O feminismo de Nawal El Saadawi

Por Flávia Abud Luz

Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC)

PDF – O Feminismo de Nawal el Saadawi

Nawal El Saadawi (2013) – Créditos: Milma Kettunen/ Flickr: Global.finland.fi Disponível em https://www.flickr.com/photos/mlk_global/8548537510/ . Acesso em 05 mai 2021

Nawal El Saadawi (nascida Nawal Al-Sayed Habash El Saadawi) foi uma mulher egípcia que ao longo de sua vida mostrou suas múltiplas facetas de atuação e resistência: ativista feminista, médica psiquiatra, escritora e ensaísta com diversos livros de não-ficção publicados ao redor do mundo. Sua vida e obra foram fundamentais para a elaboração de pautas dos movimentos feministas no Egito e no mundo árabe ao passo que discutiram em profundidade a situação da mulher, sobretudo a imbricação das diversas formas de opressão social, política, econômica e religiosa às quais elas estavam sujeitas.

A violência física a que são expostos os corpos femininos, relacionada à normatização em nome de princípios que operacionalizam as diversas formas de opressão (entre elas a econômica, social, religiosa e política), foi uma experiência central para o desenvolvimento dos questionamentos iniciais de El Saadawi acerca do estatuto das mulheres (e meninas) no interior das leis de família egípcias. Aos seis anos de idade Nawal foi submetida à mutilação genital feminina (MGF, prática que consiste na amputação parcial ou total do clitóris), que era relativamente difundida na sociedade egípcia, independentemente da classe social (baixa, média, alta) ou da origem (rural ou urbana) à qual pertencia a família das meninas que são submetidas a tal prática.

Além da experiência traumática acima mencionada, que El Saadawi retoma e descreve em uma de suas obras centrais A Face Oculta de Eva: as Mulheres do Mundo Árabe (2002) e nas autobiografias A Daughter of Isis [A filha de Isis] (1999a) e Walking through fire: The Later Years of Nawal El Saadawi [Caminhando através do fogo: os últimos anos de Nawal El Saadawi] (2002b), outras observações cuidadosamente realizadas ao longo de sua infância e adolescência lhe permitiram questionar a noção de hierarquia de gênero por meio das distinções sociais feitas entre meninas e meninos, e posteriormente mulheres e homens. Destaque especial é conferido a aspectos como as tarefas realizadas no âmbito familiar (as meninas voltadas às atividades de cuidado e domésticas, enquanto os meninos podiam dedicar-se com exclusividade aos estudos religiosos e/ou acadêmicos) e as diferentes expectativas criadas em torno da atuação social de mulheres e homens, principalmente com a constatação de que, embora mulheres e homens fossem submetidos a práticas disciplinadoras com relação aos seus corpos por conta da segregação sexual imposta por uma combinação de moral religiosa e aspectos culturais, eram as mulheres que tinham sua ação em público observada com maior ênfase. 

O fato de El Saadawi fazer parte de uma família de classe média e bem instruída não a isentou de ter na sua juventude a projeção dos ideais anteriormente mencionados com relação ao papel que a mulher egípcia ocuparia na sociedade: o papel da esposa. Ela conseguiu escapar de um casamento arranjado ainda na adolescência ao se impor à vontade dos pais de atingirem tal expectativa socialmente encorajada. El Saadawi dedicou-se aos estudos, conseguiu entrar no curso de medicina na Universidade do Cairo e a partir de 1955 especializou-se em psiquiatria.

Ao longo da década de 1960, El Saadawi atuou no governo egípcio e desenvolveu uma carreira na secretaria de Saúde Pública. No entanto, os posicionamentos por ela apresentados em artigos e livros que clamavam por uma reflexão nacional (e até mesmo regional) com relação à normatização dos corpos femininos – por exemplo a MGF e outras atitudes relativas à preservação da honra familiar –, além da existência da violência intrafamiliar, conduziram a uma pressão política que culminou em sua demissão (em 1972) e no encerramento das atividades de uma revista por ela dirigida.

