Somos dominados por genes ou por mal-entendidos?
Teste seus conhecimentos sobre a Psicologia Evolucionista descobrindo o que ela não é.
- … não diz que comportamentos adaptativos estão presentes no nascimento.
- … não diz que nosso comportamento é geneticamente determinado.
- … não diz que não temos flexibilidade comportamental.
- … não diz que comportamentos são adaptações.
- … não diz que não precisamos aprender nada.
Pensar que instinto e aprendizagem são coisas opostas, excludentes ou inversamente proporcionais é um erro muito comum. Trata-se do velho debate inato x aprendido. Justamente porque temos instintos é que somos capazes de aprender. Não somos umas espécie que aprende muito por que temos menos instintos, mas sim por que temos muitos. Os módulos mentais são abertos e ávidos por informações ambientais. Portanto, é pela via do aprendizado que manifestamos nossa natureza, e pela via da natureza que temos as propensões para aprender conteúdos culturais e assim participar do mundo social. No paralelo do computador é fácil perceber que até o programa de edição de texto está preparado para aprender, pois inserimos novos tipos de fontes, novas figuras. O programa aprende até palavras novas, se as adicionamos ao dicionário. E isso possibilita inclusive a impressão de mais textos diferentes, a partir de um único programa;
- … não diz que a cultura não é importante.
Como a Psicologia Evolucionista reconhece que temos muitos módulos mentais, que são abertos e calibráveis, ou seja, plásticos e maleáveis pelo ambiente, e ainda, especializados em gerar e processar conteúdos culturais, segundo sua perspectiva, o ser humano é biologicamente cultural. A cultura não é algo antinatural alheio à biologia humana. A cultura é parte essencial da natureza humana, influencia e é influenciada por nossas adaptações mentais. Portanto, a diversidade cultural não é a prova de que o comportamento humano independe de adaptações mentais, mas sim de que nossas adaptações mentais são ricamente voltadas para os contextos culturais em que crescemos;
- … não diz que as pessoas são idênticas nos comportamentos.
Assim como todas as pessoas têm um coração, dois pulmões, dois olhos e um estômago, todas as pessoas têm as mesmas adaptações cognitivas. A história de vida e o contexto ecológico-cultural de cada pessoa influencia seus órgãos, o que faz com que esportistas tenham coração e pulmões diferentes de fumantes. Assim como as adaptações mentais de cada pessoa também são fruto de uma interação única com seu ambiente, o que torna cada pessoa única. Mesmo que duas pessoas brasileiras tenham as mesmas adaptações mentais voltadas ao aprendizado da linguagem, e tenham o mesmo contexto cultural da língua portuguesa, elas podem ter sotaques e gírias diferentes segundo as regiões específicas em que cresceram. E isso não é a prova de que elas não têm adaptações mentais igualmente, mas sim de que suas adaptações mentais são abertas à informação ambiental que varia de região pra região;
- … não diz que comportamentos adaptativos estão fora de nosso controle.
A Seleção Natural moldou filogeneticamente adaptações mentais que geram tanto comportamentos adaptativos mais controláveis – como a detecção de trapaceiros e a escolha de parceiros –, quanto os mais incontroláveis – como os medos. Decisões rápidas frente a riscos reais de morte, assim como medo de cobra ou de altura, são em geral mais incontroláveis, já que uma informação ambiental específica potencialmente letal dispara a reação adaptativa. Mas o fato de serem adaptativos e pouco controláveis não implica a impossibilidade de agirmos de modo a minimizar seus efeitos negativos. Saber qual informação ambiental influencia o aparecimento de tal comportamento – como ver uma cobra ou olhar para baixo na roda gigante – aumenta nossas chances de controlar por antecipação nossas tendências incontroláveis;
- … não diz que todo comportamento atual é adaptativo.
Nossos módulos mentais foram selecionados no ambiente ancestral, ou seja, no ambiente de nossa adaptabilidade evolutiva e não no ambiente moderno e tecnológico atual. Então, pelo viés da Psicologia Evolucionista muitos de nossos comportamentos atuais são compreendidos como não adaptados, por estarmos deslocados de nosso ambiente natural. Alguns comportamentos que eram adaptativos no ambiente ancestral atualmente podem não ser, a exemplo de comer doces e gordura em excesso. No ambiente ancestral era adaptativo acumularmos o máximo possível de calorias em uma única refeição, pois não havia abundância de alimentos tal como ocorre hoje. Outros exemplos vão no sentido oposto. É o caso da prática de atividades físicas. Fomos selecionados em um momento em que fazíamos grande quantidade de exercícios físicos, pois o modo de locomoção era andar. Contudo, hoje, no ambiente urbano, sobretudo, há disponíveis facilidades como os vários tipos de veículos e até mesmo dispositivos como as escadas rolantes que auxiliam a locomoção humana. Isso implica em pouca mobilidade física e acaba gerando riscos para a saúde;
- … não diz que as adaptações são perfeitas.
