Novo site do Geófagos

Caros leitores, o nosso blog Geófagos mudou de endereço e de cara. Podemos considerar que o Geófagos conquistou um público leitor fiel e o número de acessos alcançou um patamar considerável (mais de 25000 na data atual). Talvez devido ao maior alcance, esperamos que também por causa da qualidade do que foi escrito, o número de consultas sobre assuntos relacionados a agricultura e meio ambiente se tornou maior do que o autor inicial poderia atender sozinho. Pensando nisto, e entendendo que muitas destas consultas tinham um fim comercial, decidimos convidar dois colegas que passaram a ser contribuidores do novo blog “Geófagos, tópicos em agricultura e meio ambiente” e ao mesmo tempo sócios em uma consultoria em agricultura e meio ambiente, cuja página pode ser acessada no topo da página de abertura deste site e que se chama “Geófagos, soluções em agricultura e meio ambiente”. O blog agora está na plataforma WordPress e, além do Ítalo Moraes Rocha Guedes, será escrito em conjunto com o Carlos Eduardo Pacheco Lima e o Juscimar da Silva, ambos colegas no doutorado em Solos e Nutrição de Plantas da UFV. Não tenho dúvidas que o novo blog terá a qualidade do antigo blog e de que será até melhor, mais abrangente e mais interativo. Continuem nos lendo.

Agricultura e água

Vivemos em tempos críticos, de mudanças profundas no meio ambiente e a espécie humana deve utilizar o mais eficientemente possível o conhecimento científico adquirido para tentar senão reverter, pelo menos conviver da forma mais sustentável possível com as novas condições ambientais que se delineiam. A quantidade e a qualidade da água para uso humano e animal têm decaído inexoravelmente no último século e já se vê conflitos por água, não só no nível local e regional mas até no nível internacional. Talvez constitua surpresa para alguns saber que a agricultura é a atividade humana que mais consome água no mundo. É quase um consenso que a agricultura irrigada consome algo próximo de 85% de toda a água captada pelos seres humanos. Apesar de ocupar apenas 18% de toda a área sob agricultura, os cultivos irrigados respondem por cerca de 40% da produção agrícola mundial. Com o crescimento dos centros urbanos e à medida que a população mundial cresce, é fácil prever que diferentes atividades humanas passam e passarão a competir pelo mesmo suprimento de água e de maneira paulatina o verbo “competir” deixa de ser usado no sentido figurado. Os agrônomos e fisiologistas vegetais cientes deste papel de maior consumidor da agricultura têm se preocupado em melhorar a eficiência com que se utiliza a água na agricultura, buscando soluções para que se produza “more crop per drop“, mais safra por gota d’água. Tenho nas últimas semanas me embrenhado na literatura técnica referente à melhoria da eficiência com que as plantas cultivadas usam a água que absorvem. As plantas superiores, aliás, são em geral bastante ineficientes no uso que fazem deste recurso, com exceção de alguns grupos de espécies mais adaptadas a condições climáticas de falta de