Audre Lorde
(1934-1992)
por Elizângela Inocêncio Mattos,
professora da Universidade Federal do Tocantins e do mestrado acadêmico em
Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da mesma universidade – Lattes
Vida
Audre Geraldine Lorde, filha caçula de uma família de imigrantes de Grenada, ilha do Caribe, nasceu em Nova Iorque em 8 de fevereiro de 1934. Teve desde cedo uma proximidade com a escrita e a força da palavra, escreveu poemas desde criança, tendo, mesmo em sala de aula, estado em um lugar à frente de seus colegas de turma no que se refere à escrita, como bem relatou em Zami: uma nova grafia do meu nome – uma biomitografia (1982), texto em que encontramos a melhor narrativa sobre sua vida contada por ela mesma. Ali ela mostra a infância no Harlem, seu percurso de vida e as questões que tomaram a sua atenção desde cedo, a saber: as injustiças do racismo, a homofobia e o sexismo.
É em Zami que podemos ver a pequena Audre Lorde sendo advertida pela professora — por não fazer o que ela pedia, não seguir instruções — quando, diante de uma tarefa para escrever somente uma letra, escreveu de maneira precoce o seu nome, pois já havia aprendido com sua mãe em casa.
A escritora, ao retratar o percurso de sua vida, narra a infância marcada pela personalidade forte da mãe, pelo pai e pelas duas irmãs mais velhas. As regras em casa, o modo rígido relatado por ela nas linhas de sua biomitografia (termo, aliás, que considera todas as mulheres que fizeram parte de sua vida), alterando biografia e ficção. Pois é exatamente assim que ela se refere na dedicatória: “para as partes artesãs de mim mesma”. Ademais, Zami, como uma nova grafia de seu nome, descreve a Amiga, a conjugação dela e de todas as mulheres de sua vida.
Seu percurso começa com a referência à sua mãe, como ela mais tarde desejará ser: uma mulher diferente de todas as demais. Assim ela escreveu em Zami: “Já que meus pais compartilhavam toda a formulação de regras e decisões, aos meus olhos de criança minha mãe deveria ser outra coisa que não mulher. Ao mesmo tempo, ela certamente não era um homem” (Lorde, 2021, pp. 38-39).
Em outro relato de sua infância, ela narra uma conversa com as irmãs, Phyllis e Helen. Audre Lorde, então com seis anos de idade, questiona-as sobre o significado de uma pessoa ser “de cor”. Podemos antever nesse episódio emblemático que houve, desde muito cedo, o reconhecimento de questões importantes, no caso, o racismo. No ocorrido, diante do silêncio das irmãs, ela disse que, se perguntada, diria ser da mesma cor de sua mãe, considerada, quando chegou nos Estados Unidos, uma “hispânica” de pele clara. Embora não lhe tivessem explicado a verdadeira razão atrelada na conversa: a raça presente na sociedade e certamente, dentro de sua casa, a pequena Audre Lorde, diante da resposta negativa das irmãs, levaria os seus efeitos para as linhas de suas obras.
Conhecer a vida de Audre Lorde é fundamental para adentrar a obra que se compõe concomitante a ela. A escritora, poeta, feminista de ascendência caribenha graduou-se na Hunter College entre 1951 a 1959, obtendo o mestrado em biblioteconomia pela Columbia University em 1961. Seu primeiro volume de poemas foi publicado em 1968: The First Cities [As Primeiras Cidades]. Ela demonstra nas obras um ativismo potente, chamando a uma ruptura da estagnação, possível somente pela ação, condição indubitável para romper o silêncio que delega pessoas a determinados lugares. Dentre suas obras, podemos destacar as publicadas no Brasil: Entre Nós Mesmas [1976] (2020), A Unicórnia Preta [1978] (2020), Sou sua Irmã [1984] (2020) e a já mencionada Zami [1982] (2021).
Em 1978, Audre Lorde foi diagnosticada com um câncer de mama. Ela escreveu sobre a experiência de decidir pela mastectomia em The Cancer Journals [Os diários do Câncer], em 1980. Em 1984 foi para a Alemanha, como professora visitante. O resultado de sua estadia influenciou o movimento afro-alemão e a sua contribuição para o engajamento das mulheres, fato que podemos ver no documentário “Audre Lorde – The Berlin Years, 1984 to 1992”. O documentário apresenta sua atuação para além da sala de aula, na qual buscou enaltecer o protagonismo da mulher. Ela teve dois filhos, Elizabeth e Jonathan, e morreu na ilha de Saint Croix, no Caribe, aos 58 anos.
