Marie de Jars de Gournay

Marie le Jars de Gournay

(1565-1645)

 

Telma de Souza Birchal,

Departamento de Filosofia da UFMG – Lattes

Verbete Gournay – PDF.docx

 

Imagem: Retrato de Marie Gournay (autoria desconhecida), reproduzido na edição dos Conselhos da Senhorita de Gournay, de 1641. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque nationale de France.

Informações biográficas

Marie le Jars de Gournay, primogênita de uma família da pequena nobreza francesa, nasceu em 1565 em Paris, onde viveu a maior parte da sua vida. Nunca se casou, escolhendo para si o destino improvável de uma “mulher de letras”. Figura feminina excepcional entre as de sua classe — editora, tradutora, romancista, poeta e ensaísta —, ela vai se sustentar de seu trabalho editorial e das modestas pensões que recebe dos reis como intelectual da corte.

Seu pai, Guillaume le Jars, foi tesoureiro nas cortes de Carlos IX e de Henrique III, tendo chegado à nobreza em 1568, quando adquiriu uma propriedade em Gournay-sur-Aronde, na região da Picardia. Sua mãe, Jeanne de Acqueville, era oriunda de uma família de juristas. O casal teve também outras quatro filhas (uma delas morre ainda na infância) e dois filhos. Marie de Gournay recebeu a instrução básica dada às mulheres nobres em sua época, mas foi muito além: como autodidata, ela aprendeu o latim e o grego nos livros de seus irmãos, comparando os originais com suas traduções francesas. 

A morte de Guillaume em 1578, tendo Marie de Gournay apenas 12 anos, assim como as turbulências provocadas pelas guerras de religião, trouxeram dificuldades financeiras à família, que foi empobrecendo progressivamente. A viúva se viu forçada, como medida de contenção de gastos, a mudar-se de Paris para a Picardia. 

Mme. de Gournay morre em 1591, deixando Marie, então com 26 anos, na gestão da família, pois seu irmão Charles, herdeiro das terras de Gournay, era mais afeito a viagens e aventuras. O segundo de seus irmãos se dedica à carreira militar. Uma de suas irmãs se torna religiosa e as outras duas se casam, o que envolve a necessidade de conceder-lhes dotes. Em torno de 1595, Marie de Gournay se instala definitivamente em Paris e passa a viver numa pequena casa da família, tendo em vista tornar-se escritora. A partir daí inicia-se um processo no qual os bens da família, inclusive os imóveis em Paris, têm de ser vendidos para fazer face a dívidas e despesas várias. Em 1608, Charles vende as terras da Picardia, de modo que o título de nobreza da família torna-se apenas simbólico. Marie de Gournay passa a depender cada vez mais de seu trabalho editorial e das pensões da corte. Não era comum que a instrução das mulheres fosse além do necessário ao papel de mãe (ou produtora de herdeiros), de gestora do lar e de sustentadora das tradições religiosas. Havia, porém, exceções a esta regra, como as cortes da princesa Marguerite de Valois e de Marie de Medicis, que abrigavam damas letradas e das quais Marie de Gournay fez parte. Luís XIII e o cardeal Richelieu continuam, depois delas, a conceder-lhe pensões. 

Sua obra volumosa trata dos mais variados assuntos: da religião à política, passando pela educação dos príncipes; da prática da calúnia (que a atingiu fortemente) às discussões sobre a língua francesa, passando por uma apreciação da poesia; das virtudes e vícios à condição dos nobres, passando pela crítica aos duelos; da denúncia dos preconceitos ao seu autorretrato, passando pela condição feminina. Atenta e irônica, escreve de modo rigoroso e apaixonado sobre sua época; católica, tende um tanto perigosamente para a facção extremista (Liga); erudita, anima um pequeno salão literário em sua casa; polemista, defende o direito de pessoas “que não portam barba” de participar da vida pública em todas as suas dimensões. Gournay tinha, nas palavras de Philippe Desan, um “temperamento demonstrativo” e “nada diplomático” (2014, p. 506), o que, sobretudo por ser mulher, não lhe facilitou a vida. Mas ela nunca procurou facilidades. 

Gournay morre em Paris, em 1645, em uma casa alugada, na companhia de um círculo de homens intelectuais, tendo a seu serviço uma única senhora, Nicolle Jamin, a quem contempla generosamente em seu modesto testamento. Em sua lápide, amigos mandam gravar, em latim: “À Marie de Gournay que Montaigne chamava de filha, Justus Lipsius e todos os doutos, de irmã. Ela viveu 80 anos e morreu em 13 de julho de 1645. Sua sombra será vitoriosa pela eternidade” (Fogel, 2004, p. 10 – tradução nossa).