Apesar das limitações impostas a ela como mulher pertencente à sua época e sociedade, Nawal El Saadawi ousou questionar as bases de práticas sociais e religiosas, rompendo o silêncio e o medo que, de acordo com as reflexões da autora, conduziam à mulher ao ponto zero, um estado que pode ser interpretado a partir de um duplo significado: a marca de um final (e o reconhecimento de que as opressões estruturais alcançaram seu objetivo de manutenção do status quo) ou a possibilidade de reescrever uma trajetória apesar das opressões encontrando inclusive formas de expô-las (EL SAADAWI, 2019, p.151-153).

De sua produção intelectual e literária (romances, contos e peças) é possível destacarmos algumas reflexões, ideias e questionamentos que devem ser observados de maneira mais detalhada, visto que se correlacionam ao longo das obras. São eles: a) a violência (física, psicológica e sexual) infligida às mulheres por conta de uma moral rígida que se apropria da religião como forma de legitimação, b) combate às diversas formas de opressão à mulher no Egito e no Terceiro Mundo; c) o ressurgimento de ideologias religiosas radicais e a política do véu; d) o questionamento de visões estereotipadas com relação à identidade das mulheres muçulmanas.

O incômodo que seus textos provocavam, estas “palavras afiadas”, estava justamente neste trabalho de lançar um foco naquela que para a autora era uma ferida importante da sociedade egípcia: violência (física, psicológica e sexual) infligida às mulheres por conta de uma moral rígida que se apropria da religião como forma de legitimação. El Saadawi aponta que nas sociedades árabes observa-se, principalmente na primeira metade do século XX, a rigidez da moral que, advinda de costumes, cultura e história anteriores à própria religião (Islã), perpetua ideias como a manutenção do domínio masculino na sociedade e o reforço a um padrão moral duplo.

Neste padrão moral duplo El Saadawi observou a existência de exigências sociais e os direitos diferentes para mulheres e homens. Embora mulheres/meninas e homens/meninos fossem afetados pela moral tradicional que, por exemplo, impedia a expressão livre da sexualidade fora de um casamento reconhecido como legítimo e incentivava a segregação de espaços com o intuito de evitar algumas interações sociais entre mulheres e homens, eram os corpos das mulheres que sofriam violências em nome de tais princípios.

A violência apresentada advém da questão da normatização dos corpos das mulheres, principalmente da mutilação genital feminina (MGF), ou seja, uma dimensão física; a questão da honra familiar relacionada à preservação da virgindade feminina traz consigo a forte pressão psicológica para que as mulheres desde meninas se preocupassem com seu corpo, movimentos e atitudes que poderiam tirar a honra do nome da família.

Em alguns momentos El Saadawi (2002a) apresenta a justaposição das referidas formas de violência. No capítulo 1, A Pergunta que não Obteve Resposta, em que descreve o momento de sua submissão à mutilação genital feminina e os questionamentos que tal prática trouxe a ela com relação às diferenças entre meninos e meninas, a autora apresenta o enlace de suas formas específicas de violência às mulheres à época: a física (pela normatização do corpo) e a psicológica (pela mutilação física em si, que trouxe insegurança e preocupações com relação ao corpo e atuação na sociedade), assim: “(…) a sociedade me fez sentir, a partir do momento em que abri os olhos para a vida, que eu era menina, e que a palavra Bint (menina) ao ser pronunciada é quase sempre acompanhada por uma expressão de desagrado” (EL SAADAWI, 2002a, p.27-28).

A manutenção de práticas culturais, em específico a mutilação genital feminina (MGF), verificada em países como Egito e Sudão, é um elemento que ocupou espaço relevante na elaboração teórica de El Saadawi e conduziu a um questionamento acerca do uso da religião para justificar tais práticas tradicionais. El Saadawi (2002) argumenta que a MGF não é um costume religioso, mas sim uma prática anterior à inserção do Islã (no século VII) que se acomodou às estruturas patriarcal e capitalista das sociedades árabes ao longo do tempo. Neste sentido, a prática converteu-se em um aspecto ligado à honra familiar e à castidade da mulher, pois atendia ao “dilema patriarcal” de garantir a hereditariedade da família e a sucessão da propriedade (ou bens), evitando que fossem entregues a filhos gerados em uma relação com um homem de outra família ou linhagem.  

