Iris Marion Young

Iris Marion Young

(1949 – 2006)

 

por Carolina Antoniazzi, doutoranda no

 Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo – Lattes 

Iris Marion Young – PDF

Iris Marion Young. Ilustração de Little maquisart (fonte: https://www.instagram.com/little maquisart/)

Iris Marion Young nasceu em 02 de janeiro de 1949 em Nova Iorque e faleceu em 01 de Agosto de 2006 em Chicago. Ela graduou-se em filosofia pelo Queens College em 1970 e realizou seu mestrado e doutorado em filosofia na Universidade do Estado da Pensilvânia, obtendo o título de Doutora em 1974. Em sua trajetória acadêmica, Young foi professora de Filosofia no Instituto Politécnico de Worcester e na Universidade de Miami. No verão de 1995, foi professora visitante de Filosofia na Universidade Johan Wolfgang Goethe em Frankfurt, Alemanha. Antes de ir para a Universidade de Chicago, onde terminou sua carreira, deu aulas de Teoria Política por nove anos na Universidade de Pittsburgh, na Escola de Graduação de Assuntos Públicos e Internacionais. No ano de 2000, Young torna-se professora de Ciência Política na Universidade de Chicago, sendo membra do conselho docente do Centro de Estudos de Gênero e do Programa de Direitos Humanos de sua universidade. Após um ano e meio de luta contra um câncer na garganta, a autora faleceu aos 57 anos. 

Young também fazia parte do conselho editorial da Revista Constelações: uma publicação internacional de teoria crítica e democrática. Além disso, fazia parte de diversos movimentos sociais, como membra ativa da Associação de Filósofos Radicais (1985-1987), de movimentos contemporâneos de mulheres e contra a intervenção militar, segundo ela própria descreve. Assim, a autora está o tempo todo referendando sua reflexão teórica com os aprendizados e experiências que viveu nos movimentos sociais. Sua experiência pessoal também influenciou fortemente as teorias que viria a desenvolver no futuro. Com a morte de seu pai, Young e os irmãos, foram encaminhados para um abrigo. O estado julgou sua mãe culpada por negligência infantil. Aos olhos de Young, anos mais tarde, quando analisa a situação de sua mãe em um de seus trabalhos, sua falha foi não ter limpado a casa de acordo com os padrões esperados pelos oficiais estatais. O impacto de sua experiência no abrigo, bem como a intervenção estatal e suas burocracias, reflete as reflexões de Young sobre família, papéis de gênero, divisão social do trabalho e justiça. 

Young produziu diversos artigos publicados em jornais e revistas ao longo de sua trajetória, não havendo até hoje nenhuma tradução para a língua portuguesa de quaisquer de seus trabalhos, ainda que tenha sido traduzida para diversos outros idiomas. Todos os seus livros são compostos ou por artigos já publicados anteriormente em congressos e revistas ou ensaios incipientes, mas sempre reelaborados para formarem um todo coeso. Justice and the Politics of Difference [Justiça e as Políticas da Diferença] (1990) é sua obra mais conhecida e de maior prestígio; Throwing like a Girl and Other Essays in Feminist Philosophy and Social Theory [Jogando como uma Garota e Outros Ensaios em Filosofia Feminista e Teoria Social] (1990), foi republicado pela Oxford em 2005 sob o nome On Female Body Experience “Throwing like a Girl” and Other Essays [Sobre a Experiência do Corpo Feminino “Jogando como uma Garota” e Outros Ensaios] (2005), que incluiu um ensaio inédito; Intersecting Voices: Dilemmas of Gender, Political Philosophy, and Policy [Vozes que se cruzam: Dilemas de Gênero, Filosofia Política e Política] (1997); Inclusion and Democracy [Inclusão e Democracia] (2000). Global Challenges: War, Self-Determination and Responsibility for Justice [Desafios Globais: Guerra, Autodeterminação e Responsabilidade pela Justiça] (2007) e Responsibility for justice [Responsabilidade pela justiça] (2011) foram publicados após sua morte. Iris Young ainda participa como co-autora de outros livros. 

Como a autora afirma, seu interesse pessoal no político começa pelo feminismo. Ainda que nem todos seus escritos sejam explicitamente sobre tal tema, suas reflexões sobre teoria crítica, justiça, diferença, ética, democracia e políticas públicas passam por uma visão feminista. Apesar de seus ensaios serem mais difundidos e utilizados no campo da Ciência Política, Young possui grande conhecimento filosófico e estabelece debates com grandes nomes da filosofia como Habermas, Sartre, Merleau-Ponty, Heidegger, Derrida, Foucault, Lyotard, Marcuse, Adorno, Marx, Simone de Beauvoir, Judith Butler, Julia Kristeva, Susan Okin, Seyla Benhabib e Luce Irigaray, entre outros. Ainda que a lista de interlocutores seja extensa, Young é sempre muito didática e explícita quando apresenta seus argumentos, o que torna a leitura de sua obra fluída e compreensível. 

