim. Um daqueles raros escritores que, como disse Nietzsche, não é preciso aprender a amar: ama-se desde a primeira página. Meus livros favoritos são dois: Antes, o verão (1964) e Pilatos (1974). Esses romances – como todos os demais – são ambientados no Rio de Janeiro, pois complexos, amargurados e irônicos sem nenhuma autoindulgência o cenário de seus personagens não poderia ser outro. Cony foi agraciado duas vezes (1957 e 1958) com o prêmio Manuel Antônio de Almeida, o que não deixa de ser curioso, uma vez que ambos são escritores cariocas que se notabilizaram pela criação de figuras picarescas, como o protagonista sem nome e “sem caralho” (sic) de Pilatos e o famigerado Leonardo Pataca de Memórias de um sargento de milícias (1854). A epígrafe que inaugura a terceira e derradeira parte de Pilatos revela muito da biografia atormentada do próprio Cony, que sempre se viu dividido entre a adoração ao ritual cristão (foi seminarista por quase dez anos) e a falta de fé (“…eu não tinha fé. Descobri que não tinha fé. Queria ser padre, mas sem fé. Achava muito bonita a profissão de padre, batina, missa em latim, eu gostava de tudo isso”): “Eis a verdade profunda,/mudá-la ninguém pode:/até o papa tem bunda,/até a nossa mãe fode.”                       

     Lembrei-me de Cony na última semana, quando flagrei dois jovens conversando entusiasmadamente sobre o último livro de Dan Brown. Segundo eles, “é impossível largar o livro; ele escreve muito bem e prende a atenção o tempo todo”. Pensei comigo mesmo se aqueles jovens já haviam lido Cony e tive uma comichão de indagá-los a respeito. Passou. Não disse nada.     

Somos todos bárbaros

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Retomando o post anterior, ainda com Bertrand Russell e a internet. Já não é de agora que tenho discutido com amigos o papel da internet no sistema educacional mundial e, consequentemente, brasileiro. A visão arcaica do professor como detentor exclusivo do saber, postado à frente da sala de aula, monotonamente monologando na presença de alunos passivos, está com os seus dias contados. Mais do que nunca, informação não pode ser confundida com formação. A primeira está ao alcance de qualquer indivíduo com acesso à internet e minimamente familiarizado com o google e a wikipédia. A segunda é muito mais complexa e sofisticada em suas múltiplas facetas. Premonitoriamente, disse Russell em 1959: “(…) o ensino não é um processo de transmitir informação. Em parte, é claro, deve haver isso. Mas não é a única função do professor, nem a mais importante. Na verdade, isto é mais evidente hoje do que à época dos gregos, quando registros eram mais raros e mais difíceis de se obter do que agora. Atualmente, é razoável pensar que qualquer pessoa que saiba ler poderá recolher informações numa biblioteca. É cada vez menos necessário um professor para transmitir mera informação. E por isso tanto maior é o mérito dos filósofos gregos, por terem compreendido como se deveria realizar uma genuína educação. O papel do professor é de orientador, de levar o aluno a ver por si mesmo.(…) Educação, pois, é aprender a pensar sob a orientação de um professor” (in “História do pensamento ocidental“). Não será o verdadeiro paradoxo do progresso aquele relacionado às ideias? Pois já não conheciam os gregos antigos – pré-socráticos, pitagóricos e socráticos – a diferença abissal entre formação e informação? Será que, quando se fala em educação, a ninguém ocorre a epifania de um atraso de mais de 2500 anos?  Somos todos bárbaros.

“Bárbaro”, etimologicamente, significa “não grego”.        

Sexto sentido

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Bertrand Russell (fonte: Enciclopédia Britânica)

Como faz todos os anos, o site EDGE – que alguém já disse se tratar de uma recriação em forma eletrônica dos antigos salon littéraire – lançou a pergunta de 2010: How is the internet changing the way you think? (literalmente, Como a internet está mudando a maneira como você pensa?). Opinião de consenso, seja qual for a  mudança  em nossa maneira de pensar, a internet é muito melhor que pior. Não fui (ainda) convidado pelo site para emitir a minha opinião, mas fiquei pensando em quanto tempo talvez eu tenha perdido durante minhas leituras pré-revolução digital. Neste exato momento estou relendo a “História do pensamento ocidental”, do Bertrand Russell. É inacreditável quantas vezes consultei o google e a wikipédia, e, por isso, tenho certeza de estar aproveitando a leitura muito mais que da primeira vez. E a Enciclopédia? Nada contra o trabalho de Diderot e D’Alembert, mas a acessibilidade  – sem falar em portabilidade – a esse valioso instrumento ficava restrita a poucos lugares, tais como a minha própria casa ou bibliotecas. Enfim, caro EDGE, a internet está mudando a maneira como eu leio, pelo menos.  

 A profecia da amnésia global produzida pela internet ainda é difundida por alguns agourentos, que dizem ter certeza que é mera questão de tempo. Além de discordar dessa previsão, acredito que a internet possa ter nos legado o verdadeiro sexto sentido: o mouse de nossos computadores.       

2010 e os arquétipos platônicos

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Ano novo. Vida nova? Nietzsche ou Borges? Você escolhe. 

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de  grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele tetransformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (F. Nietzsche, “O eterno retorno”, in A Gaia Ciência, aforismo 341)


“Para que seu horror seja perfeito, César, acossado ao pé de uma estátua pelos impacientes punhais de seus amigos, descobre entre os rostos e os aços o de Marco Júnio Bruto, seu protegido, talvez seu filho, e já não se defende, exclamando: “Até tu, meu filho!”. Shakespeare e Quevedo recolhem o patético grito.
Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove séculos depois, no sul da província de Buenos Aires, um gaúcho é agredido por outros gaúchos e, ao cair, reconhece um afilhado seu e lhe diz com mansa reprovação e lenta surpresa (estas palavras devem ser ouvidas, não lidas): “Pero, che!“. Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.” (J.L. Borges, “A trama”, in O Fazedor) 

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