Dica de Livro – A Tripla Hélice
Nascido em 1929, geneticista renomado de Harvard e aluno do memorável T. Dobzhansky, Richard Lewontin põe em xeque visões simplistas sobre genética e evolução, ataca o determinismo genético e ressalta a complexidade dos processos biológicos advindos das inter-relações entre gene, organismo e ambiente. A Tripla Hélice é um livro curto e direto, composto de quatro capítulos, fruto de conferências que deu em Milão e acrescido do último capítulo. Escrito em linguagem simples e envolvente e oferecendo raciocínios complexos seu livro permite uma leitura interessante e proveitosa para todos da área biológica atentos aos modos como sua ciência vem sendo feita, patrocinada, ensinada e divulgada.
No primeiro capítulo, Gene e Organismo, Lewontin faz uma profunda análise das inter-relações entre gene e organismo na formação do fenótipo durante o desenvolvimento e condena a separação entre ambos. Ele ressalta os perigos das metáforas na ciência, esclarece mal-entendidos mais comuns sobre DNA, gene e genoma e relativiza a importância do seqüenciamento do genoma humano dizendo que os genes são apenas uma parte, não isolada do ambiente, do desenvolvimento do organismo.
Para Lewontin, a linguagem metafórica é indispensável à ciência, porém é muito perigosa já que é comum confundirmos a metáfora com o objeto de pesquisa. Por isso, endossa a frase de que “o preço da metáfora é a eterna vigilância”-. O foco de sua vigilância desse capítulo é desconstruir a noção pretensiosa de que é possível prever o organismo através da seqüência do DNA, de que o genoma humano seqüenciado é saber “o que é” ser humano, de que o DNA é “auto-replicante” num sentido de auto-suficiência, de que o DNA sozinho “produz” novas proteínas e que em isolado a seqüência do DNA é o “santo graal” da Biologia.
Na busca das raízes dessas concepções errôneas, Lewontin chega à filosofia da ciência, à etimologia e à metodologia em genética humana. Em Descartes ele identifica nossa tendência em dar mais valor epistemológico ao objeto do que em suas inter-relações internas e externas. No debate pré-moderno sobre a geração orgânica, em que pré-formacionistas e epigenistas buscavam explicar o desenvolvimento, ele identifica resquícios de pré-formacionismo na supervalorização do gene como a “causa” do organismo. Até a origem da palavra desenvolvimento tem marcas pré-formacionistas, pois sua raiz é a mesma para o processo de revelação fotográfica. Nesse sentido, o filme fotográfico já contém todos os elementos da foto e a seqüência genética já contém todas as “informações” do organismo. Assim como no processo de revelação, os banhos químicos dão as condições necessárias para o aparecimento da foto, o ambiente é visto apenas como dando as condições necessárias, normais, para o aparecimento do organismo durante o processo de desenvolvimento ontogenético.
As metodologias científicas disponíveis também influenciam as concepções errôneas envolvendo genes e desenvolvimento. A genética humana usa muito as mutações drásticas como método de investigação da importância de um gene no desenvolvimento. Mas apenas a minoria das mutações é do tipo drástico e o efeito mutado é facilmente tido como “causado” apenas pelo gene mutado. A Biologia Experimental é limitada em manipular uma causa por meio de grandes mutações, o que faz com que os biólogos experimentais confundam as limitações metodológicas dos experimentos com as explicações corretas dos fenômenos. E isso leva ao pensamento de que toda a diferença individual está nos genes.
Na verdade o desenvolvimento ontogenético é uma interação singular entre genes, a seqüência temporal dos ambientes externos e eventos aleatórios, que é o ruído do desenvolvimento. Essa interação singular entre gene e ambiente é tal que o ordenamento dos fenótipos não apresenta nenhuma correspondência com nenhum ordenamento a priori dos genótipos e dos ambientes em separado. E essa não correspondência ainda é complexificada pelo ruído do desenvolvimento.
No segundo capítulo, Organismo e Ambiente, Lewontin analisa o pensamento adaptacionista, sua origens históricas e ressalta as inter-relações entre organismo e ambiente condenando a separação entre ambos e descontruindo o papel passivo do organismo frente ao ambiente. Darwin, ao inaugurar o pensamento evolucionista por meio a seleção natural, fez uma separação entre processos internos e externos. A variação individual é fruto de processos internos independentes e a seleção é fruto de processos externos independentes. Essa distinção foi importante, pois desmistificou o holismo obscurantista entre orgânico e inorgânico existente na época, mas não nos ajuda mais agora.
