(806-811? – 843?)
por Meline Costa Sousa,
professora de História da Filosofia Antiga e Medieval da Universidade Federal de Lavras – Lattes
Informações biográficas
Considerada uma das primeiras filósofas do Medievo Latino Cristão, Dhuoda (Dodana ou Duodena) nasceu na primeira metade do século IX. As variações relativas ao nome da filósofa dificultam a identificação da sua origem, mas há referências que indicam que ela teria nascido no seio de uma família nobre de origem franca. Algumas tentativas de estabelecer sua origem (cf. Thiébaux, 1998, p. 8; Cherewatuk, 1991, p. 50) se fundamentam na etimologia do nome Dhuoda e nas regiões nas quais se tem registro de variações semelhantes deste mesmo nome. Segundo Cherewatuk (1991, p. 50) “porque Dhuoda preferiu escrever em latim em detrimento de escrever em um dialeto característico, suas origens permanecem misteriosas”. Segundo os estudos de Thiébaux (1998, p. 7), “Se as origens da autora forem os francos do norte, seus pais talvez fossem os Guarnerius e Rothlindis de Luxemburgo, […] Contudo, Dhuoda poderia ter vindo do Sul (uma carta catalã nomeia uma Doda); ou ela poderia descender da nobreza visigótica de Septimania, anteriormente Gothia e ainda chamada assim em seu tempo”.
Alguns elementos autobiográficos são apresentados no Liber Manualis (de agora em diante Manual). Contudo, a maior parte das informações dizem respeito à família do seu esposo, a qual é descrita como tendo vínculos de sangue ou por alianças políticas com a linhagem de Carlos Magno (haveria uma relação de parentesco entre o avô de Bernardo de Toulouse e a mãe de Carlos Magno. Alguns estudos indicam que o esposo de Dhuoda era primo de segundo grau de Carlos Magno; cf. Cherewatuk, 1991, p. 49), e com as famílias nobres da corte; o que justificaria a ênfase dada por Dhuoda na nobreza real dos próprios filhos. Através do Manual, é sabido que Dhuoda recebeu o título de Duquesa de Septimania (região ao sul da França) em 824, ao se casar com Bernardo de Toulouse, o Duque de Septimania. Em 826 nasce seu primogênito, Guilherme (Wilhelmum) e, em 841, nasce Bernardo, seu segundo filho. Dhuoda foi enviada pelo marido para Uzès, onde viveu separada dos dois filhos. Dronke (1984, p. 37) sugere que o fato de Dhuoda ter sido enviada pelo marido para Uzés poderia indicar que ela tinha vínculos familiares na região.
Contexto histórico
Embora haja pouca informação sobre Dhuoda além do que a própria filósofa informa em sua obra, o contexto político do período fornece elementos para se compreender o momento no qual o texto foi escrito.
O Imperador Carlos Magno estabeleceu, em 806, a divisão do império em três partes com a intenção de que cada um de seus três filhos governasse uma das partes. Após a morte de Carlos Magno em 814, as três partes do império divididas em 806 segundo a Divisio Imperii foram assumidas pelo único filho vivo Luís, o Piedoso, no período de 814 a 840 (cf. Montanari, 2002, p. 63). Uma das medidas tomadas por Luís foi “acentuar as características cristãs e sacras” (Montanari, 2002, p. 63) do império. Através da Constitutio Romana (824), estabeleceu que, a partir de então, o Papa consagrado deveria jurar fidelidade ao imperador, reforçando a dependência entre o “poder público e o âmbito eclesiástico” (idem).
O período no qual escreve Dhuoda caracteriza-se pelas instabilidades políticas e sociais causadas pelas mudanças quanto à distribuição dos domínios do império propostas por Luís, o Piedoso, após o nascimento do quarto filho, Carlos (o futuro Carlos, o Calvo). Entre 830-840, durante a segunda fase do reinado de Luís, as disputas pelo trono travadas entre os seus quatro herdeiros Carlos, o Calvo, Luís II, Lotário e Pepino levam, após a morte do pai em 841, a uma batalha entre os filhos Carlos, o Calvo, Luís II e Lotário. Em agosto de 843, um acordo foi estabelecido entre os três herdeiros vivos de modo que cada um deles assumisse uma parte do império: Carlos, o Calvo assume o reino ocidental, Lotário assume o reino central e Luís II assume o reino oriental.
