Feminismo, educação libertária e antifascismo no pensamento de Maria Lacerda de Moura

(1887 – 1945)

Por Camila Jourdan, Professora do departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – lattes

PDF – Maria Lacerda de Moura

Informações Biográficas

            Maria Lacerda de Moura foi uma pensadora anarquista brasileira, feminista e pacifista. Ela nasceu em 1887, na cidade de Manhuaçu, em Minas Gerais, e morreu em 1945, no Rio de Janeiro. Filha de uma família de classe média, cursou a Escola Normal em Barbacena, tornando-se professora primária. Seu pai era espírita e fortemente anticlerical, a educação laica das filhas foi uma prioridade na vida dele e uma influência que Maria Lacerda carregou durante toda vida. Além disso, a família recebia e ajudava imigrantes pobres. Ainda em Barbacena, enquanto professora, Maria Lacerda desenvolveu um trabalho junto às mulheres da região, organizando mutirões para a construção de casas populares. Também nesta época fundou a Liga contra o Analfabetismo, onde dava aulas de alfabetização gratuitas para jovens e adultos.

            No início da década de 20, Maria Lacerda foi viver em São Paulo, onde teve contato com o movimento operário anarquista. Em 1921, ela participou da Fundação da Federação Internacional Feminina. Neste período, chegou a participar do movimento sufragista, que abandonou muito rapidamente, considerando que a pauta pelo direito ao voto seria uma pauta burguesa e menos importante diante de outras questões muito mais urgentes que as mulheres enfrentavam na sociedade naquele momento. Assim, ela se torna uma crítica do feminismo liberal e é considerada também uma precursora do chamado anarco-feminismo. Em 1923, Maria Lacerda criou a revista Renascença, uma revista de arte e pensamento que contava com a colaboração de anarquistas, feministas e comunistas brasileiros e estrangeiros. A pensadora também contribuía com artigos para os periódicos anarquistas ‘A Plebe’ e o ‘O Combate’. É autora de uma extensa obra, com vinte livros publicados, além de conferencista no Brasil e em outros países da América do Sul, educadora libertária e militante.

            Ela foi extremamente ativa como intelectual em uma época na qual a participação da mulher na sociedade era fortemente questionada, sobretudo se tratando de uma mulher livre, que lutava contra todas as opressões e defendia que as mulheres podiam e deviam pensar por si mesmas. Se casou aos 17 anos com Carlos Ferreira de Moura, de quem veio a se separar em 1927. Nunca teve filhos biológicos, acredita-se que era estéril. Porém, ela adotou um menino, seu sobrinho, e uma menina, ambos órfãos. Em sua obra, questionou fortemente a maternidade compulsória e o casamento, que acreditava matar o amor. Foi vegetariana por toda a sua vida, o que também não era nada comum na época.

            Entre 1928 e 1937, viveu em uma comunidade agrícola autogerida em Guararema, interior de São Paulo, cuja formação era de anarquistas e desertores espanhóis, franceses e italianos da Primeira Guerra Mundial. Nesta comunidade, ela vivenciou o amor livre e plural que defendia, mas a experiência comunal sofreu repressão da ditadura do Estado Novo, e teve que ser desfeita. Neste período, Maria Lacerda chega a ter sua prisão decretada pela ditadura Vargas, tendo que ficar foragida por um tempo. É este contexto de perseguição política que a leva para o Rio de Janeiro, ao final da década de 30.

            O período final da sua vida é marcado pelo retorno ao espiritualismo, Maria Lacerda se afasta um pouco da reflexão sobre a luta social e se aproxima mais da defesa de uma religiosidade interior. Faleceu em 20 de março de 1945, aos 58 anos, no seu apartamento na Ilha do Governador.

            Suas principais influências foram: Maria Montessori; Sébastien Faure; Leon Tolstói; Emma Goldman; Paul Robin; Francisco Ferrer y Guardia; Ellen Key; Han Ryner; Kropotkin e José Oiticica.