água. Chamo atenção para o fato de que quase toda a água absorvida por uma planta é perdida em forma de vapor através de microscópicas aberturas nas folhas chamadas de estômatos, em um processo denominado transpiração. Ao mesmo tempo que transpira, a planta absorve, pelos mesmos estômatos, o gás carbônico (CO2) necessário para a fotossíntese, processo pelo qual a lanta sintetiza todo o alimento que precisa e que utilizamos. Quando digo que os vegetais usam a água de uma forma pouco econômica, não falo em sentido figurado: uma cultura como o milho, por exemplo, manejado de forma correta, sem doenças e outros estresses ambientais, pode necessitar de até 500 litros de água para produzir um quilograma de grãos. E não se pense que este é mais um problema da que surgiu com a agricultura tecnificada: os programas de melhoramento genético na verdade têm aumentado a eficiência no uso da água (quanta água é necessária para se produzir um quilograma de grãos ou outro tipo de produto agrícola) das espécies cultivadas. Em um artigo publicado em 2006 no periódico científico Agricultural water management, o pesquisador australiano John Passioura faz um levantamento do que tem sido feito e o que ainda falta fazer para que se gaste menos água na agricultura sem comprometer a produção. Segundo ele, em situações em que a água é o fator mais limitante à produção agrícola, a resolução do problema se divide em três componentes: fazer com que haja mais transpiração do suprimento limitante de água; garantir a troca mais eficiente entre água transpirada e CO2 para produção de biomassa (matéria vegetal); e converter uma maior fração da biomassa em grãos ou outros produtos agrícolas. Ora, tendo eu dito que a transpiração constitue perda de água, o primeiro componente pode parecer contraditório, mas não. As perdas de água em um campo de cultivo podem ocorrer de quatro formas principais: pela infiltração profunda no solo além do alcance das raízes, pelo escoamento superficial (enxurradas) principalmente em solos argilosos compactados e com pouca matéria orgânica, pela já citada transpiração vegetal e pela evaporação direta, causada pelo sol e pelo vento. Acontece que se uma destas “perdas” não ocorrer, a transpiração, não há produção agrícola, por que não ocorre fotossíntese (pela corrente transpiratória, ou seja, pelo percurso que a água faz desde o solo, passando pelo interior da planta, até chegar à atmosfera, entram os nutrientes minerais necessários também para o desenvolvimento vegetal). O que o Passioura está na verdade propondo é que se aumente a proporção de água “perdida” por transpiração e se diminua as outras formas de se perder água, que não contribuem para a produção de bens agrícolas. As medidas a serem tomadas para se melhorar a eficiência no uso da água pelas culturas vão desde o melhoramento genético até a aplicação de boas práticas agronômicas de manejo como maior eficiência da irrigação, melhoria da estrutura do solo, uso de espécies adaptadas às condições locais etc que discutiremos com mais detalhes em um próximo post.

