No Divã do Geófagos: o Geófagos também é terapia!

Nosso amigo Manuel, que muito nos honra com sua presença constante no Geófagos, muito apropriadamente qualificou de “peregrinação” as minhas andanças dos últimos tempos. Já fiz outras peregrinações além destas últimas. Sinto-me razoavelmente qualificado para falar deste assunto.
Tenho visto, entre colegas e professores das universidades, pessoas que desconhecem a realidade do Brasil, desconhecem as carências, as dificuldades que os brasileiros mais humildes enfrentam. Podem até ter alguma informação a respeito, mas não esbarraram com isso na prática. Existe um importante Brasil rico, de que falei no texto passado, mas existe outro, o Brasil carente, que conheço e reconheço ao longo de minha vida.
No início de minha pós-graduação eu assistia a um excelente seminário de um grande amigo nosso, pessoa muitíssimo cara ao Geófagos. Ele falava sobre os fitólitos, assunto interessante, curioso e de grande relevância acadêmica em diversas áreas. Uma “autoridade” do Departamento de Solos da UFV questionou-o sobre a “aplicação social prática” de seu estudo. Eu esperei impacientemente que alguém da platéia lhe desse (à “autoridade”) uma resposta à altura. Havia gente gabaritada para isso lá. Eu era um “calouro” ali naquele momento. Não me manifestei, embora todos os Anjos e Demônios que me acompanham me impelissem para isso. Eu tinha, e tenho, a dizer àquela “autoridade” que ela nos apontasse uma, apenas uma “aplicação social prática” da Teoria da Relatividade, da Teoria da Evolução, entre outros tantos exemplos, como o Raio Laser, que quando foi inventado dizia-se que era uma solução sem problema (isso é histórico). Nada pode pautar a Ciência, exceto a ética, mesmo assim, em alguns poucos casos onde isso se faz necessário. A Ciência pode, e deve, colaborar nas questões sociais, mas quem tem o dever de resolvê-las é a administração pública, é o setor político-administrativo, são os Três Poderes da República no Brasil.
Estou tecendo este comentário porque estive com estes dois Brasis nesta minha atual peregrinação. Mas esta não é a primeira vez que os encontro. Minha biografia e meu currículo lattes mostram e confirmam isso.
Recomendo aos amigos, colegas e aos simpatizantes do Geófagos, que não percam a oportunidade de conhecer o Brasil. Aproveitem uma de suas férias e viajem de ônibus pelo Brasil afora, não fica caro. Repito, não pode ser de avião ou automóvel, é preciso viajar de ônibus, preferencialmente nos mais humildes, de localidades distantes, para encontrar e reconhecer o Brasil de que falo.
No meu retorno de Jataí, em Goiás, para Viçosa, viajei no Gontijo 11240, linha de Porto Velho a Mantena. Recomendo também o Expresso Linhares, de Jaboticatubas, na Serra do Cipó, ou a Viação Araguarina de Goiás. Tais viagens serão muito proveitosas se forem realizadas como complemento ao melhor dos exercícios, que é trabalhar com Extensão Rural em municípios com menos de 10.000 habitantes.
A peregrinação voluntária, em busca de sabedoria, pode nos ajudar muito. Pode ajudar a ponderar nossas atitudes pessoais e ponderar o exercício de nossa vida profissional. Mas tenha cuidado. O seu “Caminho de Santiago de Compostela” só terá validade se você estiver atento ao que busca. Senão você pode sair de lá pior do que quando entrou!