            De fato, falar de Maria Lacerda de Moura como uma filósofa é um grande desafio porque, apesar da vasta produção biográfica, a autora não é sequer mencionada em estudos especificamente sobre o anarquismo ou o feminismo no Brasil. Mesmo sua contribuição pedagógica é largamente desconsiderada. Esse apagamento histórico, apesar da grande importância da sua obra, se deve em ampla medida ao caráter desviante de seu pensamento. Mesmo sendo influenciada por várias correntes consagradas entre a intelectualidade engajada do início do século XX, Maria Lacerda de Moura sempre fez questão de manter sua total independência intelectual, não se vinculando jamais completamente a nenhuma dessas correntes. Ademais, ser mulher, anarquista e feminista nunca foi fácil pra ninguém em nenhuma época. Como ela mesma afirmou sobre si: “sou uma grande indesejável”. Individualista[1] demais para o pensamento dominante comunista; pacifista demais para as principais abordagens anarquistas; antiliberal demais para o feminismo reinante na época, Maria Lacerda de Moura acaba por cunhar um pensamento próprio e original, extremamente atual, apesar das temáticas engajadas nas lutas da época, mas cujas principais bases e conceitos podem ser resgatados para a reflexão no momento presente.

            Uma educação libertadora

            Uma posição que Maria Lacerda sustentou durante toda sua vida foi a de que o caminho para mudar a sociedade seria a educação. Uma transformação não violenta, como a autora defendia, seria apenas possível pela ação educativa. Ela acreditava que uma revolução nos valores e nas mentes seria condição necessária para a revolução social não-violenta. Mas, para isso, seria preciso que a escola não fosse opressora nem baseada no sistema de recompensas e castigos. Seria preciso ainda banir todo militarismo e a religião da educação. A escola deveria agir como uma célula transformadora da sociedade, a partir da qual se poderia incentivar a reconstrução valorativa de outros âmbitos. Dessa forma, transformar a escola, para que ela não reproduzisse as hierarquias socais e se transformasse em agente criativo da transformação, seria o passo fundamental de qualquer processo revolucionário.

            É importante ressaltar que a educação naquele momento não era destinada a todas as parcelas da sociedade, havia grande distinção social no acesso à educação, como ainda há hoje, mas a grande massa de trabalhadores assalariados era composta por crianças, mulheres e homens, aos quais a instrução básica era simplesmente negada. Neste sentido, Maria Lacerda defendeu uma educação que fosse universal e igualitária como modo de resistência. Ela acreditava no poder libertador da educação racional e integral. Para a pensadora, a educação deveria guiar-se pelos seguintes princípios: contato com a natureza; não explorar ninguém; ser solidário com os demais; amar a liberdade e cultivar a paciência. A escola deveria incorporar esses valores nas suas práticas e no seu cotidiano, educando pelo exemplo. Além disso, para ela, seria fundamental respeitar a espontaneidade e a individualidade das crianças na relação de ensino-aprendizagem.

            Maria Lacerda foi uma das grandes defensoras da educação mista entre meninas e meninos, e que também conjugasse a formação para trabalho intelectual com a formação para o trabalho manual, de modo que estes se completassem sem fortalecer castas pensantes em detrimento dos trabalhadores. Isso seria importante para que a escola não fosse uma simples reprodutora dos valores burgueses. Maria Lacerda acreditava na revolução social e, por isso, acreditava que o futuro seria de uma sociedade de trabalhadores igualitários. Neste sentido, a escola deveria expressar essa realidade porvir, ensinando a todos que o trabalho manual e o intelectual não se separam, de mesma forma que as pessoas não devem ser cindidas entre mentes-brilhantes e corpos-explorados. A pensadora, portanto, acreditava que essa seria a verdadeira educação revolucionária: a educação intelectual-profissional, pela qual toda escola seria ao mesmo tempo laboratório e oficina para a autonomia. Seu pensamento é, neste sentido, profundamente inspirador, pois a pensadora propõe uma abordagem da educação que não separe mente e corpo, estabelecendo a junção do trabalho manual com o trabalho intelectual, em uma maneira integralizada de tratar as pessoas, que se preocupe com o indivíduo como um todo. Além disso, a educação não deveria incentivar a obediência e a submissão, ao contrário, a educação que ela defende é aquela que pode ser um modo de incentivar a insubmissão criativa e os questionamentos constantes, entendidos por ela como engrenagem da construção de conhecimentos e da transformação social.