 

Marie de Gournay e Michel de Montaigne

A vida dessa mulher excepcional, porém, não pode ser contada sem dois eventos decisivos: a leitura dos Ensaios em 1584 e o encontro com o autor Michel de Montaigne (1533-1592), em 1588. Do mesmo modo, a vida dos Ensaios não pode ser contada sem o trabalho também decisivo de Marie de Gournay, que se ocupou das edições póstumas da obra, dizendo cuidar do livro como de um órfão. 

Aos 19 anos, residindo no castelo na Picardia, Gournay lê os Ensaios (na edição disponível à época, a de 1582, que consistia apenas dos livros I e II). Mais tarde, descreve este fato como um verdadeiro abalo: 

Eles [os familiares] estavam prestes a me dar o heléboro [planta que se acreditava ser um remédio para casos de loucura], quando eles [os Ensaios] foram colocados em minhas mãos ao final de minha infância, se não fosse alguém que, para me defender contra tal acusação, tivesse mostrado o muito sábio elogio daquele flamengo [Justus Lipsius] feito alguns anos antes a seu autor, meu pai (Gournay, OC, pp. 280-281). 

A partir daí ela deseja mais do que tudo conhecer o autor de um livro tão excepcional. No início do ano 1588, ao saber que ele está passando uma temporada em Paris, ela vai ao encontro dele. Michel de Montaigne, nobre influente na corte de Henrique III e já com fama de escritor, tinha 55 anos, ela tinha 23. Ele aceita o convite, feito por Marie de Gournay e sua mãe, para passar um período em suas terras, o que acontece ainda no mesmo ano, em duas ou três visitas de algumas semanas cada uma. Nesse período, a dupla examina a recente edição dos Ensaios (1588), que consiste agora em 3 livros. Na companhia dela, o autor adiciona novas passagens às margens do texto impresso, com vistas à edição ampliada futura. Gournay participa da reescrita do livro: duas adições são comprovadamente de suas mãos (Desan, 2014, p. 505). Nasce aí não só a futura editora dos Ensaios, mas a própria identidade de Marie de Gournay como “fille d’alliance” (filha espiritual ou adotiva) de Montaigne. Que a declarada afeição filial tenha sido de fato um caso de amor é uma hipótese plausível segundo alguns intérpretes (Philippe Desan, 2014), mas não segundo outros (Krier, 2023). O fato é que, depois dessas semanas na Picardia, segue-se um silêncio: não há registro de outro encontro ou de correspondência entre os dois. Marie de Gournay recebe a notícia da morte de Montaigne meses depois do ocorrido, por Justus Lipsius. 

Após a morte do autor, em 1592, a viúva, Françoise de la Chassaigne, envia a Marie de Gournay um exemplar da edição de 1588 dos Ensaios, contendo muitas adições manuscritas feitas por seu marido e lhe confia a nova edição do livro. Este presente abre para essa mulher talentosa e de fortuna modesta as portas do mundo das letras, no qual ela entra acompanhada da imagem de um homem público importante, além de autor reconhecido.

Em um de seus primeiros escritos ela afirma dever a Michel de Montaigne seu nascimento espiritual: “eu me enfeito com o belo título desta aliança, pois não tenho outro ornamento, e não estou errada em querer chamar pelo nome paterno apenas aquele de quem provém tudo o que na alma eu tenho de bom” (Gournay, “Prefácio longo”, OC., p. 282). Ou, mais radicalmente ainda: “Não sou eu mesma senão enquanto sou filha” (Idem, p. 281). 

Ao longo de sua vida, Gournay vai continuamente reafirmar seu vínculo com seu “père d’alliance” (pai espiritual ou adotivo); a leitura de sua obra, por sua vez, atesta que a tão proclamada filiação nunca significou subserviência intelectual. Gournay tem em Montaigne seu modelo de pensamento crítico e demolidor de preconceitos; como ela mesma escreve, ele “desensina a besteira”. Quanto às proposições e teses, ela terá as suas próprias, e em muito diferentes das de seu pai espiritual. Ao contrário dele, que se expressa em tom cético e cauteloso, Gournay é polêmica, é uma mulher “de certezas”, dona de um “discurso demonstrativo”, mas que não deixa de ser recheado de ironias e de metáforas (Arnould, 2004, Dic, p.436).