Blogs de ciência versus Jornalismo científico, uma polarização inexistente

Sempre na mais adiantada vanguarda de qualquer assunto referente ao meio científico, a Nature de ontem publicou a reportagem Science journalism: Supplanting the old media?, escrita por Geoff Brumfiel, tecendo numerosos e relevantes comentários acerca de pesquisa que demonstrou a gradual eliminação de seções dedicadas à Ciência em meios de comunicação tradicionais. Pelo que se lê no ensaio, os blogs de Ciências, notadamente aqueles escritos por cientistas praticantes, têm cada vez mais influência na comunicação de fatos científicos, tanto para leigos quanto para jornalistas científicos. O autor e alguns entrevistados chegam a aventar a possibilidade de uma polarização, um conflito de interesses pela sobreposição de funções. Não acredito que realmente exista, ou devesse existir um tal conflito.
Meu ponto de vista é de que os blogs de ciência podem em grande parte complementar o jornalismo científico tradicional. O blog de ciência, além do viés noticioso, tem um viés principal educativo. Não se trata apenas de saber o que está sendo ou foi feito, mas de entender, ainda que incipientemente, de que modo e por que se faz determinada pesquisa, entre outras coisas. Junto a uma notícia, uma noção, e razoavelmente confiável porque obtida de alguém da área. Como bem diz John Timmer, um dos entrevistados, “A idéia [do blog de ciência] é disponibilizar às pessoas já interessadas em ciência um vislumbre maior de como a pesquisa funciona”.
Não se sugere que os blogs de ciência substituam os meios tradicionais de divulgação. No entanto, o viés educativo dos blogs, se bem e independentemente feito, pode permitir o incremento do senso crítico do próprio leitor ao lhe disponibilizar, além de uma simples notícia, um ensinamento. Achar, como afirmam alguns dos entrevistados na matéria, que um blogueiro cientista será inevitavelmente menos independente ou crítico que um jornalista é ingenuidade ou simples má fé. Aliás, o blogueiro típico em geral inicia seu blog voluntariamente, sem pagamento algum que não a esperança de que alguém o leia e comente. Não há como ser mais independente. Não há um editor a lhe observar por cima do ombro ou uma política editorial (muitas vezes influenciada pela política real) a lhe vigiar as palavras.
Os colegas de ScienceBlogs PZ Myers e Bora Zivkovic, também ouvidos, ecoam as reclamações de muitos pesquisadores ao falar das distorções de suas palavras em reportagens sobre ciência na mainstream media, geralmente utilizando um tom sensacionalista para vender que, ao invés de informar, tem sido a ênfase de muitos órgão tradicionais. O sensacionalismo irresponsável compromete a confiabilidade das informações e até mesmo a percepção pública da ciência.
O blog de ciência independente, creio eu, tem o potencial de corrigir estas distorções. Antes de ser uma ameaça, o blog de ciência é um complemento importante ao jornalismo científico tradicional, ao elevar o nível do discurso e realmente divulgar o conhecimento científico.

Feliz dia de Darwin!

Hoje se comemora mundialmente os 200 anos de nascimento do naturalista inglês Charles Darwin, patrono do Geófagos, descobridor do mecanismo pelo qual as espécies mudam ou perecem, a seleção natural. Indubitavelmente um ser humano ímpar, meu ídolo pessoal, tio Charles, como gosto de chamá-lo, mudou com sua perigosa idéia simples todo o pensamento humano, definindo novos rumos para a ciência e filosofia. Darwin é daqueles raríssimos cujo mero nome é um título. A partir da leitura de seu livro sobre o papel da minhoca na formação de horizontes orgânicos em solos, The formation of vegetable mould through the action of worms, with observations on their habits, tive a idéia do nome deste blog. O Geófagos comemora entusiasticamente este dia, esperançoso de que chegue o tempo em que visões supersticiosas primitivas do mundo dêem definitivamente o lugar à visão maravilhosa da vida que o trabalho iniciado por Darwin nos proporcionou.

Religião ambientalista

Tenho verdadeiro horror à discussão superficial, à unanimidade dogmática e desinformada. O que aprendi, infelizmente não na escola, nem mesmo na universidade, mas lendo Gould, Sagan, Asimov e mesmo Dawkins, foi que o pensamento científico era e é a melhor saída para a rigidez mental típica da mentalidade bidimensional, sem profundidade. Apesar de não me incluir entre os ateus militantes, na verdade classificando-me mais como um agnóstico conciliador, tenho bem em mente que o pensamento religioso não raro dificulta ou impossibilita a discussão de temas mais controversos, pois se baseia na fé, na crença inabalável. A ciência, idealmente, se deveria guiar por dados. Idealmente. Tento ter em todos os aspectos da vida um pensamento, se não completamente cético, o mais crítico possível. Sigo assim os “preceitos” do genial Mário Schenberg, para quem o intelectual deveria manter uma distância crítica em relação às próprias crenças. Vejo, no entanto, que não são raras as pessoas que aceitam alguns fatos, ainda que cientificamente comprovados até o presente, como artigos de fé. Aceitariam estes fatos como verdadeiros, mesmo que a ciência não lhes desse o aval. Este tipo de atitude tem sido comum nas discussões relativas às mudanças climáticas e aos organismos geneticamente modificados.