            Além de uma educação libertária, que não se fundasse na autoridade centralizada do professor em sala de aula; que considerasse a vivência particular de cada estudante na construção dos saberes; que recusasse o sistema de punições e recompensas, com castigos e notas e que fosse de fato igualitária entre classe e gêneros, Maria Lacerda salientou em toda sua obra a importância da educação das mulheres para sua libertação intelectual e financeira. A mulher teria o seu desenvolvimento intelectual negado e diminuído em todos os níveis da educação e, por isso, se tornaria uma presa fácil do patriarcado. Seria fundamental que a luta feminista levasse em conta a necessidade de uma educação racional para meninas, que cultivasse valores tidos como exclusivamente masculinos, como a reflexão crítica, a coragem e a liberdade, e que não se fundasse na manutenção do papel da maternidade como centro da vida das mulheres. Inúmeras vezes a autora ressalta que ‘ser mãe não é uma profissão’ e que as meninas teriam seu desenvolvimento negado porque a sociedade colocaria a maternidade como objetivo último da sua existência, educando-as para serem enfeites ou servas cuidadoras dos homens. Maria Lacerda procura ressaltar que a maternidade precisa deixar de ter este papel central na educação das meninas para que as mulheres ganhem de fato um estatuto social como, antes de tudo, pessoas, e não cuidadoras ou enfeites passivos (Cf.: MOURA, 1923; MOURA, 1924).

Reflexões sobre o Fascismo

            Talvez a característica mais atual do pensamento de Maria Lacerda de Moura seja a sua abordagem do fascismo presente em Fascismo, o filho dileto da igreja e do capital (1935). Nesta obra, a pensadora defende que o sistema capitalista é sempre já potencialmente fascista e pretende ao mesmo tempo demonstrar sua relação interna com a instituição religiosa, a igreja e o clero, que ela diferencia do que seria um sentido profundo de religiosidade e do próprio Cristo. Para ela, a igreja seria o verdadeiro anticristo. Assim, ela pretende mostrar como capitalismo; igreja e fascismo se fortalecem ao longo da história, associando os princípios do nazismo com os da inquisição e o ódio à racionalidade e à ciência. Além disso, ela ressalta mais uma vez a importância do domínio da educação para que esse projeto se torne possível:

Vem de longe a aliança entre o altar e o trono: a Igreja sabe contar com o fator tempo para sugestionar o subconsciente e apoderar-se da razão, falseando o raciocínio até o obscurecimento absoluto da reflexão. Para isso, reivindicou sempre o direito à educação. Foi através da escola que chegou a reduzir a razão humana à expressão de zero. (1935, p.14)

A obra analisa o racismo escravocrata da igreja, o terror e a violência contidos nas escrituras selecionadas pelos Concílios. Particularmente, Maria Lacerda ressalta as execuções, perseguições e o machismo presentes no Antigo Testamento, além de como estes aspectos se perpetuariam na cultura moderna, no ódio e culpabilização das mulheres, na legitimação da tortura e dos assassinatos em nome de Deus. A pensadora mostra como o Estado totalitário fascista faz uso desses elementos religiosos disseminados pela educação no imaginário popular de maneira a perpetuar e expandir seu poder.

            A autora vai do macro ao micro, passando das relações entre Estado e Igreja, no cerne do fascismo, para a relação entre a hipocrisia contida na defesa da família tradicional e o militarismo ditatorial. Maria Lacerda de Moura retoma o culto ao autoritarismo e ao Estado no cerne do fascismo, citando os ditos de Mussolini pelos quais, no fascismo, o Estado e o povo se tornariam equivalentes. O fascismo seria constituído pelas forças burguesas e capitalistas em seu aspecto mais degenerado, o capitalismo esgotado traria à tona o fascismo, mas essas forças já estariam presentes em seu cerne. “As ‘massas’ fascistas, racistas ou integralistas saem da pequena burguesia inconsciente e insatisfeita, comprada pelo capitalismo, ou saem dos ex-combatentes da grande guerra.” (1935, p.107) Outra formulação muito boa, e bastante atual, aparece na explicação que a autora fornece da equivalência entre fascismo e ‘Estado no qual a polícia tem poderes de governo’. Um elemento fundamental do fascismo seria o poder conferido às forças de segurança. Além disso, o fascismo teria uma dimensão espetacular, por meio do culto emocionado de símbolos militares de guerra acompanhado da empolgação discursiva por meio da oratória de líderes.