Em 841, justamente durante o início da disputa entre os futuros imperadores, Dhuoda começa a elaboração do Manual em Uzés, finalizando-o no início de 843. Durante este período, seu esposo Bernardo “traidor do próprio juramento feudal e figura controversa (“tirano”, “adúltero”, “porco”, eram os epítetos dados pelos seus inimigos) entregou seu filho […] como um gesto de apaziguamento após a Batalha de Fontenoy-en-Puisaye” (Thiébaux, 1998, p. 1); batalha na qual Carlos, o Calvo, Luís II e Lotário dividiram o reino entre si. O filho mais velho Guilherme foi enviado para a corte de Carlos, o Calvo, como garantia da lealdade de Bernardo. Assim, quando do início da escrita do Manual, o filho mais velho de Dhuoda vivia, por laços de vassalagem, na corte imperial, e seu filho mais novo em Aquitânia (sudoeste da França). Embora no Manual ela mencione apenas os filhos Guilherme e Bernardo, algumas referências (cf. Thiébaux, 1998, p. 7) indicam que, entre 844-845, o casal teria tido uma filha.
Liber Manualis [Manual para meu filho]
1. Gênero literário e influências filosóficas
Embora a filósofa não mencione a expressão speculum principis, alguns estudiosos (cf. Dronke, 1984, p. 36; Cherewatuk, 1991, p. 49) entendem ser a obra do gênero literário “espelho de príncipe (speculum principis)” ainda que o uso dessa expressão para se referir a um gênero literário seja posterior à elaboração da obra (cf. Cherewatuk, 1991, p. 53).
Sobre a polissemia do termo manus, do qual é derivado o título Manualis, Dhuoda indica que o termo pode ser entendido em diferentes acepções como, por exemplo, o poder de Deus, o poder do Filho de Deus ou o próprio Filho de Deus. Sobre o termo alis (manu-alis), trata-se do “escopo, o qual é dito destino; a consumação, a qual é entendida como perfeição e a sequência, que é a compleição (hoc est scopon quod dicitur destinatio, et consumatio quod intelligitur perfectio, et secutio quod est finitio)” (Liber Manualis, Incipit textus; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 40-41). Dhuoda, após apresentar o sentido dos termos que compõem o título da obra Manualis, aponta como finalidade do seu discurso o fim da ignorância (ignorantia).
Em referência à metáfora do espelho:
“[…] tu também encontrarás um espelho no qual poderás vislumbrar sem qualquer dúvida a saúde da tua alma; e assim poderás agradar de todas as maneiras não apenas o mundo, mas também aquele que o formou do barro: o que é necessário em todos os sentidos, meu filho Guilherme, é que no cumprimento de ambos os deveres tu mostres que podes levar uma vida útil no mundo e que podes agradar a Deus em todas as coisas.
[…] invenies etiam et speculum in quo salutem animae tuae indubitanter possis conspicere, ut non solum saeculo, sed ei per omnia possis placer qui te formavit ex limo: quod tibi per omnia necesse est, fili Wilhelme, ut in utroque negotio talis te exibeas, qualiter possis utilis esse saeculo, et Deo per omnia placere valeas semper.” (Liber Manualis, Incipit prologus; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 48-49; Bondurand, 1887, pp. 50-51)
O termo speculum encontra-se no texto como um modo de indicar ao filho Guilherme que o movimento de se voltar para sua própria alma é o que deve nortear suas ações. Ao ser imagem para o bom cristão, a obra é o reflexo da alma do próprio filho que, por sua vez, vê na obra algo que já está dado em si mesmo enquanto criatura divina.
Um dos elementos que caracterizam o texto como um manual é o fato de ser uma discussão breve acerca da conduta moral cristã. Neste sentido, o estilo espelho de príncipe se combina bem com a proposta de um manual na medida em que o gênero do espelho tem em vista apresentar para o homem nobre, de modo sucinto, os preceitos religiosos (a Santa Trindade, os dons do Espírito Santo, as oito bem aventuranças, os Salmos, etc.) e sociais (conduta frente à família paterna, à nobreza, ao rei, às mulheres, etc.) a serem considerados como “guia para a vida secular cristã” (Dronke, 1984, p. 38).