Mais um blog sobre Ciência do Solo

Foi uma boa surpresa encontrar um outro blog brasileiro sobre Ciência do Solo e melhor ainda descobrir que é escrito na mesma universidade de onde escrevo, a Universidade Federal de Viçosa e surpreendentemente do mesmo deparatamento, o Departamento de Solos, na verdade a poucos passos da sala onde escrevo. O Blog do LabGeo é publicado pelo Professor Elpídio Fernandes Filho e se dedica principalmente aos tópicos relacionados com Geoprocessamento. O site é bem escrito e a postagem bastante regular (bem mais que o Geófagos ;-)).

Por que existem agrônomos?

O agrônomo deveria ter para com o agroecossistema (sistema agrícola ou campo de cultivo considerado como um ecossistema distinto) papel análogo ao dos médicos para com pacientes. Apesar de já ser parte do anedotário popular o dito de que todos têm alguma coisa de médico (com os possíveis riscos desta atitude), quando as coisas apertam, isto é, quando a saúde dá sinais preocupantes ou inequívocos de problema, todos que podem procuram um médico. Quer seja por particularidades culturais, quer por simples tradicionalismo inquestionado, uma considerável quantidade de agricultores considera ter conhecimento suficiente para levar seus cultivos a bom termo sem auxílio de técnicos especializados. Não digo que no geral não consigam extrair alguma coisa, até mesmo o que se consideram boas produtividades em anos de excepcionais condições meteorológicas em solos naturalmente férteis. Mas isto são exceções e agir desta forma resulta em grande variabilidade das produções. Não há dúvidas de que os agroecossistemas conduzidos sem assistência técnica quase unanimemente produzem safras menores do que permitem os potenciais produtivos tanto das variedades modernas quanto das terras cultivadas. Não digo isso por fisiologismo ou classismo. Há em geral mal uso dos insumos como água (de irrigação, mas mesmo da água da chuva na dita agricultura de sequeiro, em que não se irriga), de fertilizantes e dos vários defensivos agricolas (herbicidas, inseticidas, fungicidas etc). Este mal uso não se restringe ao uso incorreto que leva à degradação ambiental. Falo também do uso impróprio que se refere a uso aquém ou além das necessidades, comprometendo a produtividade agrícola ou fazendo com que o agricultor gaste dinheiro em excesso. Já se tornou proverbial entre os agrônomos a resistência de produtores rurais desinformados em fazer análises químicas dos solos visando diagnosticar o estado da fertilidade dos mesmos. Estas análises, desenvolvidas ao longo de décadas de pesquisa intensa e sempre renovada, são feitas para que a recomendação de adubação seja precisamente aquela necessária para as culturas a serem utilizadas e, inclusive, levem em consideração a produtividade almejada pelo agricultor. Nunca ouvi falar de alguém que questionasse a recomendação de um médico para se fazer exames de sangue. Um produtor um dia, porém, disse-me que não podia confiar nas análises de solo porque os solos não eram todos iguais. Não são mesmo, e as recomendações de adubação a partir destas análises levam em consideração o principal fator que diferencia os solos, o teor de argila. Em geral, à medida que aumenta a quantidade de argila as doses de adubo recomendadas são proporcionalmente maiores. Não é só isso, já vi empresas de adubo venderem produtos 50% mais caros mesmo tendo menos nutrientes que outros produtos por simples detalhes de marketing, mas um erro destes raramente seria cometido por um agrônomo bem informado. O uso da água de irrigação é outra prática agrícola em que comumente se peca por excesso. Existem fases no desenvolvimento das espécies agrícolas que são mais sensíveis à falta d’água e que influenciam mais na produção final que outras e a aplicação de água em quantidades corretas apenas nestas fases pode permitir uma produção igual a de cultivos que tenham boa disponibilidade de água durante todo o ciclo da cultura, o que proporciona uma mais desejável economia de água e dinheiro. O uso excessivo de defensivos pode causar poluição ambiental e o uso abaixo do necessário pode não controlar os organismos que se deseja e ainda fazer com que alguns se tornem resistentes. A utilização de maquinário agrícola em épocas erradas causará compactação do solo, impedindo o desenvolvimento das raízes, que ficam incapacitadas de absorver água e nutrientes nas quantidades necessárias além de promover a perda de solo por erosão e a perda de água, que não consegue infiltrar no solo. Todos estes problemas e outros são desafortunadamente comuns em cultivos em que não se recorre à assistência técnica especializada, a agrônomos responsáveis e com conhecimentos prático e teórico sólidos. O mundo de hoje, com uma crescente população, maior demanda de alimentos e gradual escassez de recursos naturais de qualidade não admite mais a prática da agricultura desprofissionalizada, a qual além de improdutiva, tende a ser ambientalmente danosa. Se você deseja plantar correta e profissionalmente, não tenha dúvida, consulte um agrônomo.