Obra
Transitando entre vários estilos, da poesia ao ensaio, relatos de memória e de suas experiências, a autora coloca sua vida a serviço da obra. Do inicial livro de poemas The First Cities [As Primeiras Cidades] 1968, ao também livro de poesias intitulado Cables to Rage [Cabos para a Fúria] 1970, ao relato de seu momento de vida em The Cancer Journals 1980, Audre Lorde discorre sobre sua vida e luta permanente pelo reconhecimento da diferença, ao qual nos detemos, para efetivamente demonstrar que seu efeito não seria a exclusão, mas condição de potência e reconhecimento de si.
A obra de Audre Lorde apresenta elementos fundamentais para compreender o impacto da necessidade de delimitar uma condição ou modo de existência para uma pessoa. Ele acarreta uma violência que, ainda que sutil na maioria das vezes, ignora um tanto de diferenças que são, elas mesmas, constituintes dela. Dizendo de outro modo, sua reivindicação pelo reconhecimento da diferença resulta em não encerrar uma pessoa em uma classificação estática e única, imputando-lhe uma classificação a partir do juízo da diferença. Assim ela escreveu no discurso “Diferença e Sobrevivência: Um discurso no Hunter College”, publicado nos escritos de Sou Sua Irmã:
Ser muito bom em alguma coisa é visto como uma diferença positiva, então vocês serão encorajados a pensar em si mesmos como uma elite. Ser pobre, de cor, mulher, homossexual ou de idade é considerado negativo, de modo que essas pessoas são encorajadas a pensar em si como dispensáveis. Cada uma dessas definições impostas tem lugar não no crescimento e no progresso humanos, mas na desunião, pois representam a desumanização da diferença. (Lorde, 2020c, p.43).
A obra e a vida de Audre Lorde, ou a vida e a obra, andam juntas, em um processo permanente, de modo que a autora se coloca no texto escrito, nas conversas e palestras proferidas. Seu protagonismo certamente visa a fortalecer e despertar as demais pessoas para o reconhecimento de si como condição fundamental para uma existência efetiva e verdadeira. Somente após esse processo seria possível olhar e considerar o outro. Ela não é uma autora que tão somente estuda e lê, com certo distanciamento entre temas abordados e a sua vida. É uma autora que estuda e lê sobre si mesma, ela está sempre presente, ela é precisamente a obra de sua vida. Eis um aspecto fundamental a fim de ser possível reconhecer e pautar o pensamento feminista tal como apreendido em sua obra: a narrativa em primeira pessoa imprime a presença da autora que fortalece toda argumentação de sua escrita.
Ademais, cumpre enfatizar que sua obra corrobora uma emergência em abarcar as questões referentes a gênero, sexualidade e raça, implícitos na experiência da mulher negra. Seu conhecimento se realiza a fim de erradicar as desigualdades entre elas e todas as demais, visto serem seu reconhecimento e visibilidade condições fundamentais para dirimir a desigualdade. Desse modo, ao chamar a atenção para o relato da mulher negra e sua peculiaridade, Audre Lorde se aproxima do que Alice Walker cunhou como womanist, para tratar da experiência da mulher negra e de como ela seria afetada pelos modos de discriminação e opressão. As mulheres oprimidas, relegadas ao silêncio, em razão da sexualidade, da classe e da raça, são reconhecidas por Audre Lorde a partir da própria escrita, descrevendo suas complexidades, ao passo que lhes garantindo visibilidade. Sua obra supre uma lacuna do silêncio sobre as questões da mulher negra, o que certamente enfatiza a questão da interseccionalidade como fundamental para se enfrentar toda forma de opressão.
A comunicação verdadeira e produtiva seria possível a partir do reconhecimento por cada um de suas próprias diferenças, mas elas não encerram o discurso, ao contrário, tornam-no possível. Eis uma reflexão que a obra demonstra e a que nos provoca. As relações humanas compõem o ser muito mais do que aquilo que tenta definir os humanos e encerrá-los como seres estáticos. “Mas ela enfatiza que práticas relacionais são mais fundamentais do que categorias para as pessoas, porque tais categorias são inevitavelmente inadequadas para representar a complexidade da vida de qualquer indivíduo” (Olson, 1998, p.3).