Como se desenvolveu, durante a dinastia carolíngia, um “movimento intelectual religioso” (Thiébaux, 1998, p. 2) a fim de reafirmar entre os novos governantes e os nobres laicos as condutas próprias do cristão fiel, a finalidade didática característica da obra de Dhuoda justifica a escolha do seu título, Liber Manualis, e o tipo de exposição proposto para o conteúdo. No entanto, embora Dhuoda se posicione como aquela que ensina a conduta moral a ser seguida pelo filho (“Norma ex me”), em diferentes momentos da obra (cf. Liber Manualis, Epigrama; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 42-43; Bondurand, 1887, pp. 46-47), a filósofa reconhece a própria ignorância e incapacidade. Assim, através de um exercício de humildade imposto pelo fato de ser ela uma mulher que se põe a instruir homens, ela se apresenta como uma mensageira do divino. A autoridade do discurso é transposta à graça divina. O conteúdo, através das mãos de Dhuoda, será transmitido a todos aqueles aos quais a obra puder alcançar.
São abundantes as referências diretas aos Padres da Igreja, em especial a Santo Agostinho. Como aponta Thiébaux (1998, p. 25), “um texto medieval chave e modelo do gênero espelho é a Cidade de Deus de Agostinho, o qual delineia o príncipe ideal como um cristão a serviço de Deus, disposto a refrear seu poder absoluto e comprometido com a misericórdia, humildade e oração”.
O segundo livro do Manual aborda os aspectos trinitários da Trindade Santa (Pai, Filho e Espírito Santo) a partir das referências aos Padres da Igreja. Embora Dhuoda não forneça nenhuma indicação direta, o Sobre a Trindade de Agostinho pode ter exercido algum tipo de influência na sua análise.
2. Resumo da obra
Segundo a edição de Mabillon (1677), o Liber Manualis é composto de setenta e três capítulos corridos. Em algumas versões (cf. Thiébaux, 1998; Bondurand, 1887), a obra se divide em duas partes. Na primeira, encontra-se a introdução dividida em incipit textus, o incipit liber, o epigrama, o incipit prologus e o praefatio (Bondurand (1887, p. 24) chama as três partes iniciais de Prolegômenos). Na segunda parte, encontra-se uma sequência de onze livros.
No inicipit textus, a filósofa apresenta os três pilares que sustentam a obra (Norma, Forma e Manualis), os quais são descritos como os elementos que compõem o discurso (partes locutionis) e que estabelecem uma relação entre ela, a autora, e o leitor, seu filho Guilherme: “A Norma parte de mim, a Forma é recebida por ti, o Manual parte de mim e é recebido por ti igualmente, composto por mim e recebido por ti (Norma ex me, Forma in te, Manualis tam ex me quam in te, ex me collectus, in te receptus)” (Liber Manualis, Incipit textus; ed. e trad. Thiébaux, 1998, p. 41).
A relação sugerida por Dhuoda indica a finalidade do texto e o modo como ela espera que o filho Guilherme receba seu conteúdo. A “saúde da alma e do corpo (salutem animae et corporis)” (idem) daquele para quem ela escreve é estabelecida como a finalidade da elaboração da obra. Ao passar das mãos (“ex manu mea”) de Dhuoda às mãos do filho (“in manu tua”), a obra é recebida não apenas materialmente, mas também espiritualmente. Assim, as condutas (Normae) que partem de Dhuoda seriam internalizadas na alma do filho, o qual formaliza em si mesmo (Forma) os ensinamentos transmitidos pela mão da mãe (Manualis). Neste sentido, Dhuoda não é apenas aquela que escreve o texto, mas aquela que conduz o filho pelo caminho reto.
Além de apresentar a finalidade do texto, Dhuoda indica aquele para o qual ela escreve, o jovem filho Guilherme, o qual fora enviado pelo próprio pai como prova de lealdade após a vitória do rei Carlos, o Calvo, na batalha de Fontenoy. Quando Dhuoda inicia a elaboração do texto em 841, Guilherme teria quinze anos. A obra, assim, trata-se de um modelo (“dirigo gaudens”) a ser seguido pelo filho dada a impossibilidade da orientação direta em vista do distanciamento forçado pelas circunstâncias.
O fato de Dhuoda se posicionar acerca do modo pelo qual o filho deve agir acentua o teor moral do Manual. A indicação do direcionamento dado encontra-se nos versos fornecidos após o incipit. Depois de apresentar a obra, Dhuoda fornece um epigrama, cujas letras iniciais formam a seguinte frase: “Dhuoda dilecto filio wilhelmo salutem lege (Dhuoda declama saudações ao seu amado filho Guilherme)”. Nas primeiras linhas do poema, percebe-se que as orientações dadas ao filho se circunscrevem dentro de uma moral cristã, a qual será apresentada pela filósofa em maiores detalhes ao longo dos livros restantes.