El Saadawi apontou, assim, o uso político da religião e as consequências que tal ação trouxe para as mulheres na sociedade árabe, especialmente no que diz respeito à proteção e ao reconhecimento de seus direitos sociais, familiares, econômicos e políticos. A religião, enquanto instituição e fonte de inspiração para ações político-sociais, é utilizada por aqueles que dominam nas referidas sociedades e visam a manutenção da sociedade patriarcal, visto que: “(…) torna-se impossível separar a religião do sistema político-social, ou manter o sexo isolado da política. A trilogia composta por política, religião e sexo é a mais sensível de todas as áreas de qualquer sociedade” (EL SAADAWI, 2002a, p,19). No entanto, cabe ressaltar que El Saadawi discute que a opressão da mulher por meio de discursos distorcidos da religião não é uma especificidade do Islamismo, sobretudo tendo em vista que tal aspecto também é observada em outras religiões monoteístas (cristianismo e judaísmo) e nas interpretações androcêntricas dos textos sagrados e da teologia, de forma geral.

El Saadawi relatou as consequências negativas, nos âmbitos físico e psicológico, observadas junto às meninas que tinham sido submetidas à MGF e intensificou ao longo da década de 1970 campanhas de conscientização que visavam reduzir a existência de tal prática e mitigar os danos infligidos às meninas. A crítica abertamente direcionada à MFG, que em sociedades como a egípcia e a sudanesa era uma prática tradicional e cultural persistente, trouxe conflito junto às pessoas que trabalhavam nestas atividades e às autoridades médicas que se viram pressionadas a enfrentar situações como a necessidade de abordar educação sexual nas universidades, na formação de seus profissionais.

A dimensão da violência sexual, outra expressão da violência infligida contra as mulheres, esteve presente na obra de El Saadawi na discussão de outro tabu: lidar com as transgressões sexuais que podem ocorrer no interior do mundo familiar e ao seu redor, como, por exemplo, a violação de meninas em ambientes familiares, por parentes diretos (como tios ou primos). Em A Mulher com olhos de fogo – o despertar feminista (2019, p.31-53) a jovem Firdaus, personagem central da história, que conheceu Nawal El Saadawi quando a médica fazia pesquisa de campo junto às presas da prisão Feminina de Qantir, teve sua vida atravessada pela opressão econômica e social que era expressa de diversas maneiras.

A experiência da violência sexual perpetrada por parte de um tio (na infância e adolescência), recorrente na memória de Firdaus, influenciava negativamente suas tentativas de estabelecer relações amorosas e sexuais na vida adulta, principalmente pelo fato de que as violências exercidas por seu tio não tiveram uma sanção formal. Ao deixar a casa do tio em busca de uma vida diferente, Firdaus deparou-se com outra questão complexa para as mulheres egípcias de classe baixa e que não possuem a proteção familiar: uma vida às margens da sociedade, principalmente pela exclusão socioeconômica relacionada a uma baixa taxa de escolaridade e a uma dependência econômica socialmente construída pela ênfase na instituição do casamento.  

O combate às diversas formas de opressão à mulher no Egito e no Terceiro Mundo é outro tema relevante nas reflexões de El Saadawi, sobretudo tendo em vista que este abarca discussões como o enlace de diferentes estruturas de opressão (econômica, religiosa, social e política) e suas implicações para a vida prática; as desigualdades presentes nas leis de família muçulmanas e o acesso reduzido à educação.

Uma de suas principais reflexões acerca da opressão das mulheres e das possíveis formas de enfrentá-la diz respeito à compreensão das formas de exploração existentes e de seu enfretamento em conjunto, pois “(…) A verdadeira emancipação só pode implicar uma libertação de todas as formas de exploração, seja nos campos da economia, política, sexo ou cultura” (EL SAADAWI, 2002a, p.22).  