Os ecos dessa concepção inicial são encontrados em metáforas para a adaptação como a que o organismo propõe e o ambiente dispõe, que o organismo faz conjecturas e o ambiente as refuta, ou ainda a que o ambiente lança problemas e os organismos lançam soluções aleatórias. A idéia errônea subjacente a essas concepções é que o ambiente de um organismo é casualmente independente dele e que as alterações ambientais são autônomas e desconectadas com as alterações na própria espécie. Para Lewontin o processo evolutivo real é mais captado pelo processo de construção, o que torna mais ativa a participação do organismo nas suas pressões seletivas.
Segundo Lewontin, não existe organismo sem ambiente assim como não existe ambiente sem organismo. Há uma confusão clássica entre o fato da existência do mundo físico externo ao organismo que continuaria a existir na sua ausência e a afirmação de que os ambientes existem sem e independente dos organismos. Os ambientes não são simples condições físicas, são os espaços funcionais definidos pelas atividades dos próprios organismos. Os organismos determinam os aspectos do mundo exterior que são relevantes para eles e constroem ativamente um mundo a sua volta, promovendo um processo constante de alteração ambiental na medida em que as condições relevantes se tornam parte de seu ambiente.
No terceiro capítulo, Partes e Todos, Causas e Efeitos, Lewontin aponta as dificuldades da aplicação das explicações analítico-mecanicistas aos seres vivos, ressalta as singularidades e complexidades dos processos biológicos e integra as inter-relações de gene e ambiente com as de organismo e ambiente. O êxito oportunista do modelo analítico de Descartes levou a uma concepção simplista das relações entre partes e todos e entre causas e efeitos. E quando é aplicado ao estudo dos organismos o modelo “máquina” apresenta dificuldades advindas da incompatibilidade entre sua simplificação e as características singulares dos seres vivos.
Os seres vivos possuem tamanho intermediário entre o micro-cosmo e o macro- cosmo, são internamente heterogêneos de maneiras relevantes para suas funções vitais e entram em relações causais complexas com outros sistemas heterogêneos. Dadas essas características a separação entre causa e efeito se torna problemática, pois o organismo é um nexo de um grande número de forças internas e externas fracamente determinantes, sendo nenhuma dominante, e não há um único e óbvio modo de dividir um organismo em “órgãos” apropriados para a análise causal de funções diferentes. Além disso, os processos orgânicos apresentam uma contingência histórica que impede explicações e generalizações universalistas.
As relações recíprocas entre Gene, Organismo e Ambiente, os elementos da Tripla Hélice, são ressaltadas. Os organismos não estão codificados nos seus genes porque o ambiente em que o desenvolvimento ocorre tem que ser considerado. E o ambiente está codificado nos genes do organismo uma vez que as atividades do organismo é que constrói o ambiente. Então gene e ambiente causam o organismo via desenvolvimento, genes e organismos causam o ambiente via ecologia e organismo e ambiente co-evoluem causando as pressões seletivas sobre os genes.
No capitulo final, Direções no Estudo da Biologia, Lewontin menospreza as alternativas ao reducionismo vindas da física, ressalta as características únicas dos sistemas vivos e fecha com um otimismo para futuras pesquisas e descobertas na Biologia. Frequentemente cientistas de diversas áreas não biológicas reconhecem que o modelo “máquina” fracassou para explicar a vida. O problema é que eles assumem que uma solução melhor deve vir de fora como da física, sem perceberem que o modelo falha justamente por não compreender os seres vivos em seus próprios termos. As tentativas nesse sentido mais famosas são a da aplicação da teoria da catástrofe, da teoria do caos, e da complexidade aos organismos vivos.
Os sistemas biológicos são sistemas abertos internamente heterogêneos e históricos. De sua característica aberta advém a flexibilidade universal dos limites entre o interior e o exterior. E de sua heterogeneidade interna advém que a forma é requisito para entender as funções e daí o perigo de fazer extrapolações de exemplos convenientes para toda a Biologia, como no caso das mutações drásticas como modelo para compreender “o papel” dos genes.
Nos capítulos anteriores Lewontin vigilantemente ressaltou e ilustrou aspectos que para ele são bem conhecidos, em algum nível da consciência, por todos os biólogos. A Biologia não precisa de novas leis e novos princípios explicativos, mas necessita de uma compreensão menos simplista e mais integrativa de seus processos segundo suas próprias características singulares. Apresentar e desconstruir os viéses e as simplificações das concepções sobre gene, organismo e ambiente e incorporar os novos conceitos às metodologias de pesquisa foram as maneira encontradas por Lewontin para que novos conhecimentos sejam incorporados à estrutura das explicações biológicas.
“A Tripla Hélice – Gene, Organismo e Ambiente” Richard Lewontin. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.