Mesmo se estivéssemos em nosso ambiente ancestral vivendo como caçadores-coletores nossas adaptações mentais seriam falíveis e imperfeitas. Se a seleção natural mantivesse um perfeito medo de cobras de modo a que as pessoas jamais saíssem de suas casas, seriam drasticamente reduzidos os casos de mortes por picada de cobra. No entanto, haveria um custo alto a pagar: a capacidade exploratória humana seria inexistente, o que resultaria em falta de alimento, e conseqüentemente nos levaria à morte. As adaptações não são perfeitas porque se fossem muito eficazes seus custos ultrapassariam seus benefícios à sobrevivência e à reprodução. Além disso, as pressões seletivas são cegas quanto a um objetivo final a ser atingido futuramente pela adaptação. Sendo assim, o modo como um problema adaptativo foi solucionado pela seleção natural, ou seja pelo relojoeiro cego, quase nunca equivale àquele pelo qual um engenheiro o solucionaria, partindo do zero e pensando em simplicidade, eficiência e economia. Somado a este fato, não se pode esquecer que as adaptações nunca são exatamente iguais dentro da população, ou seja, mesmo se ela tiver atingido um nível ótimo, este nível será melhor para alguns do que para outros, pois sempre existe uma variação individual, que é a matéria-prima da evolução;
- … não diz que há genes para o egoísmo.
A abordagem do gene egoísta não é uma abordagem molecular para o egoísmo. O gene egoísta não é “aquilo” que pessoas egoístas têm. Muito menos a teoria diz que todos os genes têm desejos conscientes egoístas, como se eles só “pensassem” em si próprios. Os genes não possuem desejos conscientes. Eles simplesmente se auto-replicam. Aqueles que não se auto-replicaram não sobreviveram e não estão representados hoje. O padrão de auto-replicação cega produz resultados que por vezes são interpretados como se determinados genes tivessem interesse em ser mais representados nas próximas gerações. Tais genes não “têm” realmente esse interesse, mas agem cegamente como se tivessem. Trata-se de uma analogia com os interesses humanos. Usa-se a voz ativa e coloca-se intenção pessoal onde não há;
- … não diz que as pessoas inconscientemente visam aumentar a replicação de seus genes nas gerações seguintes.
Confundir os interesses dos genes com os das pessoas é uma das principais confusões feitas com a Psicologia Evolucionista. Exemplo: “O adultério não pode ser uma estratégia para propagar os genes egoístas, pois os adúlteros tomam providências contraceptivas”. O desejo sexual e o desejo de ter filhos não são uma estratégia das pessoas para propagarem seus genes. São uma estratégia das pessoas para obter os prazeres do sexo e os prazeres de serem pais, e esses prazeres são a estratégia dos genes para propagarem-se nos filhos. Gene egoísta não implica em uma pessoa que faz tudo pensando em seus genes. As pessoas não pensam no que seria melhor pra seus genes, elas simplesmente comem pelo prazer de comer, pra matar a fome e por qualquer outra crença e desejo. Já os genes modelaram o desejo de comer quando se replicaram em pessoas que se alimentavam bem e conseqüentemente sobreviviam e reproduziam. O interesse dos genes e o interesse das pessoas estão separados por diferenças gigantescas em unidades de tempo. O interesse pessoal é pautado pelo hoje, ontem, amanhã, mês que vem, vida toda, enquanto o interesse do gene é pautado pela persistência de pressões adaptativas em sucessivas gerações no ambiente ancestral ao longo de milhões de anos;
Como você pôde perceber, nós vivemos em uma unidade de tempo mais rápida que a de nossos genes. Isso implica em não sermos dominados e controlados por eles. Somos livres para escolher não comer doces, se assim quisermos, e livres para seguir o propósito de não ter filhos, se assim o desejamos, livres para abdicar do sexo e até da própria sobrevivência. Temos esses pequenos viéses herdados em comer doce, ter filhos, praticar sexo e sobreviver, o que torna mais provável realizarmos tudo isso e mais difícil resistir a esses comportamentos, por sermos herdeiros de ancestrais que sobreviveram a ponto de deixar descendentes. Tais propensões foram moldadas no ambiente ancestral e não no atual. Então somos livres para fazermos o que bem entendermos agora com nosso corpo e com nossa mente.