Em contraste com a presença de Montaigne nos escritos de Gournay, ela é uma quase-ausência nos Ensaios. Uma única passagem a nomeia e sobre ela tece considerações muito elogiosas: 

Tive prazer de divulgar em vários lugares a esperança que deposito em Marie de Gournay le Jars, minha filha por aliança, sem dúvida amada por mim muito mais do que paternalmente, e envolvida em meu retiro e solidão como uma das melhores partes do meu próprio ser. Não vejo mais do que ela no mundo. Se a adolescência pode pressagiar, um dia essa alma será capaz das mais belas coisas, e entre outras da perfeição dessa santa amizade da qual não lemos que seu sexo tenha sido capaz de elevar-se: a sinceridade e firmeza de seu caráter já são suficientes, sua afeição para comigo mais que abundante e tal em suma que nada há a desejar, exceto que a apreensão que ela sente por meu fim, aos cinquenta e cinco anos nos quais me encontrou, a atormentasse menos cruelmente. O julgamento que fez dos primeiros Ensaios, e sendo mulher, e nesse século e tão jovem e sozinha em sua região, e a notável intensidade com que me amou e me buscou durante muito tempo, baseada apenas na estima por mim que adquiriu por meio deles, antes mesmo de me ter visto, é uma particularidade digna de consideração (Ensaios, II, 17, 494).

 Levanta-se a hipótese de que este trecho não teria sido escrito pelo autor dos Ensaios, mas pela própria Marie de Gournay, pois não aparece em outro exemplar anotado pela mão de Montaigne. Os intérpretes se dividem neste caso. André Tournon (2006) defende sua autenticidade, Philippe Desan (2014) tem menos certezas. Gournay por vezes interferiu em algumas passagens dos Ensaios, ao editá-los. Venha de que mãos vierem, a passagem revela uma relação muito especial que marcou a história editorial dos Ensaios e o percurso de uma filósofa.

 

Gournay: vilipendiada e celebrada

 

Sua firmeza em seguir a vocação de “mulher de letras” contra as recomendações dos costumes trouxe-lhe dificuldades de várias ordens. A sociedade de seu tempo a presenteou com apelidos ofensivos e sexistas como o de “velha donzela” (vieille pucelle), “bruxa”, “mulher pedante” (bas bleu), ridicularizando-a. Guez de Balzac, com ironia, fala de sua aparência. Alguns lhe armaram verdadeiras ciladas. Em 1616 ela foi convencida por mentirosos de que o rei James I, da Inglaterra, lhe encomendara uma autobiografia, e ela então escreve, de boa-fé, a Representação da vida da Demoiselle de Gournay. Foi especialmente figurada na Comédia dos Acadêmicos, que ridiculariza os integrantes da recém-criada Academia Francesa. Não é de se espantar que uma de suas obras mais ácidas se denomine Queixa das damas (Grief des dames, 1626).

Gournay recebeu, no entanto, ainda em seu tempo, reconhecimento por seus talentos e inteligência. Justus Lipsius, o grande humanista belga, é um dos primeiros a divulgar a excepcionalidade da jovem, em resposta a uma carta na qual ela lhe expusera sua impressão sobre os Ensaios. Ele se declara emocionado e admirado pela demonstração de inteligência e espírito dessa “nobre virgem”, escrevendo também a Montaigne para lhe dar ciência da existência de tal leitora. Dado o caráter público das correspondências naquela época (ambas as cartas foram publicadas em 1590), os elogios de Justus Lipsius, sem dúvida, contaram como carta de apresentação para Marie de Gournay. 

Etienne de Pasquier, jurista, humanista e amigo de Montaigne, publica em carta, em torno de 1605, seu apreço pela Demoiselle: 

Ele deixou duas filhas: uma nascida de seu casamento, herdeira de todos os seus bens, […] a outra, sua filha adotiva (fille par aliance), herdeira de seus estudos. […] Essa é a Demoiselle le Jars, […] a qual se propôs a não ter como marido senão a sua honra, enriquecida pela leitura de bons livros, e, acima de todos, os Ensaios do Sr. de Montaigne. […] (apud. Fogel, 2004, p. 12).

Frequentaram seu salão literário o grupo que viria a integrar a Academia Francesa, criada em 1634, e os filósofos denominados “libertinos”, como François La Mothe le Vayer, seu amigo próximo, e Gabriel Naudé. Gournay se correspondeu com a humanista holandesa Anna Maria van Schurman, a quem se refere elogiosamente em seu Da Igualdade dos homens e das mulheres.

 

Obra

Sua obra é variada em temas e estilos literários. Trata, em sua maior parte, da linguagem e de assuntos éticos e sociais, tendo também um caráter autobiográfico. A filósofa inaugura suas publicações com dois escritos quase simultâneos: o Passeio com o Sr. de Montaigne (1594) e o Prefácio aos Ensaios (1595). A partir daí, ela não só escreve novas obras, como reformula as antigas, de forma que temos hoje várias versões de um mesmo escrito. Em 1626 reúne todas as suas publicações até então, acrescenta-lhes novas, e publica L’Ombre de la Demoiselle de Gournay [A sombra [ou a alma] da senhorita de Gournay], que ganha nova edição em 1634, assim como um novo título: Les Advis, ou les Présens de la Demoiselle de Gournay [Os conselhos ou os presentes da senhorita de Gournay]. A última edição dos conselhos Les Advis é de 1641 e tem cerca de mil páginas. A assinatura “Demoiselle de Gournay” acentua sua condição de celibatária, mas também seu título de nobreza. 