            Por fim, ela defende ainda uma resistência estética ao fascismo por meio da arte. A arte semearia a alegria e o espírito de revolta incompatíveis com a mediocridade fascista em todos os âmbitos da vida, de tal modo que não seria preciso se filiar a uma organização ou partido, que se julgariam donos da verdade, para combater o fascismo, seria possível fazer isso enquanto indivíduo e em todos os aspectos da nossa vida. Recusar a busca por poder e o espírito de autoridade seria recusar colaborar com os princípios do fascismo disseminados pela sociedade. A questão da recusa aqui é fundamental, cada qual poderia ser uma resistência ao fascismo na medida em que recusasse reproduzir instrumental e cegamente seus princípios, negando-se a exercer o papel de polícia ali mesmo onde se encontra. Maria Lacerda de Moura chama isso de ‘nova tática revolucionária’ por meio da resistência ativa e da não-cooperação. Seria impossível combater o fascismo realmente por meio de um Estado e da guerra, porque estes meios apenas fortaleceriam elementos fascistas, o verdadeiro combate ao fascismo seria não-estatal e se daria por “um individualismo do espírito livre associado a um comunismo de mãos”, isto é, do trabalho, o que para a autora seria incompatível com os princípios do fascismo.

            A Mulher é uma degenerada?

            Maria Lacerda de Moura é a grande precursora do anarco-feminismo no Brasil. O pensamento feminista da autora é extremamente atual, pois questiona os pressupostos do patriarcado, colocando em xeque a maternidade compulsória e a base dos comportamentos impostos às mulheres ainda hoje, sendo precursora também no que se refere às reivindicações quanto ao prazer, a liberdade sexual e o direito ao próprio corpo , bem como sua suposta determinação biológica das mulheres. De fato, Maria Lacerda é ainda hoje uma voz importante na crítica ao determinismo biológico dos papéis de gênero.

            A pensadora recusou as evidências, que se propunham científicas do começo do século 20, e que pretendiam provar a superioridade biológica masculina. Que ela tivesse que dialogar com tantos absurdos mostra como eram fortes os preconceitos na época. Neste ponto, ela ataca diretamente autores como Miguel Bombarda, Cesare Lombroso e Gugliemo Gugliemo Ferrero (em: MOURA, 1924)[An1] , em suas observações preconceituosas sobre o corpo da mulher e a definição do feminino a partir da centralidade do útero. Eram comuns naquela época argumentos eugenistas, bem como análises anatômicas enquanto determinantes do caráter, da personalidade e do comportamento humano. Assim, a posição dominante contra o feminismo e a participação da mulher na sociedade fundava-se em teorias que se passavam por ciência oficial, mesmo que não tivessem nenhuma base empírica. Uma boa parte delas nos aparece hoje simplesmente como contrassensos. Maria Lacerda questionou a suposta inferioridade cerebral da mulher, refutando a relação entre o tamanho do cérebro e a inteligência. Todo seu argumento neste sentido vai na direção de mostrar que a inferioridade da mulher é uma construção social, fruto do machismo e da recusa à educação aos quais são submetidas as mulheres, e não algo natural ou biológico. Os homens teriam interesse em conservar a heteronomia das mulheres para manter sua dominação e exploração; para se manterem no papel de chefes da casa e provedores; para serem servidos em todos os sentidos. E as mulheres, muitas vezes por comodismo preguiçoso, por uma educação que incentiva a submissão e por não perceberem o quão danoso isso seria para suas vidas, se conservariam também neste lugar.

            Ela também questionou o feminismo liberal por não acolher mulheres negras e pobres. Maria Lacerda denunciou a hipocrisia da sociedade burguesa que proibia as mulheres brancas da classe alta de trabalhar, enquanto explorava o trabalho das mulheres proletárias. Ela ressaltou que a educação da mulher deveria prepará-la para sua própria subsistência (Cf.: MOURA, 1921; MOURA, 1924). Maria Lacerda de Moura critica a separação de estereótipos colocada como possibilidades para o ser feminino na época: por um lado, a “melindrosa”, mulher enfeite; por outro, a mãe dona de casa cuidadora; por outro ainda, a prostituta ou a mulher proletária, sendo que uma não se confundia com a outra e cada uma sofria uma opressão própria. Se compararmos com a situação atual, o que vemos é que estes estereótipos estão longe de desaparecer, e que a exploração das mulheres não deixou de existir nos termos que havia antes, mas sofreu especializações em reação às próprias tentativas de emancipação. É comum vermos hoje uma mesma mulher acumulando todas essas funções e sofrendo com todos os estereótipos, tentando ser ao mesmo tempo uma mãe e dona de casa excepcional; uma profissional competente na sua área de atuação; além de manter-se sempre bela e arrumada, desejável e sexualmente ativa. Resulta disso mulheres super exploradas, estressadas e culpadas, pois precisam ser sempre mais, verdadeiras super-humanas acumulando todas as funções e, ainda assim, objetificadas.