Vejam bem, isto não invalida os fatos, invalida o modo de encarar a realidade destas pessoas. Li recentemente um post no De Rerum Natura em que se citava um trecho de discurso do recentemente falecido escritor Michael Crichton que achei bem interessante. O autor do post, o físico português Carlos Fiolhais, apesar de não fazer muitos comentários, foi duramente criticado por alguns leitores, aparentemente pela simples razão de não ter criticado Crichton. Desprezo este tipo de patrulhamento ideológico.

Pelo que ouço e leio, Crichton era cético em relação ao aquecimento global pelas atividades humanas. Minha impressão é de que as evidências científicas demonstrando a realidade das mudanças climáticas são muito fortes e expressei isto inúmeras vezes aqui no Geófagos e em outros fóruns de discussão. Na verdade, vejo este blog como um embrião de think tank cujo objetivo principal é pensar estratégias de enfrentamento ou convivência com estas mudanças. Não investiria tanto tempo nisto se não pensasse que as mudanças climáticas são reais. Tendo dito isto tudo, confesso que procurei ler o tal discurso de Michael Crichton e não nego, é um material muito bem escrito, pergunta questões bastante relevante e toca num problema que me preocupa muito: o ambientalismo como religião. Aliás, este é o título do discurso – Environmentalism as religion.

O trecho que Fiolhais transcreveu e que eu traduzo é o seguinte: “Hoje, uma das mais poderosas religiões no Mundo Ocidental é o ambientalismo. O ambientalismo parece ser a religião predileta dos ateus urbanos. (…) Há um Éden inicial, um paraíso, um estado de graça e unidade com a natureza, uma queda em desgraça para um estado de poluição como resultado de se ter comido da árvore do conhecimento, e como resultado de nossas ações há um dia do juízo vindo para nós todos. Somos todos pecadores da energia, fadados a morrer, a não ser que busquemos a salvação, chamada agora de sustentabilidade. A sustentabilidade é a salvação na igreja do ambiente. Da mesma forma que a comida orgânica é sua comunhão, aquela hóstia livre de pesticidas que as pessoas direitas com as crenças certas ingerirão.” E por aí continua ele, num tom que me pareceu equilibrado, embora cético, clamando ao final por uma ciência do ambientalismo no lugar de uma religião do ambientalismo. Não vi uma palavra em seu texto que o condenasse.

Não tenho dúvida que a questão das mudanças climáticas, assim como outras questões de interesse ambiental, tem não raro adotado a retórica religiosa onde seria mais apropriada a objetividade da feia prosa científica. Eu mesmo já fiz isso, e não deveria ter feito. Não sou o único. Em um artigo recente para a revista Prospect Magazine, o filósofo Edward Sidelski reclama por uma necessidade de se resgatarem valores morais quase extintos e diz tradução minha: “É fácil rir do ambientalismo radical. Suas projeções climáticas são duvidosas e mesmo que sejam exatas, não fica claro como um punhado de entusiastas podem reverter o apocalipse que se aproxima. Mas isto não é o importante. O movimento verde pode falar a língua da ciência, mas o que realmente o move é um imperativo ético. É uma tentativa de criar uma sociedade em que algumas escolhas são reconhecidamente melhores que outras, em que a natureza é vista como um obstáculo aos desejos irresponsáveis. Em resumo, é uma religião – uma religião sem Deus.” E vai além, comparando as comunidades orgânicas aos antigos monges beneditinos. O tom aqui é francamente favorável aos ambientalistas radicais, mas diz a mesma coisa que Crichton. Mas as palavras de Sidelski sugerem que o conhecimento científico por si só não é suficiente para despertar um comportamento ético, para guiar uma moral sem a necessidade de religião, o que acho no mínimo discutível.

O ambientalismo tornou-se um sucedâneo de religião, com dogmas inquestionáveis, inimigos da religião (Crichton), uma divindade maléfica (o sistema, as indústrias), infiéis, hereges e toda a profusão de maniqueísmo mal-disfarçado. Eu fico com Crichton: "… no fim, a ciência oferece a única saída para além da política. E se permitirmos a politização da ciência, estamos perdidos. Entraremos uma versão internet do período das trevas".