De sua obra extensa e variada destacamos:

  • Le Promenoir de Monsieur de Montaigne, par sa fille d’alliance [Passeio com o Sr. de Montaigne, por sua filha adotiva] (1594)

Tal obra apresenta, já em seu título, a autora como “filha adotiva” de Montaigne e reúne um conjunto de escritos: o primeiro descreve uma conversa entre pai e filha que teria ocorrido durante um passeio, quando da estada de Michel de Montaigne nas terras de Gournay, em 1588. O tema da conversa é uma narrativa trágica, publicada décadas antes por Claude de Taillemont em seus Discursos em honra e exaltação das damas (1553), a qual Gournay reescreve a seu modo. Seguem-se a tradução do livro II da Eneida de Virgílio e 65 poemas de autoria de Gournay. O conjunto é dedicado a Montaigne em carta datada de 1588, de modo a que se entenda que teria sido escrito na Picardia e logo após ter ele deixado o local. No entanto, está bem estabelecido pela crítica que, na verdade, a data do escrito é bem posterior, provavelmente em Paris e após a morte de Montaigne (Gournay, O.C., p. 1202).  O primeiro desse conjunto de escritos é o único trabalho de ficção de Gournay e versa sobre “as vicissitudes do amor” e os modos de evitá-las. Conta a história de Alinda, bela princesa persa que se deixa levar pela paixão por Leontin e com ele foge, traindo seus compromissos com seus país. O desfecho é o suicídio dela, seguido do dele e da infelicidade de todos os envolvidos na tragédia. O fio da narrativa se interrompe em diversos momentos, dando lugar a digressões várias: sobre os deveres dos soberanos, sobre a prática das calúnias e, de modo especial, sobre a maneira como as mulheres devem encarar o amor. Em muitos momentos ela interpela seu companheiro de passeio, mas a voz de Montaigne não soa no texto. Na tragédia, o amor erótico é fator de desestabilização dos envolvidos, podendo chegar à perda das identidades. A paixão atinge indistintamente a homens e a mulheres, mas não igualmente, pois elas são mais vulneráveis, o que ensinam os exemplos clássicos de mulheres traídas e abandonadas, como Dido por Enéas, ou Ariadne por Teseu. O remédio, para Gournay, é a instrução: que as mulheres se voltem para textos do passado e com eles aprendam, e assim evitem um destino infeliz. Elas devem tomar consciência da natureza inconstante e enganadora do amor para não acreditar nas promessas dos homens os quais, mesmo quando são sinceros, estão enganados sobre a firmeza de seus sentimentos. Poetas e filósofos ensinam a colocar Eros em seu devido lugar, ou seja, em sua inferioridade em relação ao cultivo do espírito. Longe dos ideais do amor romântico e manifestando um certo conservadorismo a respeito do comportamento sexual feminino, Gournay considera que a constância, a modéstia (o pudor) e a prudência — sobretudo essa última — são as virtudes a serem cultivadas pelas mulheres. Ela as exorta a abandonar a ingenuidade e a ignorância, tidas pelo senso comum como atrativos femininos. Um pequeno trecho do Passeio será recortado, ampliado e publicado em 1622 em obra autônoma intitulada Da igualdade dos homens e das mulheres, a qual inscreve Gournay na história do feminismo.

 