            Para ela, a opressão objetificadora da mulher seria a base de outras opressões, como a de classe.[2] Neste sentido, a autora opera uma articulação bastante original entre feminismo e anticapitalismo. Por um lado, a submissão das mulheres seria fundamental para a manutenção da ordem capitalista, e por isso seria ainda sustentada pela religião, pelo Estado e pela ciência da época. Por outro lado, a ordem capitalista seria fundamental para a continuação da opressão sobre as mulheres, de tal modo que a emancipação total das mulheres só seria possível em outra ordem social e, por isso, o feminismo deveria ser sempre também necessariamente revolucionário.

Perguntam-me o que penso a respeito da emancipação feminina. Para mim, é mais um elo na emancipação humana. A organização social de prejuízos e privilégios, baseada no capital e no salário, na exploração do homem pelo homem, civilização industrial-burgueza, nunca emancipará nem ao homem (…), nem à mulher.
Dentro da sociedade capitalista a mulher é duas vezes escrava: é a ‘protegida’, a tutelada, a ‘pupila’ do homem, a criatura domesticada por um ‘senhor’ cioso, e, ao mesmo tempo, é escrava social de uma sociedade baseada no dinheiro e nos privilégios mantidos pela autoridade do Estado e pela força armada para defender o poder, a autoridade, a propriedade privada, o patriotismo monetário.[3]

            Maria Lacerda foi uma grande crítica da família tradicional como célula da opressão social. Para ela, o amor só pode ser plenamente vivido fora do casamento, de maneira livre e plural. Ela desenvolveu reflexões extremamente avançadas sobre este tema. O amor seria a principal força que motivaria o ser humano e, portanto, não deveria ser submetido por nada. Maria Lacerda entendia que o amor seria justamente o afeto capaz de romper com o princípio do ego e, por isso, seria contraditório com o ciúme. O amor plural seria aquele que se divide com mais de uma pessoa, sem possessividade e sem, no entanto, perder sua essência. A pensadora equaciona o amor ao princípio máximo da vida e, por isso, acredita que este sentimento é capaz de romper com as convenções sociais e outras amarras que limitam o indivíduo e seu pleno desenvolvimento. Ela é inspirada neste ponto pelas reflexões de Han Ryner, filósofo do amor plural e libertário. A fidelidade não teria, para a pensadora, nenhuma relação com a monogamia, que seria de fato uma maneira de manter as mulheres como propriedades dos homens, até porque não valia de fato para estes últimos (Cf.: MOURA, 1933). Neste sentido, ser fiel significa ser sincero, e isso inclui não ser hipócrita sustentando uma exclusividade irreal. O desejo por outra pessoa não deveria ser ofensivo, nem significaria a morte do amor entre um casal. O mais importante seria a disposição de ambos para não se magoarem e para estabelecerem acordos bons para os envolvidos, de forma que mesmo praticando o amor plural, nenhuma das pessoas amadas sofresse prejuízos quanto aos sentimentos devotados. Assim,Maria Lacerda de Moura critica o mito do amor romântico, que teria sido tão nefasto para as mulheres, e a busca por um único parceiro em uma vida monogâmica, que seria uma forma de dominação. Isso estaria no cerne da educação afetiva da mulher, que a levaria a acreditar nessa perspectiva do “único grande amor”. Assim, a mulher se tornaria presa cativa na família tradicional, enquanto os homens seriam incentivados a ter várias experiências e expandir suas possibilidades. A mulher se tornaria assim um satélite de um homem, girando sua existência em torno dele de modo submisso sem buscar estudar, viajar e desenvolver-se.

OBRAS DE MARIA LACERDA DE MOURA

MOURA, Maria Lacerda de. Em torno da Educação. São Paulo: Teixeira, 1918.

MOURA, Maria Lacerda de. Renovação. Belo Horizonte: Athene, 1919.

MOURA, Maria Lacerda de. A Mulher Brasileira e o Problema Trabalhista. Juiz de Fora, [s/n], 1920.

MOURA, Maria Lacerda de. O Problema da Educação. Santos: A Tribuna, 1921.

MOURA, Maria Lacerda de A Fraternidade e a Escola. São Paulo: União dos Trabalhadores Gráficos, 1922.