Após esse breve panorama, pretendo apresentar uma abordagem que considero pertinente para entender temas cruciais no pensamento dessa filósofa. 

 

Principais temas e conceitos

 

Uma das principais características do trabalho de Iris Young é sua preocupação em sempre delimitar o seu objeto de estudo. Outro ponto fundamental é a explicitação de sua própria situação: Young se reconhece como uma autora branca, heterossexual, de classe média, fisicamente apta, não velha, estadunidense e detentora de privilégios; o que não a afasta de tratar sobre temas importantes como racismo, pessoas incapacitadas, idosos, sexismo, usuários de drogas, imigrantes e outros grupos oprimidos. Young é meticulosa ao definir conceitos, demonstrar sua aplicabilidade, sem perder seu rigor teórico. A autora tem sempre em vista como os princípios, categorias e argumentos por ela utilizados são ferramentas teóricas que podem e devem alargar o pensamento como modo de propor ações concretas para promover mudanças na realidade social. Isso significa que a teoria de Young está sempre atrelada aos contextos e situações por ela descritos, podendo ser aplicada em outras circunstâncias, desde que ressituada. Young entende a teoria crítica como histórica e culturalmente posicionada, o que significa afirmar que a noção de situação é essencial para o pensamento da autora. Indivíduos interagem e lidam com estruturas sociais a todo instante, de modo que ao mesmo tempo em que Young não pretende universalizar qualquer experiência, reconhece que há imposições que incidem na vida desses mesmos indivíduos. Portanto, inicio com o que considero que perpassa, ainda que tacitamente, toda sua obra.  

 

Corpo vivido

 

Young adota a corrente fenomenológica explicitamente apenas em seu livro Sobre a Experiência do Corpo Feminino “Jogando como uma Garota” e Outros Ensaios (2005), no qual a autora descreve diversos aspectos e modalidades de estar no mundo a partir de um corpo feminino.  Segundo ela, apesar dos diversos ganhos dos movimentos feministas das últimas décadas, as mulheres ainda não deixaram de serem vistas como o Outro, como corpos vulneráveis através de estruturas sociais que assim as posicionam. É na retomada do conceito de corpo vivido para teorizar subjetividades que acredito que a filósofa tenha se destacado e fornecido para a teoria feminista uma grande ferramenta teórica. Young retoma este conceito a partir de Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir, segundo proposta de Toril Moi. 

Este conceito é peça-chave uma vez que desse modo a autora consegue abarcar uma multiplicidade e singularidade ao mesmo tempo, sem cair num reducionismo biológico ou essencialismo de gênero. Segundo ela, “o corpo vivido é uma ideia unificada de um corpo físico agindo e experienciando um contexto sociocultural específico; é um corpo-em-situação” (2005, p.16, tradução minha, sem menções adiante). Assim, a situação seria o cruzamento da facticidade e da liberdade. A facticidade consistiria em todas as relações materiais concretas da existência de uma pessoa em seu corpo com o ambiente físico e social que a rodeiam. Ou seja, cada ser enfrenta os fatos materiais de seu corpo e sua interação com determinado ambiente — o que significa dizer que posso nascer em determinado local, num certo tempo histórico, com órgãos específicos, sem que isso determine nada, sendo apenas um fato com o qual devo lidar. A pessoa, por outro lado, é um ator. Possui uma liberdade ontológica para se constituir em relação à facticidade. Cada ator possui  projetos específicos, coisas que deseja alcançar e maneiras que deseja se expressar, deixando sua marca no mundo, transformando o seu meio e relações. Assim, a situação seria o modo pelo qual os fatos relacionados ao corpo, ao meio físico, social e cultural aparecem à luz dos projetos de alguém. Como esta pessoa irá valorar tais fatos (positiva, negativa ou criticamente) e lidar com eles, depende de cada um e é aí que se encontra sua liberdade.

Propor a utilização do conceito de corpo vivido para a teorização da subjetividade seria sugerir que cada corpo próprio possui sua especificidade sem que seja constrangido por seu sexo biológico ou outras características físicas a agir e a se expressar de determinada maneira, pois cada corpo seria uma singularidade a partir do qual vive a facticidade e pode desenhar sua liberdade. Ainda, a categoria de corpo vivido não encerraria as diferenças por orientações ou desejos sexuais, não tendo que estabelecer uma correlação entre o corpo vivido e dimorfismo sexual ou normas heterossexuais. Segundo Young: “A ideia do corpo vivido, além disso, recusa a distinção entre natureza e cultura que fundamenta uma distinção entre sexo e gênero. O corpo, como corpo vivido, é sempre enculturado” (2005, p. 17). O corpo enculturado é aquele marcado pelas características de um determinado local e tempo, das interações com os outros corpos e o que se espera dele. A ideia de corpo vivido seria capaz de abarcar a pluralidade de comportamentos sem reduzi-los ao binarismo heterossexual de masculino e feminino. Pois, cada pessoa é um corpo vivido único, com capacidades e desejos singulares, que podem ser diferentes ou similares a outros corpos num determinado aspecto.