  1. O Prefácio aos Ensaios de Montaigne (1595)

Marie de Gournay tornou-se conhecida principalmente como a editora dos Ensaios, trabalho que se estende de 1595 a 1635. Até o momento de sua morte, em 1592, o autor foi fazendo acréscimos e modificações no volume publicado em 1588, visando uma edição futura. Gournay será a responsável por dar a conhecer ao público os Ensaios em sua forma mais completa e definitiva. A primeira edição de Gournay, de 1595 é precedida por um extenso prefácio, que passou a ser denominado “Prefácio longo” para distingui-lo de outro, curto, presente em algumas edições posteriores. No “Prefácio longo”, ela pretende responder ao que chama de “fria aceitação” do público em relação aos Ensaios. Num texto no qual uma aguda inteligência é atravessada por um páthos hiperbólico, ela defende seu pai adotivo de algumas acusações que lhe foram feitas: utilizar neologismos em francês e recorrer ao dialeto popular gascão; apresentar um texto desorganizado e com títulos de capítulos que não correspondem ao conteúdo deles; faltar com a decência ao fazer apreciações positivas da sexualidade e usar linguagem explícita ao falar do assunto; falar demais de si mesmo, o que seria presunção; distanciar-se da ortodoxia católica ao fazer profissão de ignorância. Marie de Gournay sabe que está lidando com um texto sem precedentes, e responde: o uso que Montaigne faz da língua do povo não tem nada de vulgar; sua linguagem clara, “anatomizando o amor”, expressa uma moralidade verdadeira e superior à dos que evitam o tema; a confissão de ignorância sobre o divino é fundamentalmente cristã e falar de si não é vaidade, mas revela a sinceridade e humildade de quem se autoexamina. Ao buscar as motivações das críticas, ela as encontra nos preconceitos, no pedantismo e na ignorância do público leitor, ou seja, o modo como uma pessoa recebe os Ensaios é a medida de sua sabedoria e virtude. De fato, críticas de diversos teores foram feitas aos Ensaios, mas a obra não foi mal-recebida, ao contrário, teve boa acolhida em seu tempo. Mas, quando se trata de Montaigne e dos Ensaios, Gournay não faz concessões. Também ocorre, por vezes, que seu desejo de ajustar as opiniões de Montaigne, em moral e em religião, às exigências de seu tempo e às suas próprias — ela que sobreviveu a ele por cinco décadas — traça de seu pai adotivo uma imagem mais ortodoxa ou menos cética do que autorizam os Ensaios

Mais do que falar dos Ensaios, porém, o “Prefácio” é uma ocasião na qual ela expressa sua capacidade de julgar temas os mais diversos, que serão desenvolvidos posteriormente em outras obras. Um ponto fundamental, retomado nas obras de cunho moral e político, é a distinção, que vem do estoicismo, entre sábios — os instruídos e que sabem julgar — e “vulgo” (os ignorantes, tolos ou pedantes), categorias bem diferentes das de “nobre” e “plebeu” ou de “homem” e “mulher”, em que seu tempo dividia o mundo. Como só os sábios são capazes de discorrer apropriadamente sobre os grandes escritos, apenas a esse grupo Gournay concede autoridade para julgar sua própria apreciação dos Ensaios. Numa passagem irônica, ela exige que seu interlocutor (pois, certamente, tratar-se-á de um homem) exiba não só sua barba, mas bons argumentos. O “Prefácio” introduz a questão da condição feminina, quando ela descreve a experiência pessoal de não ter suas opiniões levadas em conta, pelo simples fato de ser mulher: 

Feliz és tu, leitor, se tu não és de um sexo ao qual se proíbe tudo, ao proibir-lhe a liberdade. […] mesmo se eu tivesse os argumentos de Carnéades, nenhum idiota (chétif) deixaria de me encurralar, com a solene aprovação da assistência, com um sorriso, um muxoxo, ou alguma piadinha que significa ‘é uma mulher que fala’ (Gournay, OC., pp. 283-284).

Essa digressão será reescrita na abertura da obra Queixa das damas. A defesa dos Ensaios torna-se uma defesa de si mesma e de quem mais saiba pensar, exprimindo-se como um ataque à tolice humana em geral e à misoginia em particular. 

 

  1. A Igualdade dos homens e das mulheres e Queixa das damas

As duas obras dedicam-se completamente à análise da situação das mulheres e à defesa da igualdade entre os gêneros. A primeira, publicada em 1622, tem um caráter erudito, reunindo diversas fontes literárias para fundamentar a tese de que mulheres possuem as mesmas virtudes e capacidades presentes nos homens. A segunda, um texto breve, surge quatro anos mais tarde, e se remete à experiência da autora. Marcada pelo desabafo, Queixa das damas ridiculariza, de maneira teatral, cenas protagonizadas pelos homens preconceituosos, ignorantes e pretensiosos de seu tempo se lhes acontece encontrar uma mulher inteligente e capaz (Hillman and Quesnell, p. 97). 

A Igualdade foi o primeiro entre os escritos de Gournay a ser traduzido para o inglês e para o português, o que mostra mais a importância do tema para nossa época do que a centralidade do feminismo em sua obra, pelo menos de modo explícito. A filósofa recorre a diversos autores para combater a misoginia (todos os citados nominalmente são homens, registre-se), começando pelos gregos e romanos (Platão, Sêneca, Plutarco, Diógenes Laércio etc.), passando por humanistas como Giovanni Boccaccio (1313-1375, Das mulheres famosas) e Cornelius Agrippa (1486-1535, Declamação sobre a nobreza e preeminência do sexo feminino), e chegando à “autoridade do próprio Deus” em autores eclesiásticos e na Bíblia. Embora sua perspectiva possa se inscrever na famosa “querelle de femmes” (querela ou controvérsia sobre as mulheres, ver verbete nesta enciclopédia), iniciada por Christine de Pizan (1363-1430), a Igualdade não se refere a elas. Quando interpreta uma obra, a polemista é seletiva, priorizando as passagens favoráveis à sua causa. 