Façamos as coisas d’outro modo

Aprecio muito ler biografias de cientistas, em meu caso, creio que serve do mesmo jeito que antigamente as pessoas religiosas liam vidas de santos: procuro modelos em que me espelhar, sem no entanto sequer pensar em simplesmente imitar. Muitas das biografias de cientistas brasileiros da primeira metade do século XX falam de um modo diferente de pensar e fazer a universidade de então, algo mais próprio nosso, sem macaquear os americanos. Em nenhuma das biografias que li havia a descrição detalhada de como isto era feito, mas imagino que devia ser uma universidade mais próxima de nossa herança cultural, de nossos valores intelectuais, talvez até de nosso ritmo. De toda forma, a opinião dos que descrevem aquele estado de coisas inicial o fazem favoravelmente. Depois veio a inevitável (parece) tendência de imitar os americanos, transplantando um tipo de universidade e um ritmo que nada tinham a ver conosco. Realmente parece que gostamos de imitar, agora até mesmo começamos a fazer pós-doutorados um atrás do outro, não pelas mesmas razões dos americanos, mas o importante é que façamos o que eles fazem, algo como os proverbiais aborígines fabricando capacetes de madeira e falando para o céu à espera do avião que nunca virá. Nesta nova ferramenta de potencial divulgação de conhecimento que são os blogs também já começamos a macaquear os americanos. Quando me propus a publicar um blog de divulgação científica, a idéia que tinha (e tenho) era realmente explicar as coisas o mais didaticamente possível, mostrando ao leitor o quão interessante e relevante seria para sua vida os estudos feitos no ramo da ciência ao qual me dedico. Pensei, algo ingenuamente, que isto seria a regra entre os blogueiros ditos divulgadores de ciência. Via e vejo os blogs como possível escapatória do ciclo de produção de artigos científicos dos periódicos especializados em nossa cultura científica, a partir dos quais pouco conhecimento chega ao leigo. Tenho visto muito em minha área (e realmente não sei se acontece em outras, mas não duvido) os pesquisadores escreverem artigos para serem vistos por outros pesquisadores, ponto final. Agora, parece-me, já há blogueiros que escrevem para blogueiros, em flagrante imitação de bloggers. Claro, o que cada um escreve em seu blog é uma escolha própria, nada tenho a ver com isso, mas não me abstenho de dar minha opinião. O que tenho lido são infindáveis discussões de o que é divulgação científica, como se faz, se é eficiente, a quem atinge, qual a filosofia a ser adotada, enfim, discussões interessantes para quem as discute, mas não creio que seja para quem busca conhecimento científico. Há exceções. Gosto muito do formato do blog Meu amigo soxhlet, do Por dentro da ciência, do Orquidofilia e Orquidologia, entre outros. São blogs escritos por cientistas, interessados principalmente em ensinar, em divulgar ciência. Vão bem ao contrário dos principais bloggers de ciência americanos, atualmente mais interessados em polêmicas e em dar opiniões muitas vezes tão dogmáticas quanto às daqueles que antagonizam. Aliás, penso que a melhor maneira de se combater os neoobscurantistas e as pseudociências que por aí grassam é divulgando o conhecimento científico o mais amplamente possível. Façamos as coisas de outro modo, do nosso modo. Esqueçamos os posts destinados a chocar pela opinião extravagante, escrevamos posts explicando o funcionamento do universo, por longos que sejam. Acho até que a predominância de posts curtos, telegráficos, não é algo nosso. Somos ibéricos, tendemos a gostar da palavra escrita. Escrevamos, longos posts que sejam, façamo-lo bem e ensinemos, esperando que os outros aprendam a pensar criticamente, que é o que faz todo bom cientista e blgueiro (ou bloguista).