2.1. Livros I-II-III: introdução aos preceitos cristãos
Os três primeiros livros do Manual são dedicados à apresentação de alguns dos preceitos assumidos pela fé cristã, dentre eles, a ideia de que todas as criaturas ganham seu ser a partir de Deus. Assim, os seres humanos têm no Criador a causa do viver, do mover e do ser: “Meu filho, tu e eu devemos buscar a Deus: por Sua vontade existimos, vivemos, nos movemos e somos (Quaerendus est Deus, fili, mihi et tibi: in illius nutu consistimus, vivimus, movemur et sumus)” (Liber Manualis, De querendo Deum; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 60-61; Bondurand, 1887, pp. 58-59).
A necessidade de louvar a Deus se justifica dado o fato de ser Deus a origem não apenas da vida humana como também dos movimentos próprios que caracterizam o ser de cada indivíduo. Por ser o entendimento humano o movimento que distingue os seres humanos dos outros animais, a posse do entendimento já é um ato de bondade do Criador. Neste sentido, o simples exercício da racionalidade somente é possível graças à bondade divina ter dotado os humanos com essa capacidade. Deste modo, as referências a Deus e à criação, no início do livro primeiro, marcam o reconhecimento de que aquilo que será comunicado pelas mãos da autora decorre de um dom divino; o que é corroborado pelo fato de a filósofa se apresentar, em diversos momentos, como alguém ignorante que roga a Deus por conhecimento.
Dhuoda mostra-se consciente da sua condição de mulher e dos limites sociais impostos a ela ao, humildemente, colocar-se como porta-voz de um conhecimento que não é seu, mas que se manifesta através de suas palavras: “Aquele que fez a boca de um animal mudo falar tem o poder […] de abrir meus sentidos e, a mim, dar entendimento (Potens est enim ille qui os animalis muti loqui fecit, mihi […] aperire sensum et dare intellectum)” (Liber Manualis, Incipit prologus; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 60-61; Bondurand, 1887, pp. 58-59).
A onisciência divina é apresentada como modo de chamar a atenção do filho leitor para a importância da retidão do homem de Deus. Através da justiça divina, os bons são recompensados pelos méritos da vida terrena. A temporalidade dos bens terrenos, aos quais alguns homens teriam se apegado, acentua a necessidade do direcionamento da vontade àquilo que é eterno e imutável, cuja natureza imóvel manifesta a condição originária do princípio criador.
Partindo do caráter trino da Trindade Santa, no segundo capítulo do terceiro livro, são apresentadas três virtudes: fé (fide), esperança (spe) e caridade (karitate). Sobre a origem do termo karitas, Dhuoda afirma ter origem do grego, cujo significado latino é amor (dilectio). A caridade é elevada ao patamar de virtude superior ao ser comparada às outras duas. O argumento para justificar a primazia da caridade baseia-se no fato de tanto a esperança quanto a fé serem relativas a algo buscado pela vontade. Neste sentido, na medida em que o objeto posto pela vontade é um bem que ainda não se possui, trata-se de uma falta. Com exceção da caridade, a qual se caracteriza por um tipo específico de amor, as outras duas virtudes dizem respeito a algo que ainda não se possui e que se coloca como objeto da vontade.
As três virtudes são mencionadas por Dhuoda no contexto da apresentação de uma conduta moral correta frente aos bens temporais (terrena). A relação natural entre o indivíduo e o bem desejado posto pela vontade é o indício da necessidade da busca por bens que sejam eternos (caelestia): “aconselho-te e suplico-te que a tua procura e a tua aquisição sejam não só aqui, mas também na vida futura. Que possas buscar com diligência as coisas que são necessárias para tua alma (ortor te admoneo ut petitio vel adquisitio tua sit non solum hic, sed etiam in futuro; ea diligenter quaeras quae animae tuae sunt necessario exigenda)” (Liber Manualis, De fide, spe et karitate; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 74-75; Bondurand, 1887, pp. 73-74). Neste sentido, os bens eternos e as três virtudes estão diretamente relacionados. Trata-se de rogar (pete per fidem) por eles com fé, buscar com esperança (quaere per spem) e pulsar por caridade (pulsa per karitatem).