A Igualdade começa marcando posição em relação a uma atitude corrente entre autores que defendem as mulheres, a de afirmar a superioridade delas em relação aos homens. Gournay se contenta com bem menos: 

A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco completo, pois redirecionam a preferência para elas. Quanto a mim, que fujo de todos os extremos, contento-me em igualá-las aos homens; em relação a isso a natureza também se opõe tanto à superioridade quanto à inferioridade (trad. Pedro Muniz, p. 30, grifo nosso).

Aqui o menos é, de fato, mais. Ela recusa a exaltação do feminino, seja a de origem religiosa, que consagra as mulheres à maternidade ou à santidade, seja a de origem filosófico-literária, como acontece na tradição do amor cortês, que as idealiza como seres perfeitos, puros e inatingíveis. Não é elevando-a acima dos homens que se deve reagir à atitude oposta, que rebaixa a mulher à categoria natural de reprodutora, condenando-a à vida privada e à roca de fiar (a quenouille, imagem central não só nos textos de Gournay, mas nos de outras mulheres escritoras de seu tempo). A pensadora fala em nome da razão e exige que um único parâmetro seja utilizado, independentemente de ser homem ou mulher o assunto em questão.

Mulheres são, simplesmente, e da mesma maneira que os homens, racionais e capazes de desenvolver virtudes morais. Como seres corporais, de fato, elas têm menos força que eles e deles diferem quanto aos órgãos sexuais, mas tudo isso é, do ponto de vista da razão, moralmente insignificante. Muitos animais excedem os humanos pela força, sem que isso seja considerado um motivo de inferioridade moral dos humanos; o mesmo critério deve ser aplicado no caso da diferença entre os sexos. Quanto à capacidade reprodutiva das mulheres, ela é tão determinante da dignidade delas quanto a dos homens é da deles, ou seja, nada tem a ver com a natureza racional da espécie humana, não passando de uma estratégia da natureza para mantê-la: “Além do mais, o animal humano não é homem nem mulher; se bem entendido, sendo os sexos feitos de maneira diferente apenas visando a propagação da espécie. A única forma e diferença deste animal está na alma racional” (Gournay, OC, p. 978). 

A igualdade entre os sexos ancora-se na ideia de unidade da espécie humana, cuja dignidade é compartilhada. Ao construir sua concepção da dignidade da mulher, opondo-a à tão difundida ideia de inferioridade ou incapacidade natural desse sexo, ela apela à experiência, buscando nos costumes a explicação para a situação de fato observada na sociedade:

O que deve ser provado: há mais diferença entre homens e mulheres do que entre as próprias mulheres, se levada em conta a instrução que elas receberam, se foram criadas na cidade ou em povoados, ou segundo a nação à qual pertencem? E, consequentemente, por que sua educação para os negócios ou para as letras, [fosse ela] igual à dos homens, não preencheria a distância vazia que aparece entre suas cabeças e as deles? (Idem, p. 971).

Neste ponto ela acrescenta uma crítica à passagem dos Ensaios na qual Montaigne declara “não saber por que raramente há mulheres dignas de comandar os homens”. Bastar-lhe-ia escreve ela, “justificar sua restrição a partir da maneira pobre e desgraçada pela qual se educa esse sexo” (Idem., p. 973), ou seja, aplicar às mulheres o mesmo critério que ele aplica aos homens, ele que tanto fala da importância dos costumes na formação dos humanos (Birchal, 2021).

Recusando os lugares comuns e a opinião do “vulgo”, ela afirma que tudo seria possível a uma mulher: dedicar-se às ciências, governar um país, comandar exércitos ou ser ordenada sacerdotisa da Igreja. Ela cita vários exemplos para prová-lo e, quando não os há (não há sacerdotisas na Igreja Católica), ela argumenta que a causa desse fato não seria doutrinária ou essencial, mas pragmática ou contingente. São Paulo ordenou o silêncio às mulheres não porque elas seriam indignas ou inferiores, mas para evitar que uma jovem mulher falando em público acenda o desejo dos homens. Ou ainda: se Deus se encarnou na forma de um homem, isso se justifica por razões humanas e contextuais, não por qualquer razão divina e, muito menos, por causa da indignidade das mulheres:

E se os homens se vangloriam de ter Jesus Cristo nascido com seu sexo, responde-se que isso se deveu por razões de decoro; não sendo possível, sem escândalo, um jovem se meter a todas as horas do dia e da noite no meio da multidão, a fim de converter, socorrer e salvar o gênero humano, se ele fosse do sexo das mulheres (Gournay, OC, p. 986 – grifo meu).