- … não é sexista ou machista.
A Psicologia Evolucionista vem descobrindo muitas diferenças psicológicas inéditas entre homens e mulheres. Essas descobertas têm gerado confusão e muitos apregoam ser esta uma teoria baseada em machismo ou sexismo. Essa confusão vem de três problemas: Primeiro, a generalização ingênua. Assim, dizer que os homens são, em média, maiores que as mulheres não significa que todos os homens sejam mais altos do que todas as mulheres. Dizer que as mulheres têm mais fluência verbal que os homens não quer dizer que todos os homens sejam praticamente mudos. Depois vem o preconceito. O preconceito ocorre quando ingenuamente julgamos a priori uma pessoa pela média dos atributos de seu grupo. Dizer que homens têm mais facilidade para a localização espacial não habilita ninguém a destratar, desmerecer ou desqualificar uma mulher por seu modo de dirigir. Finalmente vem a confusão entre diferença e desigualdade. Nenhuma diferença anatômica ou mental entre homens e mulheres implica qualquer julgamento de valor. Todos os seres humanos devem, por princípio, ter iguais direitos e oportunidades. Não há incompatibilidade entre sermos diferentes e termos garantias de igualdade de direitos;
- … não embasa julgamentos morais, nem justifica nossas ações.
Confundir explicações científicas com recomendações ou justificativas morais é o erro mais perigoso, por seu forte conteúdo emocional. É conhecido como falácia naturalista e implica numa nivelação equivocada entre o “é” das explicações descritivas e o “deve ser” das recomendações morais. Enquanto cientistas – cientes de que todo conhecimento tem um grau de incerteza – usam o verbo “dever” no sentido de “haver uma probabilidade de” para explicar a previsão de uma possibilidade, como na frase “Se existirem componentes herdáveis na propensão ao estupro e se alguns estupros tiverem gerado filhos, então deve ter havido uma pressão seletiva favorecendo as propensões envolvidas no estupro”; Outras pessoas ouvem o verbo “deve” no sentido de “ser moralmente preferível” e acusam esses pesquisadores de estar justificando, ou naturalizando um ato brutal e criminoso, o que não é verdade. Não somos escravos das adaptações mentais, uma vez que a própria seleção por flexibilidade de repertório conforme o contexto favorece um controle consciente dos nossos comportamentos, como a infidelidade. E, sendo um ato consciente, ele não isenta a culpabilidade daqueles que, ao satisfazerem seus desejos irresponsavelmente, expõem parceiros a danos à saúde pelo sexo desprotegido e à confiança pela traição. Nossas propensões mentais não são desculpa para nenhum ato danoso;
Causas apontadas
Por que esses mal-entendidos acontecem com tanta freqüência? Provavelmente não existe uma resposta única. Diferentes explicações foram dadas, não necessariamente excludentes.
A primeira fonte de explicação foca a causa dos mal-entendidos em nossos próprios padrões cognitivos de processamento de informações. Temos a tendência a simplificar qualquer informação para reduzir a demanda por recursos cognitivos e um forte desejo de gerar previsões a partir de casos específicos, o que nos faz incorrer na generalização. Quando esses padrões cognitivos são usados na tentativa de entender a relação entre gene, ambiente e comportamento, facilmente caímos nas supersimplificações como “gene gay” ou “gene da felicidade”, na tentativa de se aplicar o modelo mendeliano, que é simples, ao comportamento, que não o é. O desenvolvimento ontogenético é uma complexa interação singular entre genes, seqüência temporal dos ambientes externos e eventos aleatórios. Por isso, ainda não foi desenvolvido um modelo didático para descrever a influência genética no comportamento de forma lógica, como no modelo mendeliano, em que um gene é igual a uma característica.
Outra fonte de mal-entendidos envolve a aparente simplicidade da teoria da evolução. A facilidade de apreender o conceito de seleção natural leva as pessoas a pensar que entenderam completamente a evolução depois de um rápido contato com a teoria. Saber o modo darwinista de explicar o tamanho do pescoço da girafa não garante pleno entendimento do evolucionismo, principalmente quando aplicado ao comportamento humano.