Ao tomar como base a vida prática na sociedade egípcia El Saadawi (1993; 2002a) argumenta que o patriarcado existente nela e em diversos países (não apenas os árabes) se constituiu como um sistema social, baseado na posse de bens/ recursos econômicos, em que os homens controlam as decisões em assuntos familiares, políticos e sociais, sendo a subordinação da mulher uma espécie de extensão da crença na superioridade masculina. No entanto, El Saadawi destaca o papel da religião (enquanto instituição) e da tradição (entendida aqui como um amálgama da manifestação social conjunta da cultura e da religião, não sendo possível separar o domínio de cada) como elementos centrais para manutenção de certas desigualdades materiais, tendo em vista, por exemplo, a baixa escolaridade das meninas e a falta de estímulo para que estas possam desenvolver suas capacidades e alcançar postos de trabalho que lhe permitam certa independência financeira com relação à família.

Outro âmbito relevante para observar as desigualdades presentes entre os direitos e deveres de mulheres e homens é o das leis de família muçulmanas, um conjunto de leis que determina aspectos da vida cotidiana dos muçulmanos, como o casamento, divórcio, direito à herança e à custódia de filhos, que possui como base legal a jurisprudência islâmica (fiqh) e os entendimentos elaborados pelas escolas de pensamento jurídico islâmicas. El Saadawi questiona com veemência a desigualdade de gênero presente no direito de herança (a mulher herda a metade do que o homem), bem como a ideia presente em algumas escolas jurídicas de que a mulher precisava do consentimento de seu pai para se casar, mesmo se já tivesse alcançado a maioridade. Ela também reivindica direitos à sexualidade feminina, no sentido de que falar sobre o tema deixasse de ser um tabu na sociedade e de incentivar as meninas e mulheres a entenderem seu corpo e mudarem de opinião acerca da manutenção de práticas tradicionais, como a MGF.

Além de propor discussões acerca das opressões (social, religiosa, econômica e política) às quais as mulheres estavam sujeitas na sociedade egípcia (e árabe), El Saadawi preocupa-se em demonstrar que a atuação das mulheres em oposição a tais forças se desenvolveu ao longo de séculos XIX e XX, em meio de disputa de narrativas religiosa e política que buscam apresentar uma definição final de qual seria o papel da mulher em sociedades que estavam imersas em movimentos de orientação nacionalista, frente ao poderio colonial europeu (francês e britânico em sua maioria).

Ao retomar a história de pioneiras no desenvolvimento de pensamentos críticos acerca do status da mulher, como Aisha El Taymouria, Malak Helfni Nassef e May Ziada, El Saadawi observou a preocupação delas com códigos ou leis de família que perpetuavam uma leitura androcêntrica e hierárquica da jurisprudência islâmica e, consequentemente, dos direitos e deveres de mulheres e homens na família e sociedade. Além disso, ressaltou que em sociedades como a egípcia, em que as bandeiras do nacionalismo, feminismo e modernismo se entrelaçaram junto aos Estados recém-independentes, as demandas como a da igualdade de direitos no âmbito familiar e a da participação política feminina tiveram sua composição diferenciada, mas com uma característica em comum: a influência da religião.

Para El Saadawi um elemento central foi o de que, embora a religião tenha sido importante aspecto aglutinador em torno do desenvolvimento de identidades nacionais comuns, após a independência, tal instituição teve seu poder e influência transferidos para o domínio da esfera privada, na condução de códigos de estatuto pessoal ou leis de família, e continuou a determinar as possibilidades de avanço (ou não) de demandas que as mulheres buscavam exprimir no âmbito político-social, tais como o direito da mulher iniciar um pedido de divórcio, desenvolver estudos religiosos, etc..  

O ressurgimento de ideologias religiosas radicais e a política do véu são temas constantes nas obras de El Saadawi a partir da década de 1980, em consonância com os desenvolvimentos políticos e religiosos no Egito. Nawal reitera, principalmente em suas autobiografias A Daughter of Isis [A filha de Isis] (1999a) e Walking through fire: The Later Years of Nawal El Saadawi [Caminhando através do fogo: os últimos anos de Nawal El Saadawi] (2002b), que o problema da religião não está na crença ou na intenção do crente em si, mas na utilização dela como uma plataforma de legitimação de ações opressivas e/ou violentas.