Dessa maneira, Audre Lorde toma a diferença como um aspecto positivo na união entre as pessoas, visto que a primeira condição seria que cada um pudesse reconhecer as suas para assim não incorrer em ter nomeadas as suas diferenças por outrem. Eis um aspecto importante da consciência de si em sua obra de luta e resistência. Ela toma a diferença como ponte, e considera que o que se precisa combater é o silêncio decorrente da diferença tomada como exclusão e apagamento. E seria exatamente na prática relacional, a que se refere Olson, que esse processo logra êxito. Na relação entre as pessoas, muito mais que nas definições sobre elas, podemos apreender a singularidade humana. Assim ela escreveu em Sou sua irmã, texto de 1984: “No entanto, como em todas as famílias, às vezes temos dificuldade de lidar de maneira construtiva com as diferenças genuínas entre nós e de reconhecer que a união não exige que sejamos idênticas umas às outras” (Lorde, 2020c, p.13).
Ao analisar a prática discursiva de Audre Lorde, Olson apresenta uma estratégia da autora que se evidencia na força do reconhecimento de si como condição de poder necessária a fim de combater ou dialogar com as práticas hierárquicas que constituem o âmbito da linguagem e da vida social. Assim:
Lorde usa uma retórica técnica de primeiro promover a identificação entre as mulheres em oposição ao patriarcado como meio de trazer esses insights sobre práticas relacionais para suportar relações análogas de dominação entre mulheres de todas as classes, idades, raças e sexualidades (Olson, 1998, p.7).
Essa promoção de identificação de que fala Olson, compreendo ser o reconhecimento de si a partir das relações entre as mulheres, do diálogo onde a diferença seja efetivamente considerada. Tomar a si mesma para poder atuar efetivamente em uma comunicação positiva.
No já mencionado texto “Diferença e Sobrevivência: Um discurso no Hunter College”, discurso não datado, Audre Lorde diz que: “É no interior das nossas diferenças que somos mais poderosos e mais vulneráveis, e afirmar as diferenças e aprender a usá-las como pontes entre nós, em vez de como barreiras, são tarefas bem difíceis” (Lorde, 2020c, p.42). O reconhecimento da diferença constitui o lugar de força e união, e não de distanciamento entre as pessoas. Mais uma vez, esse reconhecimento é parte constituinte do ser, da consciência de si, e considerá-lo compõe atributo primordial que tende a fortalecer a união em lugar de separar as pessoas.
Algumas distorções foram criadas em torno das diferenças humanas, e todas elas servem ao propósito da separação. É o trabalho de uma vida inteira extraí-las do nosso dia a dia, ao mesmo tempo que as reconhecemos, regeneramos e as definimos conforme são impostas, para então explorar o que elas podem nos ensinar sobre o futuro que devemos todos compartilhar (Lorde, 2020c, p.44).
Trata-se certamente de uma chamada à consciência de si em toda amplitude, tomando na diferença a condição primordial para a voz ativa da ação necessária rumo ao pertencimento. Nesse sentido, há uma inversão apresentada: a diferença não constitui componente de exclusão, ela necessita ser reconhecida e incluída. Se por vezes tomamos a diferença como fator de exclusão, resultando assim na separação inevitável, sua obra corrobora a união para a ação. O reconhecimento da diferença como constituinte do indivíduo é condição para seu estar no mundo. A partir dele, seria possível a ação coletiva, pois a diferença não atuaria separando, deixando de lado o que ela aponta, no discurso: “Quando a ignorância vai acabar?”, discurso na Conferência Nacional de Gays e Lésbicas do Terceiro Mundo, como a “velha tática de ‘dividir para conquistar’” (Lorde, 2020c, p.52). Por isso a importância de tomar o aspecto positivo da diferença, não como fator de exclusão (este seria o caminho comum e já percorrido).
Sua vida e obra relatam os perigos de encerrar uma pessoa em uma categoria. No texto “Não Existe Hierarquia de Opressão”, publicado em 1983, podemos compreender dois elementos importantes em sua obra. O primeiro é que, como o próprio título confirma, não é possível haver hierarquia de opressão, pois onde uma ocorre, decorrem todas as outras. Assim:
Dentro da comunidade lésbica, sou negra, dentro da comunidade negra, sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão que envolve gays e lésbicas, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque à lésbicas e gays é uma questão que envolve os negros, porque milhares de lésbicas e gays são negros. Não existe hierarquia de opressão (Lorde, 2020c, p.64).