MOURA, Maria Lacerda de. A Mulher e a Maçonaria. São Paulo: Globo, 1922.

MOURA, Maria Lacerda de. A Mulher é uma Degenerada? São Paulo: Paulista, 1924. (Reimpresso por: Tenda de Livros em 2018) Disponível em: https://tendadelivros.org/marialacerdademoura/wp-content/uploads/2020/03/MulherDegenerada_final_OK.pdf Acessado em: 08/07/2020

MOURA, Maria Lacerda de. A Mulher Moderna e seu Papel na Sociedade Atual e na Formação da Civilização Futura. Santos: [s/n], 1923.

MOURA, Maria Lacerda de. Lições de Pedagogia. São Paulo: Condor, 1926.

MOURA, Maria Lacerda de. Religião do Amor e da Beleza. São Paulo: Condor, 1926.

MOURA, Maria Lacerda de. De Amundsen a Del Prete. São Paulo: O Combate, 1928.

MOURA, Maria Lacerda de. Civilização: Tronco de Escravos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1931.

MOURA, Maria Lacerda de. Clero e Estado. Rio de Janeiro: Liga Anticlerical, 1931.

MOURA, Maria Lacerda de. Amai e não vos Multipliqueis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932.

MOURA, Maria Lacerda de. Serviço Militar Obrigatório para a Mulher? Recuso-me! São Paulo: A Sementeira, 1933. (Reimpresso por Opúsculo Libertário, 1999)

MOURA, Maria Lacerda de. Han Hyner e o Amor Plural. São Paulo: Unitas, 1933.

MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer, o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo: Editora Paulista, 1934.

MOURA, Maria Lacerda de. Clero e Fascismo: Horda de Embrutecedores. São Paulo: Editora Paulista, 1934.

MOURA, Maria Lacerda de. Fascismo, Filho dileto da Igreja e do Capital. São Paulo: Editora Paulista, 1935. (Relançado em 2013) Disponível em: https://www.anarquista.net/wp-content/uploads/2013/12/Fascismo-filho-da-igreja-e-do-capital-de-Maria-Lacerda-de-Moura-Livro.pdf  Acessado em: 08/07/2020.

MOURA, M.L. “Feminismo? Caridade?” Em: O Combate, 1928. Disponível em: https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/mulher/10feminismocaridade.htm

Acessado em: 08/08/2020.

LITERATURA SECUNDÁRIA

LEITE, Miriam L. Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984.

LEITE, Miriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil: 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 1997; 2014.

OUTRAS FONTES RELEVANTES

FERRAZ, Ana Lúcia; LEITE, Miriam Moreira. Maria Lacerda de Moura: Trajetória de Uma Rebelde. São Paulo, Laboratório de Imagem e Som em Antropologia / Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em: https://vimeo.com/35898796 Acessado em: 08/07/2020.


[1]Anarquismo individualista é uma corrente dentro do anarquismo, que não se iguala ao individualismo liberal, porque a própria noção de indivíduo, neste caso, é completamente distinta. Mas que também não se iguala ao anarquismo coletivista. Trata-se de uma filosofia bastante complexa, seu principal defensor explícito foi Max Stirner, através da interpretação que ele faz de Nietzsche. A noção de indivíduo por ele sustentada não se opõe ao coletivo exatamente, mas se aproxima do que alguns autores chamam de ‘singularidade’. Por isso os anarco individualistas pensam uma outra forma de coletividade, e não são contra livres associações e organizações voluntárias temporárias, desde que elas não se transformem em microestados, suprimindo as diversidades. Max Stirner influenciou fortemente autores que foram fundamentais para o pensamento de Maria Lacerda de Moura, particularmente Emma Goldman. Importante destacar que a própria Maria Lacerda de Moura se auto-intitulava uma anarquista individualista, como podemos ver, por exemplo, em: “Sou indesejável, estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as forças interiores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla da sociedade sobre o indivíduo.” (MOURA, O Combate, 1928)

[2] Ver, por exemplo, o seguinte artigo: MOURA, M. L. “A emancipação feminina”. O Combate. Número 4604. São Paulo: 12/01/1928.

[3] MOURA, M. L. “A emancipação feminina”. O Combate. Número 4604. São Paulo: 12/01/1928, p.03. (Citado em: LEITE, Miriam L. Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática,1984, p.214.)


 [An1]Incluir primeiros nomes e, preferencialmente, referências dessas fontes.