Pedologia, ciência histórica II

No post anterior, mostrei que o ponto comum entre a Biologia Evolucionista e a Pedologia é a historicidade dos eventos que levam à formação das espécies para a primeira e à gênese dos solos para a segunda. Esta historicidade faz com que a estrutura teórica de ambas as disciplinas sejam um tanto quanto diferente de outras ciências, Física e Química principalmente. Quando falo de estrutura teórica refiro-me à enunciação de leis científicas. Vejamos novamente o que diz Esnst Mayr: “Leis certamente desempenham um papel, ainda que pequeno, na construção de teorias em biologia. A razão principal dessa menor importância das leis na formulação de teorias biológicas talvez seja o papel principal do acaso e da aleatoriedade em sistemas biológicos. Outras razões para o pequeno papel das leis são o caráter único de um alto percentual dos fenômenos em sistemas vivos e também a natureza histórica dos eventos.” Este trecho me faz lembrar uma das primeiras perguntas que fiz na disciplina de Gênese e Classificação dos Solos, ainda na graduação. Quando a professora nos mostrou um bloco de rocha já bastante intemperizado, sobre o qual cresciam líquenes e briófitas, e nos disse que víamos ali o estágio inicial de um solo, perguntei-lhe qual classe de solo seria formada. A resposta dada me pareceu evasiva, o que era estranho porque era uma excelente professora. Embora não soubesse expressar minhas crenças, achava que havia leis deterministas capazes de explicar a formação do solo. Esperei entaõ que, baseada no tipo de rocha e nas características ambientais circundantes, a professora me pudesse dizer que tipo de solo haveria naquele lugar após tantos anos. Neste ponto, permito-me ir um pouco mais além de Mayr, vito que me parece que a dimensão histórica está muito mais presente no estudo da formação do solo do que no da origem das espécies. A química de um solo qualquer, por exemplo, varia muito dependendo do estágio de desenvolvimento do mesmo. A reação (pH) de um solo jovem (pouco intemperizado) pode ser bem distinta da reação de um solo maduro (muito intemperizado), assim como a composição química e mineralógica. Na verdade, a própria estrutura variará de acordo com o estágio de desenvolvimento. É bom lembrar que um solo não tem DNA que direcione seu desenvolvimento ou estabeleça limites à sua composição, quer seja química, quer seja física, quer biológica. Um animal terá os mesmos órgãos, independentemente de sua idade. As células de uma planta serão em geral semelhantes, apesar de diferenças taxonômicas. Há características comuns ligando todos os seres vivos conhecidos. Não assim os solos. Aliás, aproveito para dissuadir meus leitores e colegas de um erro que já vi ser cometido repetidas vezes. Apesar de haver inúmeras analogias possíveis entre Biologia Evolucionista e Pedologia, solos não são organismos vivos da mesma forma que animais e plantas. Um dos primeiros pedólogos americanos, Marbut, chegou a fazer a analogia entre a classificação dos solos e a de animais e plantas em gênero e espécie. A classificação de animais e plantas em gêneros e espécies é basicamente uma classificação genealógica, pressupondo-se ancestrais comuns em algum ponto da história evolutiva. O mesmo certamente não pode ser feito com os solos. Solos originam-se de rochas e sedimentos, sendo inclusive observados solos de uma mesma classe originados de rochas completamente diferente. Para ficar em Minas Gerais, não vi eu mesmo Latossolos (solos muito intemperizados) originados de filitos na Serra do Cipó, de gnaisse em Viçosa e de basalto em Capinópolis? O que os deve ligar são os processos pedogenéticos: grande intensidade do intemperismo químico e físico, remoção de elementos básicos, formação de argilominerais 1:1 e de óxidos de ferro e de alumínio, homogeneização dos horizontes, principalmente em termos de teores de argila, formação de estrutura granular estável…