O segundo é a questão do lugar social, a determinação como fundamental para se caracterizar uma pessoa, quando na verdade ela contém em si muitas e tantas outras possibilidades de realização. Sua vida não se encerrou em uma única categoria social, ela foi muito mais que uma definição e essa dinâmica encontrou seus entraves:
Como negra, lésbica, socialista, mãe de dois, entre eles um menino, e integrante de um casal inter-racial, com frequência me vejo parte de um grupo em que a maioria me define como desviante, difícil, inferior ou simplesmente ‘errada’ (Lorde, 2020c, p.63).
Eis um exemplo de como a intolerância decorre também da necessidade em delimitar a pessoa em uma única condição de existência. Sua vida como movimento encontrou julgamentos que tendiam a diminuir seu papel em determinados grupos.
Ora, eis um ponto interessante e bastante delicado se considerarmos o interior dos grupos de pessoas que compartilham um certo ideal. Há uma tendência a se encerrar em uma única forma de se portar no mundo e isso muitas vezes nos acompanha por toda a vida, sendo qualquer possibilidade de mudança considerada uma ação inadequada. Mas somos prontos e acabados? Qual o impedimento de uma mulher negra lésbica estar em um grupo de mães, por exemplo? É tomarmos uma diferença não como ponto evidente de exclusão, mas considerá-la como ponto de força para remeter todos a ação, visto que no interior dos grupos sociais haveria uma tendência à hierarquia de opressão, enquanto Audre Lorde argumenta exatamente contra essa hierarquia.
Os textos de Audre Lorde, carregados de uma entrega pessoal poderosa, demonstram uma autora que tem efetiva consciência de si e de como o reconhecimento se fortalece pela maneira como se coloca no mundo. No texto: “Minhas palavras estarão lá”, que compõe a obra Sou Sua Irmã, escreveu sobre suas várias identidades:
Mas, para mim, é necessário e criativo lidar com todos os aspectos de quem sou, e tenho dito isso há muito tempo. Não sou apenas um fragmento. Não posso simplesmente ser uma pessoa negra e não ser também mulher, assim como não posso ser mulher sem ser lésbica. […] O que acontece quando você estreita sua definição para aquilo que é conveniente, ou que está na moda, ou o que é esperado, é a desonestidade pelo silêncio (Lorde, 2020c, p. 79).
Sua obra busca romper esse silêncio. Pois é possível ser em si mesma, conter em si mesma, várias identidades, e elas todas são componentes deste ser, não poderiam ser pensadas separadamente de acordo com determinadas situações, pois, de outra maneira, teríamos sempre que perguntar: onde é possível abarcar o indivíduo tal como se realiza no mundo?
É em sua obra que Lorde exerce sua existência como motor para a ação e para despertar os demais para a ação e o reconhecimento de si. Por meio de sua arte, efetua o elo entre a escrita de uma vida e a vida em uma escrita, acarretando dessa forma uma obra poderosa, que parece alertar, chamar à ação. Para ela, um escritor é, por definição, um professor, um ser que incita a ação, pois é nela que se pode fazer presente e atuante.
Em Entre nós mesmas, de 1976, a reunião de poemas demonstra a militância e força de sua entrega em um conjunto de textos potentes que se propõem à ação e atuação permanentes. A edição brasileira, como também a edição de A Unicórnia Preta, oferecem a tradução com a versão no original, possibilitando aos leitores conhecerem na língua original, um ganho significativo para a leitura e estudo de sua obra.
Os poemas que compõem a obra de 1978, A Unicórnia Preta, reforçam a potência da palavra como condição para enfrentamento de uma estrutura patriarcal e racista que relega ao silêncio vozes destinadas à ação.
A publicação de algumas de suas obras no Brasil nos permite, primeiro, reconhecer os esforços de editores e tradutores por proporcionar aos leitores brasileiros o acesso a essa autora fundamental para se compreender o papel da escrita como força criativa, a importância do reconhecimento de si mesmo e da própria diferença como propulsores de uma ação positiva. Ademais, tais esforços nos remetem a conhecer, discutir e nos aprofundar em sua obra, com todo o engajamento que demonstrou em sua vida. Em uma passagem de The Cancer Journals, Audre Lorde nos mostra a força para seguir, a força para lutar, para enfrentar e agir. Fiquemos com ela:
Como mulheres, fomos criadas para temer. Se eu não posso banir o medo completamente, posso aprender a contar menos com ele. Pois então o medo não se torna um tirano contra o qual desperdiço minha energia lutando, mas um companheiro, não particularmente desejável, mas alguém cujo conhecimento pode ser útil (Lorde, 1980, p.15).
Referências Bibliográficas
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Em Inglês
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Traduzidas para o português
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- Outros materiais
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