Tendo apresentado os três elementos da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), Dhuoda dedica o terceiro livro à figura metafórica do pai. A filósofa ressalta a importância da reverência à autoridade paterna, a qual diz respeito tanto à conduta indicada para o filho primogênito Guilherme em relação a Bernardo de Septimania, mas também em relação aos Pais da Igreja. A devoção a Bernardo é exaltada em vista de ser, através da nobreza da família paterna, que o filho alcança espaço entre os nobres. A relação sagrada entre pai e filho é ilustrada com alguns exemplos bíblicos (Sem e Jafé, os filhos de Noé, Isaac, Jacó, etc.), os quais têm em vista, a partir dos relatos bíblicos, instruir sobre a conduta correta do filho frente às atitudes paternas.
Outra relação enfatizada por Dhuoda é aquela mantida entre o filho e o rei Carlos, o Calvo. A submissão aos senhores é fundamentada em uma passagem das Escrituras, na qual toda a autoridade terrena é diretamente atribuída por Deus: “Não há poder que não venha de Deus e aquele que se opõe, opõe-se à ordem de Deus (Non est potestas nisi a Deo, et qui potestati reistit, Dei ordinationi resistit)” (Liber Manualis, Admonitio erga seniorem tuum exhibenda; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 94-95; Bondurand, 1887, pp. 89; 91).
A noção de uma ordinatio divina a partir da qual todas as hierarquias (religiosas e sociais) são estabelecidas no mundo marca não apenas a necessidade de cada indivíduo reconhecer o próprio lugar como a necessidade de se submeter, enquanto fiel, àqueles que lhe são superiores.
2.2. Livros IV-VI: Princípios para uma filosofia moral cristã
Focado em apresentar uma filosofia moral mais geral, o quarto livro da obra se inicia com a seguinte afirmação: “Grandes esforços e constante exercício são requeridos da espécie humana para alcançar a perfeição (In specie humanitatis formam magnus est exigendus atque exercendus labor studiosus)” (Liber Manualis, Admonitio specialis ad diversas corrigendas mores; trad. Thiébaux, 1998, pp. 126-127; Bondurand, 1887, pp. 124; 126). São mencionados alguns exemplos de vícios (malícia e inveja) e de virtudes (fé e perseverança). Assim, o caminho em direção à perfeição humana, ou seja, em direção ao bom uso das disposições dadas por Deus, ao ser humano, envolve a prática de ações virtuosas em detrimento de ações viciosas. Os homens do passado, a dizer, os doze patriarcas são indicados como os modelos de conduta a serem seguidos, cujas práticas da virtude neste mundo conduziram a um “cursu felici”.
Os sete dons do Espírito Santo são recebidos conforme o merecimento de cada indivíduo. Assim, Dhuoda instrui o filho na direção de se manter vigilante frente aos vícios de modo a merecer a infusão, pelo Espírito Santo, dos sete dons: spiritus sapientiae, spiritus intellectus, spiritus consilii, spiritus fortitudinis, spiritus scientiae, spiritus pietatis, spiritus timoris Domini. Os dons são agrupados em sete “porque há sete dias na semana, sete eras na história do mundo e sete lâmpadas sagradas” (Liber Manualis, In septemplici dono Sancti Spiritus militare; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 134-135; Bondurand, 1887, p. 135). As oito bem aventuranças referem-se a determinadas condutas dos indivíduos que não são valorizadas pelos homens comuns ou que, aparentemente, podem causar a infelicidade ou a perseguição. O pressuposto assumido em relação às bem-aventuranças é que, ainda que possam encontrar dificuldades em manter uma conduta moral adequada na vida terrena, a prática da ação virtuosa, que aparentemente seria causa de sofrimento, seria o único modo de experienciar a felicidade. O caráter paradoxal do preceito cristão apresentado por Dhuoda, a dizer, a adoção de práticas que geram infelicidade em nome da própria felicidade, desconstrói-se se levarmos em conta as peculiaridades da noção de felicidade adotada pela filósofa. Não se trata de assumir a noção comumente aceita de vida feliz, mas de ressignificar a felicidade na medida em que ela não se dissocia de uma vida de sofrimento. Neste sentido, a felicidade em vida é derivada diretamente da fé na boa aventurança, tornando-se, por isso, desvinculada às condições de vida que se põe para o indivíduo enquanto parte de uma dimensão social e que escapam à sua esfera de controle (por exemplo, honras, riquezas, aceitação pelos outros, etc.). Conclui Dhuoda “Assim agindo, com a ajuda do Espírito Santo e dos seus dons, alcançarás o reino dos céus (Ita agendo, santo quooperante donationum Spiritu, ad regnum valebis pertingere supernum)” (Liber Manualis, In septempli dono Sancti Spiritus militare; ed e trad. Thiébaux, 1998, pp. 140-141; Bondurand, 1887, p. 140).