Vocêé seu fator de impacto

O editor de um periódico científico do qual sou assinante recentemente enviou, creio que para todos os sócios, um e-mail no mínimo curioso. Na mensagem ele informava sobre uma série de mudanças que precisariam ser feitas em relação à política de publicação de artigos na revista e depois explicava, detalhadamente, as razões das mudanças: como o periódico passara a ser classificado recentemente como de nível “A Internacional” o número de artigos submetidos e publicados aumentos vertiginosamente. No entanto, como o número de citações dos artigos publicados não acompanhou o ritmo do número de artigos publicados, o dito periódico corre agora o risco de perder a classificação de A Internacional. Vejam bem, teoricamente a qualidade da revista é tão boa que a permitiu ser classificada entre as melhores do mundo na área, mas devido a um artefato aritmético qualquer, sem que tenha havido mudança observável na qualidade da revista, pelo contrário, há a ameaça de “descer do pódium”. É cisma minha, ou este sistema de classificação é, no mínimo, falho. Permitam que eu use o termo que realmente desejo: é um sistema burro, estúpido. Estamos nos tornando escravos de números.
Qualquer um que, como eu, saiu de uma árdua pós-graduação e agora sofre para conseguir um emprego conhece uma outra face desta escravidão: as coisas ficam muito mais difíceis se não houver, em nosso geralmente minguado currículo, um número expressivo de artigos publicados. Não se faz, comumente, nenhuma exigência especial quanto à qualidade dos mesmos, o que se quer é quantidade. Claro, com a criação dos tais fatores de impacto, em teoria tenta-se medir indiretamente a qualidade de um artigo pelo número de citações ao mesmo – ainda assim, a grande ênfase é nos números. Por que, então, se utilizam estes indicadores? Respondo da forma que considero a menos hipócrita possível: porque os americanos disseram que era para se utilizar e nós somos cultural e cientificamente subservientes. Sim, em sua mania de reduzir tudo a cifras, imaginam que a qualidade está do lado de quem produz muito: sem exagero, é a mesmíssima coisa que considerar que Harold Robbins ou Sidney Sheldon são melhores escritores que J. D. Salinger ou  que Cervantes porque os dois primeiros produziram muito mais, é um absurdo, é idiota. De quem seriam os maiores fatores de impacto?
O pior é que o sistema encoraja a procriação de artigos científicos que em nada contribuem para a ciência, nada acrescentam, que jamais serão lidos ou citados. Quem, no meio, desconhece a tal “multiplicação dos pães”, a virtual geração espontânea de artigos a partir de dados esquálidos? Quem lê a Nature ou a Science tem acompanhado a avalanche de casos de fraudes e plágios de artigos gerados, não tenho dúvidas, pela pressão em publicar. Aqui mesmo no Brasil tivemos um fato recente em São Paulo. Antes de conseguir minha atual bolsa, concorri a uma bolsa de pós-doutorado em Minas pensando em ter tempo para publicar alguns artigos, mas não consegui porque não tinha suficientes artigos publicados, e não sou caso isolado. Serão os pesquisadores de hoje mais desonestos do que os de outras épocas? Sinceramente não creio, mas há uma pressão inexplicável pela geração de artigos. Alguém já percebeu que se se der ênfase demais a este tipo de coisa, por exemplo na escolha de professores universitários, a qualidade de ensino pode cair? Qual a ênfase que está sendo dada a bons professores, com boa didática, com valores outros que não apenas ter um espesso currículo? Eu tive professores na universidade que mal sabiam se expressar com frases de mais de três palavras, mas publicavam horrores.
Será que somos tão incompetentes que não podemos pensar em formas mais eficientes de se avaliar a qualidade de um acadêmico que não seja a que o chefe mandou usar? Não me venham com a conversa de que este é o sistema, que temos de nos adequar. Na primeira parte deste post mostrei o que acontece quando tentamos nos adequar demais. A blogosfera também se torna escrava de números e fatores de impacto: google pagerank, rank Technorati, acessos diários. Não é preciso ser ingênuo para saber qual blog terá melhores indicadores, o nosso ou um de download de filmes pornô? Há algum tempo li um ScienceBlogger comentar que o número de acessos de seu blog subiu estratosfericamente porque escreveu um post em que citava Britney Spears. Nenhuma mudança de qualidade aqui tampouco. Será pedir demais que enfatizemos a qualidade antes da quantidade? Nosso fator de impacto dirá tudo sobre nós?

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