Portanto, a ideia de um corpo vivido reconheceria a subjetividade de cada pessoa — situada por fatores socioculturais, comportamentos e expectativas dadas de forma prévia, não necessariamente escolhidas —, mas a forma como irá lidar com cada situação e aspecto dependeria da liberdade própria de cada ser. Em resumo, Iris Young retoma o conceito de corpo próprio de Merleau-Ponty, já que, segundo ela, a conceitualização do filósofo daria mais espaço para a liberdade e diferença individual. Contudo, a autora o faz a partir de Simone de Beauvoir por alguns motivos: segundo ela, Beauvoir teria aprofundado a situação do corpo vivido ao tematizar a diferença sexual como grande definidora da situação da mulher. Além disso, o conceito de corpo vivido implica que cada corpo é único e perpassado por diversas estruturas, não só as de gênero. Isto porque a ideia de situação é indissociável ao corpo vivido. Assim, quando Young pensa as cinco  categorias que compõem a opressão, ou a realidade de grupos sociais, podemos lê-la com esse pano de fundo. 

 

Grupos Sociais

 

Se por um lado Young está às voltas com a possibilidade de teorizar a subjetividade sem que se operem exclusões ou normatizações, ela também está empenhada em entender como é possível que grupos sociais possam ser pensados. Young descreve o que entende por grupos sociais em seu livro Justiça e as Políticas da Diferença (1990) no ensaio As Cinco Faces da Opressão (1988), mas também aborda esse tema quando pensa o gênero como serialidade, que veremos em seguida. Segundo ela: “Um grupo social é um coletivo de pessoas diferenciado de, ao menos, um outro grupo por formas culturais, práticas e modo de vida. (…) Grupos são uma expressão de relações sociais; um grupo existe apenas em relação a pelo menos um outro grupo” (1990, p.43). Young ainda diferencia grupos de associações e agregações. Agregações podem ser formadas por pessoas que compartilhem algum atributo, ao passo que o grupo social se define por um senso de identidade. Young afirma: “Grupos são reais não enquanto substâncias, mas como formas de relações sociais” (1990, p.44), o que significa dizer que o pertencimento a um grupo conta para o sentido de identidade de uma pessoa. Young define a associação, por sua vez, como uma instituição formalmente organizada, como clubes, corporações, partidos políticos, igrejas, etc.

Young retoma a fenomenologia heideggeriana para pensar a característica de pertencimento a um grupo social como se encontrar (a partir do conceito de “thrownness”) membro de um grupo, numa experiência de como se sempre estivesse pertencido ali, porque, segundo ela, nossa identidade se define em como os outros também nos definem, e este processo se dá em termos de grupos que já estavam ali definidos anteriormente com determinados atributos, estereótipos e normas. Isso não significa uma pertença imutável mas, antes, nas mudanças identitárias que ocorrem ao longo da vida. Encontrar a identidade como dada a partir de um grupo e tomá-la para si de determinado modo, não funda em si um grupo, mas pode trazê-lo a uma nova existência. Ainda, o modo de ver grupos como ficções e, portanto, como relacionais e mais fluídos, é um dos modos de afirmar a diferenciação de grupos sem que haja opressões. O erro estaria em afirmar a caracterização de um grupo em termos de naturezas essenciais imutáveis, determinando o que lhes cabe e o que são capazes, negando o caráter de similaridades entre grupos e atributos que muitas vezes são sobrepostos. A ideia de que a eliminação de grupos eliminaria por conseguinte opressões, e que pessoas deveriam ser tratadas apenas como indivíduos, é um equívoco. Seria tolo negar a realidade de grupos sociais. Ainda, a diferenciação de grupos não é em si opressiva. Como veremos, a autora defende uma ideia de diferença. 

 

Coletividade em série

 

Young desloca o conceito de gênero para pensar as estruturas sociais e os processos que se dão em nível sistêmico. Logo, sendo o corpo vivido experienciado dentro deste contexto, a categoria de gênero (como outros marcadores sociais) se faz necessária a fim de avaliar as implicações de tais estruturas sociais que cercam estes corpos. É certo que um indivíduo ocupa múltiplas posições dentro das estruturas sociais, o que pode levar com que seja oprimido ou opressor, a depender do caso. Assim, tratando de encontrar desigualdades sociais, e não encontrar pessoas que individualmente perpetuem tais opressões ou injustiças, adotar a perspectiva das estruturas é mais proveitoso à teoria crítica social.