Pedologia, ciência histórica I

Existe um espinho incômodo na carne dos cientistas dos solos, principalmente naqueles que se dedicam ao ramo da Ciência do Solo chamado Pedologia. O espinho é uma pergunta incômoda: a Pedologia é uma ciência? Pedologia em geral é definida como “o estudo da gênese, morfologia, distribuição e uso do solo”. Há uma antiga visão de ciência como um “método geral completo, fundamentado na observação por mentes conscientemente livres de preconceitos sociais e usando ferramentas universais da razão para acumular conhecimentos confiáveis que levariam a um cada vez maior entendimento teórico das causas” nas palavras do já falecido Stephen Jay Gould. Vista desta maneira, a ciência seria uma infindável coleta sem critérios de informações que automaticamente levariam ao conhecimento da verdade e do mundo, o cientista seria idealmente um autômato coletor de dados. Hoje, entretanto, parece haver um consenso de que a prática científica consiste basicamente em testar experimentalmente hipóteses surgidas ou não de observações. Eis aí nosso problema. Embora na Europa Pedologia seja usada quase como um sinônimo de Ciência do Solo, nós, seguindo os americanos, entendemos Pedologia principalmente como o ramo que descreve os fatores e processos que levam à formação dos solos. Os solos modernos foram formados em algum ponto do passado, sob condições ambientais porventura diferentes das atuais, os fatores e processos que deram origem aos solos que aí estão não foram obviamente observados em ação no momento da gênese destes solos. Assim, o pedólogo não pode afirmar com certeza absoluta que determinada variável ambiental, em determinada quantidade, agiu desta ou daquela maneira para dar origem a certo solo desenvolvido em tempos já passados. Para explicar a formação dos solos partimos da observação dos fatores físicos, químicos e biológicos ocorrendo hoje e criamos modelos plausíveis. Ao contrário de outros ramos da ciência, não há como “aplicar” um certo clima sobre alguma rocha e controlar todos os outros fatores de formação do solo em um sítio experimental qualquer e observar depois de um tempo que solo foi formado. Entre outras coisas, a gênese dos solos é lenta. Esta impossibilidade de criar um solo experimentalmente é a causa da dúvida sobre a natureza científica da Pedologia. Ao ler recentemente o livro “Biologia, ciência única” do biólogo evolucionista Ernst Mayr, com felicidade e surpresa encontrei o seguinte trecho: “A biologia evolutiva, ao contrário da física e da química, é uma ciência histórica – o evolucionismo tenta explicar eventos e processos que já ocorreram. Leis e experimentos não são técnicas apropriadas para a explicação de tais eventos e processos. Em vez disso, é preciso construir uma narrativa histórica, que consista em uma reconstrução experimental de um cenário em particular que tenha levado aos eventos que se está tentando explicar”, ora, é exatamente isto o que fazem os pedólogos! A recriação dos processos que levaram à formação de um determinado solo não deixa de ser um processo histórico. Apesar de vermos e até medirmos alguns dos processos que levarão ou poderão levar à formação de um solo, ninguém acompanhou todo (ou sequer uma pequena parte) dos eventos que culminaram nos solos de hoje. Criamos modelos de desenvolvimento de solos mais ou menos plausíveis mas não temos como observar todo o processo pedogenético desde o intemperismo até o momento em que a descrição do perfil o enquadra em uma classe já existente. Eis aí um ponto em comum entre a Pedologia e a Biologia Evolutiva. (Continua)