A censura promovida à obra de El Saadawi nos anos 1980 foi, sobretudo, fruto de uma pressão religiosa. A autora a descreve do seguinte modo: “Minha vida estava capturada no fogo cruzado das forças de segurança do Estado e dos movimentos terroristas que ocultavam seus objetivos por trás de uma fachada religiosa. (…) A bala fatal seria disparada nas minhas costas por um guarda-costas ou na frente por uma jovem usando uma máscara religiosa?” (EL SAADAWI, 1999b, p.14, tradução livre). Tal pressão religiosa alcançara El Saadawi por conta de seus posicionamentos críticos e abertos acerca de temas como a MGF, a violência doméstica em suas diversas formas e as leis de família.

Além da experiência de censura de sua obra, El Saadawi chegou a ser presa pelo governo do presidente Anwar Sadat em 1981, junto com outros intelectuais, e permaneceu na Prisão Feminina de Qanatir por cerca de três meses, sob a alegação de “crimes contra o Estado”, por conta das críticas sociais e políticas que ela trazia em suas obras. Em Men, Women, And God(s): Nawal El Saadawi and Arab Feminist Poetics (1995) Fedwa Malti-Douglas argumenta que o período de cárcere de El Saadawi teria justamente impulsionado uma espécie de explosão criativa na autora, visto que, a partir do Memories from the Women´s Prision [Memórias de uma prisão feminina] (1983), ela lançou-se em uma série de experimentações poéticas que compreendiam peças e contos em que fazia críticas ao poder político-religioso, alertava para os perigos do radicalismo  e travava paralelos entre a história do Egito e o momento (MALTI-DOUGLAS, 1995, 159-163).

No ensaio Creativity, Dissidence and Women (2006), El Saadawi retoma a discussão acerca daquelas que ela considera serem as principais consequências de cerca de três décadas de intensificação do poder político de grupos islâmicos no Egito, a saber: um retrocesso nos direitos das mulheres no âmbito familiar e o retorno da política do véu, que, de acordo com a autora, ao ser apropriada por grupos islamitas reforçava uma leitura tradicional e patriarcal em que a mulher deveria ater-se ao seu papel no âmbito doméstico e sob a tutela masculina. Neste contexto, El Saadawi (2006) retoma um questionamento presente em A face oculta de Eva (2002) acerca dos significados do uso do véu, apontando a necessidade de considerar o contexto em que é usado por mulheres no Egito (e nas sociedades árabes).

El Saadawi opunha-se ao uso do véu enquanto uma obrigação religiosa islâmica – conforme era apresentado por grupos islamitas no Egito e na região – e enfatizava que o uso de tal peça de vestimenta feminina possuía um significado mais amplo e complexo que deveria ser entendido em contexto. Primeiro, o uso do véu não é uma obrigação religiosa descrita no Alcorão, por exemplo, mas fruto de uma apropriação de práticas sociais já existentes em outras religiões monoteístas (judaísmo e cristianismo) que tinham no contexto uma dupla função: a de garantir que as mulheres deveriam cobrir-se em espaço religioso, quando dirigiam suas orações à Deus; bem como a de demonstrar sua pertença a determinada classe social, indicando que encontrava-se sob a tutela de uma família.  Segundo, o uso do véu tomou significados diferentes ao longo dos séculos, sendo que, no final do século XIX e início do século XX, o questionamento de seu uso esteve ligado a um aspecto político que assinalava para uma entendida modernização dos países árabes em resposta à atuação europeia na região, ou seja, seria uma espécie de representação simbólica da tentativa de secularização de alguns países, como no caso do Egito e Irã.

Para El Saadawi um problema mais urgente em seu país era o fortalecimento de grupos religiosos islamitas, principalmente na segunda metade do século XX, que, para desenvolverem seus projetos de poder, acionavam uma pauta de valores e costumes religiosos como uma alternativa. Em meio a tal pauta encontrava-se a retomada de valores e práticas que traziam a autoridade masculina, o uso do véu e o retorno à religião e suas prescrições legais (Sharia) como elemento central. Deste modo, as mulheres passaram a ter seu papel na sociedade e suas demandas sociais, econômicas, educacionais e legais questionadas e deslegitimadas, o que para El Saadawi era um retrocesso com relação aos esforços por elas feitos para alterar seus papel e direitos nas sociedades.