Dhuoda aborda a fragilidade da condição humana, partindo da distinção entre o homem carnalis e spiritalis. Para abordar a natureza humana, Dhuoda utiliza a analogia da árvore:
“A árvore significa cada homem. Seja ele bom ou mau, certamente será conhecido pelo seu fruto. Uma árvore bela e nobre produz folhas nobres e dá frutos decentes, e isso se aplica a um grande homem, um homem muito fiel. O homem instruído merece ser cheio do Espírito Santo e florescer com folhas e frutos. Ele se distingue por sua doce fragrância. Pois suas folhas são suas palavras, seu fruto é seu julgamento, ou de outra forma, suas folhas são seu intelecto e seu fruto suas boas ações. A árvore boa é propagada, mas a árvore má é entregue às chamas. Está escrito: “Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo”.
Arbor, unusquisque intelligitur homo, et an bonus an malus sit, a fructu profecto agnoscitur suo. Arbor pulcher nobilisque folia gignit nobilia et fructus afert aptos. Hoc in magno et fidelissimo agitur viro. Vir namque eruditus Spiritu Sancto meretur repleri et folia atque fructum pullulare. Dinoscitur fragrari suave, habet folia in verbis, fructum in sensu, vel etiam habet folia in intellectu, fructum in operatione. Arbor propagatur bona, mala traditur igni. Scriptum est: Omnis arbor quae non facit fructum bonum excidetur et in igne mittetur.” (Liber Manualis, De diversarum tribulationum temperamentis; ed. e trad. Thiébaux, 1998, pp. 168-171; Bondurand, 1887, pp. 172-173)
O homem seria tal como uma árvore, cuja bondade ou maldade pode ser percebida naquilo que dele resulta. Assim como uma árvore boa produz bons frutos, um homem bom também pode ser reconhecido como tal pelos seus frutos. Todas as partes da “bela e nobre (pulcher nobilisque)” árvore frutífera são igualmente belas e nobres em vista dos frutos. Os adjetivos usados por Dhuoda para se referir à árvore de bons frutos são “bela e nobre (pulcher nobilisque)”. No caso do homem, a filósofa opta por “grandioso e fidelíssimo (magno et fidelissimo)”. A grandiosidade do homem bom está na sua linhagem, tal como a beleza e nobreza da árvore se encontram na sua estirpe. A fé juntamente com a referência à graça do Espírito Santo são os aspectos que marcam o tipo de conhecimento que se manifesta no bom homem. Assim, é retomado o tema da sabedoria cristã, a qual pressupõe não apenas o exercício da razão, mas também a fé.
Dhuoda continua a analogia comparando as palavras e julgamentos do homem bom às folhas da árvore e seus julgamentos e boas ações aos frutos. Assim, por estar bem nutrida e fortificada, a árvore sadia se propaga e merece ser mantida viva. Ao contrário, a árvore fraca e contaminada deve ser cortada e incendiada (excidetur et in igne mittetur). Os “frutos do espírito” são a caridade (karitas), a alegria (gaudium), a paz (pax), a longanimidade (longanimitas), a bondade (bonitas), a benignidade (benignitas), a fé (fides), a mansidão (mansuetudo), a paciência (patientia), a castidade (castitas), a continência (continentia), a modéstia (modestia), a sobriedade (sobrietas), a vigilância (vigilantia) e a sabedoria (astutia).
No sétimo livro do Manual, Dhuoda propõe a distinção entre o primeiro nascimento (prima nativitate) e o segundo nascimento (secunda nativitate) e a primeira morte (prima morte) e a segunda morte (secunda morte). Quanto à primeira distinção, o primeiro nascimento diz respeito ao nascimento da carne a partir da carne (ex carne), enquanto o segundo nascimento é do espírito a partir do espírito (ex spiritu). Embora no nascimento carnal cada indivíduo seja filho de um único pai, no nascimento espiritual todos são filhos do mesmo pai através de Cristo. Igualmente dá-se com a distinção entre primeira e segunda morte. Trata-se da morte do corpo e da morte da alma. Tendo em vista a natureza temporal do corpo, a morte do corpo é parte integrante da condição humana. Contudo, a segunda morte, isto é, a morte da alma, pode ser evitada no julgamento final. A vida eterna é prometida àqueles que seguem os ensinamentos de Cristo.
Referências bibliográficas
Edições
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Bibliografia complementar
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