Como seqüestrar carbono em solos I

Como prometi aqui, estou lendo as idéias do Johannes Lehmann sobre a produção de biocarvão (bio-char) para a aplicação no solo visando tanto o seqüestro de carbono quanto o melhoramento das condições químicas, físicas e biológicas do solo. Mas primeiro dois esclarecimentos: aos ainda incautos, seqüestro de carbono é toda prática que remove CO2 (dióxido de carbono ou gás carbônico) da atmosfera visando reverter ou diminuir o efeito estufa causado pelo homem; segundo, a série de posts iniciados por este não se aterão a comentar os trabalhos de Johannes Lehmann, embora tenham sido inspirados em parte em suas pesquisas. Agora vamos ao que interessa. Uma das principais críticas de Lehmann em relação aos métodos tradicionais de se tentar aumentar a quantidade de carbono no solo (sob a forma de matéria orgânica) é o baixo potencial que os solos têm de acumular carbono orgânico. Isto é em geral verdade. Lembremo-nos que os solos os quais apresentam acúmulo considerável de matéria orgânica, principalmente no horizonte superficial (solos orgânicos ou Organossolos e os solos minerais com horizonte húmico), em geral se encontram sob condições limitantes ou impossíveis para a agricultura, por exemplo, solos sob clima muito frio, ou inundados periodica ou constantemente, ou solos com altos teores de alumínio ou desenvolvidos sobre material de origem (rochas) extremamente pobres quimicamente, condições que limitam a ação dos microrganismos do solo responsáveis pela decomposição da matéria orgânica. Logo em seguida vêm à menteas práticas de plantio com pouco ou nenhum revolvimento do solo, como o plantio direto na palha. Nestas práticas, os restos das culturas vão sendo deixados nos campos de cultivo depois das colheitas e não são incorporados ao solo por meio de implementos agrícolas como a grade. Também neste caso, o acúmulo de matéria orgânica nos solos se deve mais à limitação da ação decompositora dos microrganismos do que à qualidade da matéria orgânica, embora no plantio direto se use muito a palha de gramíneas, naturalmente mais difícil de ser decomposta. Ora, para que haja a decomposição do material orgânico os microrganismos precisam, entre outras coisas, de uma boa oxigenação do solo. Um dos resultados do revolvimento do solo pelos implementos agrícolas é expor material orgânico enterrado ao ar, além de promover maior aeração da camada superficial do solo, o que acelera a decomposição conseqüente evolução (liberação) de CO2 para a atmosfera, contribuindo com o efeito estufa. Não estou dessa forma dizendo que não seja interessante a adoção do plantio direto tanto como prática de conservação do solo como estratégia de seqüestro de carbono. Não. O que digo é que esta prática depende da continuação do manejo para ser eficiente, a mudança nas práticas de manejo podendo comprometer o que foi conseguido se, por exemplo, voltar-se a se revolver o solo numa área antes submetida ao plantio direto. O enfoque de Lehmann é diferente. Ele pretende seqüestrar carbono mudando as características do material orgânico aplicado ao solo. Este material acumular-se-á por ser ele próprio resistente à ação decompositora dos microrganismos do solo. Esta idéia no entanto não é nova. Como foi comentado aqui, Lehmann e colaboradores realmente basearam suas idéias a partir da observação do comportamento de certos solos arqueológicos amazônicos conhecidos como Terras Pretas de Índio, nos quais os teores de matéria orgânica mais altos do que os dos solos circundantes devem-se à deposição por centenas ou até milhares de anos de restos vegetais carbonizados, além de restos de comida e ossos, o que em conjunto conferiu características químicas, físicas e biológicas a estes solos que os tornam desejáveis do ponto de vista agrícola. Mas eu dizia que as idéias de Lehmann e colaboradores de aumentar a matéria orgânica do solo ao depositar material naturalmente resistente à ação decompositora dos microrganismos não é nova, também nos círculos científicos. No meu mestrado tratei amostras de solo com um subproduto da produção de carvão, o alcatrão vegetal, um líquido escuro, viscoso e de cheiro forte. Este composto é extremamente rico em compostos fenólicos. Pesquisas anteriores demonstravam que as frações da matéria orgânica do solo mais ricas em compostos fenólicos, como a lignina, eram mais resistentes à decomposição pelos microrganismos. Realmente observei que a aplicação do alcatrão promovia aumento do teor de matéria orgânica do solo, mas este aumento não era proporcional às quantidades de alcatrão aplicadas. A razão disto veremos em um próximo post.

Solos tropicais ou tropicalistas?