O mundo de Gournay não se divide entre homens e mulheres ou entre nobres e plebeus ou entre santos e pecadores, mas sim entre sábios e tolos. Uma forma de tolice, ou de “vulgaridade”, é atribuir sabedoria ou autoridade ao fato de a pessoa “portar uma barba”. A tolice que silencia as mulheres é tema de Queixa das damas, onde ela descreve sua experiência ao tentar participar de uma “conférence” (um debate). Ao modo de Montaigne, ela entende os debates como uma luta intelectual, na qual deve vencer quem tem melhores argumentos. A lutadora lamenta, em sua queixa, que mulheres são vencidas por meio de golpes baixos, a começar por serem desqualificadas de antemão, pois os homens, ao recusarem tomar conhecimento do que escrevem ou dizem as mulheres, constroem sua superioridade sem fazer qualquer prova dela. Nesse contexto, homens dotados apenas de pretensão (dos quais ela traça retratos imperdíveis) encontram a audiência negada a mulheres cultas e sábias.

Gournay é uma pensadora da universalidade do gênero humano, sua defesa das mulheres se faz sobre uma base universalista e racionalista, prenunciando o feminismo inspirado no cartesianismo e sua distinção radical entre corpo e alma. 

 

  1. Outros escritos: moral, crítica social e linguagem

Outras formas de tolice confundem grandeza e virtude moral com título de nobreza. Aristocrática a seu modo, ela reafirma a distinção entre o que é nobre e o que é vulgar, mas como resultado da educação que cada qual recebe e dos valores que cada qual escolhe: “As individualidades, consideradas agora independentemente de suas origens social ou biológica, formam uma nova elite caracterizada pelo mérito, capaz de despertar os espíritos, de instruir os príncipes e mesmo de orientar as decisões públicas” (Krier, 2023, p. 172). A vulgaridade consiste em julgar as coisas pela sua fama, sem reflexão própria. Já no “Prefácio longo” ela escrevera que um “vulgar”, ao comprar um quadro de um pintor famoso, não leva consigo senão o nome do pintor, pois não reconhece o valor da obra em si (OC, p. 276). Esses e outros temas morais se encontram, por exemplo, em Antipatia entre almas elevadas e baixas, Que os grandes espíritos e as pessoas de bem se procuram, Da insignificância da coragem comum em nosso tempo, Da calúnia, entre outros. Em seus ensaios de cunho político, Gournay nunca questiona o regime da monarquia, mas exige dos reis e nobres que sua autoridade se assente nas altas virtudes, defendendo a moderação nos gastos da corte, a limitação das guerras e a atenção aos mais necessitados. A educação dos príncipes é uma preocupação central, que ela desenvolve em Da educação das crianças na França, entre outras obras. Pronuncia-se sobre os eventos de sua época, como na Exclamação sobre o deplorável parricídio do ano 1610, no qual lamenta o assassinato de Henrique IV.

Num momento em que os franceses estão unificando sua língua e estabelecendo regras para vocabulário e gramática, ela expõe suas ideias sobre o que é e deve ser a língua francesa, em Da língua francesa e Defesa da poesia. Polemista, ela elogia os antigos poetas da Plêiade e sua linguagem inspirada, considerados ultrapassados pela maior parte dos intelectuais de seu tempo. Do mesmo modo, contrariamente à tendência de elitização da língua, ela defende que expressões populares possam estar presentes num texto literário, a exemplo dos Ensaios de Montaigne. A língua é viva, acontece tanto na poesia sublime quanto em seu uso cotidiano; não deve, portanto, ser submetida aos comandos e regras de uma determinada classe de pessoas. 

Em religião, Gournay mantém sua adesão ao catolicismo, inequivocamente. Obras como Das falsas devoções e Conselhos a algumas pessoas da Igreja mostram que ela não aceitou a opinião expressa por Montaigne, para quem a teologia não seria um assunto adequado às mulheres, ousando interpretar textos bíblicos e debater questões de doutrina. 

As obras de caráter autobiográfico são: Apologia daquela que escreve — na qual ela se defende das maledicências a seu respeito, principalmente sobre a condução de sua vida financeira, e expressa sua empatia pelas pessoas que enfrentam preconceitos por serem pobres — e Representação da Vida da Demoiselle de Gournay.

Se as questões “feministas” não são o que predomina em sua obra, dada a diversidade de temas nela presentes, no que diz respeito à vida e à prática, Gournay faz “[…] prova de igualdade em ato, ao tomar partido, como qualquer um, nos debates literários de sua época, mostrando com isso que nenhum domínio é estranho à metade da humanidade ou à ‘metade do mundo’” (Mathieu-Castellani, 1997, p. 208).