Valores morais e condição animal
Agora que sabemos algumas causas dos preconceitos e mal-entendidos e sabemos como resolvê-los, faça um teste: busque notícias sobre ciência que envolvam genes, comportamento e psicologia evolucionista e veja se consegue identificar algum mal-entendido. Será mesmo que depois de ler esse texto você já está “vacinado” contra os mal-entendidos? Você agora sabe dizer o que está errado quando se fala em linguagem e infidelidade inatas? Você ainda acha que estudar diferenças entre homens e mulheres na perspectiva evolucionista é dar base moral para a dominação masculina? Considera mesmo que o fato de sermos animais nos torna escravos dos nossos genes?
- …Psicologia Evolucionária, pois esta é uma tradução errônea do inglês Evolutionary Psychology.
- …Psicologia Evolutiva, pois essa terminologia designa a Psicologia do Desenvolvimento. A teoria em que a Psicologia Evolucionista se embasa é evolutiva, logo a disciplina é evolucionista. Segundo um artigo que padroniza as traduções dos termos em inglês da área de Etologia publicado em 2002 por Yamamoto e Ades, Evolutionary Psychology no Brasil é Psicologia Evolucionista.
Referências
BUSSAB, V. S. H.; RIBEIRO, F. J. L. Biologicamente cultural. In M. M. P. RODRIGUES; L. SOUZA; M. F. Q. FREITAS (Orgs.). Psicologia: Reflexões (in)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
LEWONTIN, R. A Tripla Hélice– Gene, Organismo e Ambiente. Companhia das Letras, 2002.
MEYER, D.; EL-HANI, C. N. Evolução: o sentido da biologia. São Paulo: UNESP, 2005.
OTTA, E.; RIBEIRO, F. J. L.; BUSSAB, V. S. R. (2003). Inato versus adquirido: Persistência de uma dicotomia. Revista de Ciências Humanas. Florianópolis, 2003. 34, 283-311.
PINKER, S. Tábula rasa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Discussão - 8 comentários
Caramba! Não creio que há tanto tempo navego por blogs por aí e só agora encontrei este... Não sou profissional ou acadêmico na área, mas assuntos ligados à evolução estão dentre meus favoritíssimos... E este blog é um achado precioso... Só pelas recomendações de leituras já vale a pena. Enfim... Já virei leitor de carteirinha aqui! Parabéns!
Valeu Adriano Axel!! Fico muito grato pelo incentivo e consideração!! Seja sempre bem-vindo!! E fique a vontade para trocar idéia!! Se quiser receber um email a cada texto novo mande-me um email: macvarella@yahoo.com.brAbraços
Parabéns Marco & CIA! Este blog é uma ótima ferramenta para aqueles que se interessam no tema, sejam acadêmicos ou simplismente adoradores do tema. Muito atrativo mesmo. Estou começando na área e percebi muito material interessante por aqui! Valeu
Olá! Estava fazendo uma pesquisa e encontrei este blog. Sou acadêmico e sei quantos mal-entendidos rodam as cabeças dos estudantes de Evolução ou disciplina afim. Gostei daqui e dos esclarecimentos a respeito da Psicologia Evolucionista. Já é hora do Homo sapiens acordar para a Revolução Darwinista. "Não somos o “ápice” da vida, pois não existe animal superior ou inferior, já que o formato da evolução da vida na Terra não é uma escada e sim uma árvore em que cada ser vivo existente é o melhor de seu ramo." Essa frase diz tudo!
Meus sinceros parabéns!
Somos dominados por genes ou por mal entendidos.. Smashing 🙂
Somos dominados por genes ou por mal entendidos.. Awesome 🙂
Um tema que me intriga, pois ultimamente venho refletindo sobre meus erros e acertos na minha vida, procuro analisar o quanto os meus genes infuenciaram.
Parece que os genes tem uma programação para nós e portanto de alguma forma não conseguimos fugir muito do "plano diretor celular".
Um pé de laranja sabe que não vai produzir manga e que tem que procurar a luz solar para desenvolver-se na terra. Ele (o pé) sabe tudo que precisa saber para produzir laranjas e pronto.
Aquela voz interior que muitos de nós escutamos, uns dizem que é Deus ou intuição, outros são chamados de esquizofrênicos.
Gostei muito do artigo porque esclarece muitas das minhas dúvidas.
Qualquer novidade me avisem,
Obrigado
bastante objetivo e didático. Parabéns pela iniciativa!!! Estarei acompanhando vocês e espero em algum momento contribuir para esta empolgante área de pesquisa! Abs!