Um professor que admiro muito chamava-nos insistentemente a atenção sobre a peculiaridade dos solos formados sob condições tropicais úmidas frente aos solos que se formam sob climas temperados. Amante do embate de idéias, ele nos experimentava o espírito crítico perguntando se concordávamos com o que dizia. A tendência natural era a concordância. Pior, como bons brasileiros, tendíamos mesmo a ver aspectos especiais nos solos e na própria pedologia (estudo dos solos) do Brasil, mostrando aquela insegurança de que fala o historiador Evaldo Cabral de Mello, comum aos povos que tentam afirmar nacisistamente uma certa identidade que os distingue de todos os outros. Imune a estas veleidades, meu professor brincava “Não são todos filhos de Gaia?”, referindo-se ao modelo teórico idealizado pelo climatologista inglês James Lovelock que descreve a Terra como um grande organismo. Sim, todos são “filhos de Gaia”. Também creio que todas as evidências mostram a peculiaridade dos solos tropicais em relação aos solos temperados: a ação profunda da água como agente intemperizador, a participação exuberante dos organismos na gênese da estrutura dos solos, a permanência por longos períodos de tempo de mantos de intemperismo profundos permitindo a existência de solos muito espessos e antigos. Mas parece-me que o raciocínio inverso também é válido: em relação aos solos tropicais, os solos temperados também devem ser entidades peculiares, pois a ausência ou menor ação dos fatores citados, em regiões de clima temperado, não implicam a inexistência de solos nem que os solos porventura lá formados sejam piores ou menos interessantes que os de cá. Há solos lá, mas são diferentes, ou os fatores que lhes deram origem são algo distintos, ou os processos, sendo os mesmos, ocorrem em taxas diferentes. No entanto a Pedologia surgiu lá, primeiro na Rússia, com alguma influência na Alemanha e depois terminou de se desenvolver nos Estados Unidos. Os conceitos e ferramentas teóricas (para usar um termo querido aos das Humanidades, os paradigmas) da ciência pedológica nasceram lá em cima. Nós viemos depois, nós somos pobres, parece que por causa disto nós precisamos nos auto-afirmar, proclamando nossa peculiaridade. Realmente creio que fosse mais apropriado dizer que a Pedologia tropical (e a Ciência do Solo como um todo), por utilizar um referencial teórico e um arcabouço metotológico específico às condições tropicais, é uma entidade peculiar e distinta, mas não pior ou melhor, que a Pedologia de clima temperado. O paleontólogo e divulgador científico Stephen Jay Gould escreveu em um ensaio na Science em 2000 “For reasons that seem to transcend cultural peculiarities, and may lie deep within the architecture of human mind, we construct our descriptive taxonomies and tell our explanatory stories, as dichotomies or contrasts between inherently distinct and logically opposite alternatives“, (“Por razões que parecem transgredir peculiaridades culturais, e pode originar-se nas profundezas da arquitetura da mente humana, construímos nossas nomenclaturas descritivas e contamos nossas histórias explicativas, como dicotomias ou contrastes entre alternativas inerentemente distintas e logicamente opostas”, tradução minha). Quero crer que se Pernambuco tivera o mesmo papel cultural que a Grécia teve para a civilização ocidental e que São Paulo fosse hoje o que os EUA são, alguém lá para os nortes estaria fazendo o mesmo tipo de pergunta que hoje fazemos.

O caminho das plantas

No post passado falei sobre minha viagem à Serra do Cipó acompanhando o amigo Elton Valente em algumas coletas referentes a sua tese de doutorado. Creio que devo comentar alguma coisa sobre sua hipótese de trabalho e alguns insights que tive após a viagem. Basicamente o Elton está analisando os vários tipos de vegetação que ocorrem em determinados locais da serra e os solos associados a estas vegetações. Há lá em cima alguns capões de mata com várias espécies que aparentemente também ocorrem na Mata Atlântica. Supõe meu amigo que estas espécies ali chegaram seguindo a drenagem, ou seja, seguindo os meandros dos rios que nasciam na serra e passavam pelas áreas onde grassava a Mata Atlântica, hipótese interessantíssima. Em outubro de 2006 escrevi aqui no Geófagos um post sobre a origem do solo seguindo a colonização dos continentes pelas plantas há cerca de 400 milhões de anos, no Devoniano. Para mim, era até há pouco um problema a me desafiar a imaginação como as plantas colonizaram as terras emersas. A sabedoria chinesa tem um ditado que diz “Se queres conhecer o mundo, observa teu quintal”. Estava eu este fim de semana observando colônias de pequenas plantas conhecidas como briófitas em umas rachaduras (parecidas com pequenos rios meandrantes) no concreto do quintal da casa onde estou morando e ao mesmo tempo lembrando da hipótese do Elton quando de repente me vem destes insights nada geniais mas afortunadamente esclarecedores para os que os têm: as plantas devem ter colonizado a terra seguindo a drenagem, “ao contrário do rio, nadando contra as águas, e nesse desafio, saindo lá do mar” e ganhando a terra e a eternidade.

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