 

Recepção da obra

 

Seu papel como editora dos Ensaios foi reconhecido em seu tempo e nos séculos seguintes, mas decresceu com o surgimento de outras propostas editoriais, a partir da descoberta do “Exemplar de Bordeaux” dos Ensaios, no final do séc. XVIII. Nos dias de hoje, a edição de 1595 está sendo redescoberta e valorizada. Sua obra autoral foi considerada e bem aceita por importantes intelectuais em seu contexto imediato, mas ficou praticamente esquecida por quase três séculos pela “república das letras” (Franchetti, 2006, p. 8). A partir do iluminismo, porém, ela começa a ganhar novos interessados. A obra completa de Gournay foi recentemente editada por J.- C. Arnould et al. (2002), com um cuidadoso aparato crítico.

 

Referências Bibliográficas

 

  1. Obras de Marie Gournay e traduções disponíveis

Gournay, M. (2002). Œuvres Complètes (OC), Edição de Arnould, L.-C, Berrior Salvadore, E., Blum, C., Franchetti, A. L., Thomine, M.-C. & Worth-Stylianou, V. Paris, Classiques Garnier, 2 vol.

Gournay, M. (2002). Apology for the Woman Writing and other works. Edição e tradução de Richard Hilmman and Collette Quesnell. Chicago e Londres, The University of Chicago Press.

Gournay, M. (2019). Igualdade entre homens e mulheres (1622). Tradução Pedro Muniz, em Rovère, Maxime (org.). Arqueofeminismo. Mulheres Filósofas e Filósofos Feministas Séculos XVII-XVIII, São Paulo, n-1 edições, 2019, p. 27-44.

Gournay, Marie le Jars de. Queixa das Damas. Tradução Cinelli Tardioli Mesquita e Martha Tremblay-Vilao, em Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 8, 1º semestre de 2018. p. 332 – 336. 

 

  1. Sobre os Ensaios de Montaigne

Montaigne, Os Ensaios. Trad. Rosemary Costhek Abílio, São Paulo, Martins Fontes, 2000.

 

  1. Literatura secundária

Arnould, J.-C., Gournay, Marie de (Marie de Jars, dite). In Desan, P. (dir.), Dictionnaire de Michel de Montaigne (p. 434-438). Paris: Honoré Champion, 2004, 

Birchal, T. (2021). When women are the issue, is Montaigne still thinking the social? In Balsamo, J. & Graves, A. (dirs.), Global Montaigne. Mélanges en l’honneur de Philippe Desan (p.279-292). Paris: Classiques Garnier. 

Desan, Ph. (2014).  “Une fille en Picardie”. In Montaigne. Une Biographie politique (p. 503-510). Paris: Odile Jacob. 

Fogel, M. (2004). Marie de Gournay. Itinéraires d’une femme savante. Paris: Fayard.

Franchetti, A. L. (2006). L’Ombre Discourante de Marie de Gournay, Paris, Garnier, 2006.

Hilmman, R. e Quesnell C. (2002). Introduction to The Ladie’s Complaint. In Gournay, M. Apology for the Woman Writing and other works (p.96-100). Edição e tradução de Hilmman¸ Richard e Quesnell, Collette. Chicago e Londres: The University of Chicago Press.

Krier, I. (2023). Marie de Gournay, philosophe moral et politique à l’aube du XVII ème siècle. Paris, Classiques Garnier.

Mathieu- Castellani, G. (1997). La quenouille ou la lyre : Marie de Gournay et la cause des femmes. In Tétel, M. (dir.), Montaigne et Marie de Gournay (p. 195-216). Paris: Classiques Garnier. 

Millet, O. (1996). Les préfaces et le rôle de Marie de Gournay dans la première réception des Essais. Bulletin de la Société des Amis de Montaigne. Série VIII, n° 1 – 2 – 3 (Janvier – Juin), p. 79-91.

Tardioli, C. ; Birchal, T. (2024). Escrita em Marie de Gournay. In Araújo, C., Deplagne, L. & Nogueira M.S.M. (orgs.), Pequenos ensaios sobre grandes filósofas. Volume 4 (p. 93-114); Campina Grande: Eduep.

Tournon, A. (2006). “Route par ailleurs. “Le nouveau langage” des Essais. Paris, Honoré Champion.

 

  1. Outros materiais e fontes

Projeto Uma Filósofa por mês – Marie de Gournay

https://germinablog.wordpress.com/setembro-marie-de-gournay-2/, consulta em 05/06/2024.

Uma lista completa das obras de Marie de Gournay, com data de publicação encontra-se em https://germinablog.wordpress.com/wp-content/uploads/2020/09/as-obras-de-marie-de-gournay.pdf, consulta em 05/06/2024.