A autora também sofreu pessoalmente com o fortalecimento deste movimento religioso islamita que descreveu em seu país. Além das ameaças à sua vida, que chegaram a motivar seu autoexílio na década de 1990, El Saadawi também teve seu casamento ameaçado e questionado quando um tribunal tentou dissolvê-lo, ao acusá-la de apostasia e violações contra o Islã, uma infração/crime que a corte de família conduzia com muita seriedade como forma de coerção social e manutenção da influência da religião nas leis de família no país. El Saadawi não se intimidou pela acusação e processo que foram motivados por seus posicionamentos acerca dos direitos das mulheres, sobretudo no âmbito familiar.

Apesar de desenvolver críticas contundentes a aspectos da sociedade egípcia e árabe, sobretudo ao destacar a opressão e violência infligidas às mulheres, El Saadawi demonstrava também a preocupação com a manutenção de visões estereotipadas com relação a identidade das mulheres muçulmanas e, assim, utilizava os espaços em que era convidada para proferir palestras ou conceder entrevistas para apresentar reflexões a esse respeito e clamar pela necessidade de compreender a mulher muçulmana como um agente social capaz de apresentar suas demandas político-sociais e de buscar os meios para fazer com que seja considerado por suas respectivas sociedades.

Além de não reivindicar um modelo europeu ou secular da posição da mulher nas sociedades árabes, a autora procurava clamar pela compreensão da agência feminina na política em busca por direitos, sobretudo no âmbito das leis de família. Reforçava, sobretudo, a necessidade das mulheres se conscientizassem de sua posição na sociedade e buscarem o que ela chamou de dissidência criativa, ou seja, uma forma de atuação que implicava na observação dos paradoxos existentes nas sociedades patriarcais e capitalistas, tais como as injustiças econômicas e sociais, bem como na busca por meios de questionar o domínio neocolonial e a exploração econômica e política das pessoas do terceiro mundo.

Em sua fala Why keep asking about my identity?, apresentada na Conferência Anual da Associação Africana de Literatura (1996),a autora  apresenta o desconforto que observava de diferentes audiências ocidentais quando a sua voz e sua verdade iam de encontro com a ideia existente acerca de uma identidade árabe-africana, que aqueles que “monopolizam a palavra”, inclusive a dos imigrantes, tinham em mente como “ideal”. Assim, El Saadawi questionava: “Todas as outras culturas eram reduzidas em seu escopo, atrasadas, tendenciosas, preconceituosas, incapazes de lidar com o mundo como ele é hoje, incapazes até mesmo de lidar com seus próprios problemas e encontrar saídas. As pessoas na minha parte do mundo eram corruptas, acostumadas a curvar as costas, sabiam pouco sobre a essência humana, e menos ainda sobre direitos humanos” (EL SAADAWI, 1999b, p.15).

A crítica apresentada aqui pela autora diz respeito à manutenção de uma visão orientalista no sentido da crítica de Edward Said de que desde o século XIX prevaleciam na literatura visões imaginadas e idealizadas a partir de estereótipos com relação à aparência, à importância e à atuação das mulheres muçulmanas em suas sociedades originárias e nas sociedades ocidentais em que eventualmente viviam ou trabalhavam.

Nawal El Saadawi faleceu em março de 2021 no Cairo, Egito, aos 89 anos de idade. Ao longo das décadas mostrou as múltiplas facetas de atuação e resistência: ativista feminista, médica psiquiatra, escritora e ensaísta, mãe. Sua vida, obra intelectual e literária discutiram em profundidade a situação da mulher no Egito (e no mundo árabe, a partir de suas viagens atuando como médica de família), apresentando questões como as possibilidades de agência/resistência em meio à violência e opressões de ordem religiosa, política, social e econômica.

A atualidade da obra de El Saadawi pode ser observada na relevância das pautas abordadas por ela, tais como a mutilação genital feminina (MGF), a violência doméstica (em suas formas física, psicológica e sexual), e as leis de família (que orientam tópicos como os direitos de mulheres e homens no casamento, no divórcio e na custódia de filhos). Essas reivindicações inspiraram a reflexão de estudiosas no Egito e no Oriente Médio acerca do status da mulher.  

Entre as diversas vozes femininas que El Saadawi inspirou destaco aqui a escritora egípcia Mona Eltahawy, que em sua obra destaca a importância na atuação feminina em lutar por seus direitos familiares, sociais e econômicos em um contexto político marcado por governos autoritários como é o caso do Egito. Eltahawy tornou-se um símbolo de mobilização feminina durante sua cobertura dos protestos populares da Primavera Árabe no Egito, principalmente pelo fato de ter denunciado que neste contexto sofreu violência física, sexual e foi detida pela polícia. Os principais temas discutidos por Eltahawy são: o status da mulher nas sociedades árabes – determinado por forças políticas, culturais e religiosas que a conduzem a uma espécie de cidadão de segunda classe – e a necessidade de as mulheres empreenderem um duplo confronto na atualidade, um vinculado à luta (junto aos homens) contra os regimes opressores, e o outro contra as estruturas econômicas e políticas que oprimem e normatizam as mulheres.

Referências Bibliográficas

Obras de Nawal El Saadawi (livros, artigos, comunicações, peças e contos)

Livros traduzidos em português e edições em inglês

El Saadawi, N. (2019). A mulher com olhos de fogo: o despertar feminista. São Paulo: Faro Editorial.

YOUKHANNA, Nina. (2018). Translation: Isis: A Play in Two Acts by Nawal El-Saadawi. The World Hoard, n.6, pp.62-71. Recuperado de: http://ojs.lib.uwo.ca/index.php/wordhoard/article/download/7209/5907. Acesso em: 07 abr. 2021.

El Saadawi, N. (2002a). A face oculta de Eva: as mulheres do Mundo Árabe. São Paulo: Global Editora.

El Saadawi, N. (2013). Memoirs of a woman doctor. Saqi.

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El Saadawi, N. (2006). Creativity, Dissidence and Women. Quaderns de la Mediterrània, 14, pp.113-118. Recuperado de: http://www.iemed.org/publicacions/quaderns/14/qm14_pdf/18.pdf. Acesso em: 07 abr. 2021.

El Saadawi, N. (2002b). Walking Through Fire: The Later Years of Nawal El Saadawi, In Her Own Words.  London: Zed Books.

El Saadawi, N. (1999a). A daughter of Isis: the autobiography of Nawal El Saadawi. London: Zed Books.

El Saadawi, N. (1999b). Why Keep Asking Me About My Identity. In: HURLEY, E. et al. (Eds.). Migrating Words and Worlds: Pan-Africanism Updated, (4), pp.7-27.

El Saadawi, N. (1995). “But Have Some Art With You”: Na Interview with Nawal El Saadawi. [Entrevista concedida à Jennifer Cohen]. Literature and medicine, 14 (1), pp.60-71.

El Saadawi, N. (1994). Memoirs from the Women’s Prison. Los Angeles, CA: University of California Press.

El Saadawi, N. (1993). Women’s resistance in the Arab World and in Egypt. In:Afshar, H. (Ed.). Women in the Middle East: perceptions, realities and struggles for liberation. London: Palgrave Macmillan, pp.139-145.

El Saadawi, N. (1989). Eyes. Index on Censorship, 18(2), p.25-28. Recuperado de: https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1080/03064228908534596. Acesso em: 10 abr. 2021.

Obras secundárias (livros, artigos, resenhas)

Malti-Douglas, F. (2018). Men, Women, and Gods: Nawal el Saadawi and Arab Feminist Poetics. Los Angeles: University of California Press.

BALAA, L. (2018). El Saadawi Does Not Orientalize the Other in Woman at Point Zero. Journal of International Women’s Studies, 19(6), pp.236-253.

Amireh, A. (2000). Framing Nawal El Saadawi: Arab feminism in transnational world. Signs: Journal of Women in Culture and Society, 26(1), pp.215-249.

Luz, F. A. (2020). Entre memória e ativismo político: contribuições de Nawal El Saadawi para o feminismo egípcio e transnacional. Malala, 8(11), pp.169-180.