No capítulo um do livro Vozes que se cruzam: Dilemas de Gênero, Filosofia Política e Política (1997), Iris Young retoma, no ensaio Gênero como Serialidade: pensando sobre mulheres como um Coletivo Social (1994), a problemática que Butler e autoras negras denunciavam: após os primeiros movimentos feministas (até alguns atuais), em que a afirmação da categoria mulheres se fez necessária para saírem do lugar do outro e afirmarem-se como sujeitos, passou-se a questionar a própria categoria de mulheres. Segundo ela, as críticas que apontam para uma normalização e exclusão de determinadas pessoas, quando esse agrupamento se dá através da busca de características em comum entre elas, são válidas. Porém, Young insiste que há razões políticas pragmáticas para insistir na possibilidade de se pensar sobre mulheres enquanto algum tipo de grupo. Este impasse — pensar num coletivo social, como o de “mulheres”, específico à teoria feminista, sem que sejam identificadas por atributos em comum para fazer parte deste grupo — é resolvido pela autora a partir da reconceitualização de coletividade social ou de grupos sociais através da obra de Sartre, A Crítica da Razão Dialética (1960).

Ao longo de sua análise, passa pelos argumentos acerca do tema em Butler, Spelman, Ann Furgson, Nancie Caraway e Chandra Mohanty. Sua proposta é que entendamos gênero como referindo-se a uma série social, um tipo específico de coletividade social que Sartre distingue de grupos. Entender o gênero como serialidade possui algumas virtudes: fornece uma maneira de se pensar nas mulheres como um coletivo social sem exigir que todas as mulheres tenham atributos ou situação em comum; além disso, não se funda em identidade ou auto identidade para entender a produção social ou o sentido de fazer parte de um coletivo. Sartre distingue vários níveis de coletividades sociais a partir de sua ordem interna de complexidade e reflexividade. A distinção que nos importa é entre grupo e série. 

Grupo é um coletivo de pessoas que se reconhecem e reconhecem uns aos outros, como em uma relação unificada um com o outro, possuindo um projeto em comum. Os membros do grupo, portanto, são unidos pela ação que tomam conjuntamente. Cada indivíduo reconhece que o projeto comum também é um projeto de seu interesse. Entendo que aqui Young dá contornos mais elaborados ao que já havia realizado em relação aos grupos sociais. 

A série, por sua vez, advém de uma união passiva. Coletividade em série, segundo leitura de Young de Sartre, é justamente o oposto da típica identificação mútua de um grupo. Cada um faz parte da série com vistas a seu próprio objetivo, mas cada um também é ciente do contexto serializado daquela ação num coletivo social, cujas estruturas as constituem dentro de certos limites.

O propósito teórico de Sartre ao desenvolver o conceito de serialidade, para Young, era  descrever o sentido de classe social. Na maior parte do tempo o que significa ser membro da classe trabalhadora (ou capitalista) é viver em série com outras pessoas dessa classe, através de um conjunto complexo e interligado de objetos, estruturas e práticas em relação ao trabalho, à troca e ao consumo. Dizer que uma pessoa é de determinada classe social, significa dizer que isso é uma facticidade social sobre as condições materiais da vida dessa pessoa, o que não internaliza uma identidade para ela. Tal condição adota o sentido de identidade quando o indivíduo afirma: “sou um trabalhador”, momento este que passa a fazer parte de um grupo, juntamente com outros trabalhadores, com os quais estabeleceu laços de solidariedade autoconsciente.

De maneira análoga, Young sugere aplicar este conceito de serialidade à categoria de “mulheres”. Há portanto uma estrutura prévia que identifica e posiciona esses corpos, o que não significa que isso não pode ser subvertido, como no uso da linguagem neutra ou mesmo na subversão dos papeis de gênero. Essas estruturas de gênero, assim como aquelas de classe e raça são realidades com as quais cada ser deve lidar. Mas, a forma e o peso que cada sujeito atribuirá a tais eventos é particular, o que significa que tais estruturas não nomeiam atributos essenciais ou aspectos da identidade desses diferentes sujeitos. Segundo Young, “Uma das maiores vantagens de se pensar o gênero como serialidade é que isto desconecta gênero de identidade” (1997, p.33).

 

As cinco faces da opressão 

 

No ensaio As Cinco Faces da Opressão presente no livro Justiça e as Políticas da Diferença (1990), Young parte da premissa que a justiça não deveria limitar-se a questões relativas à distribuição de bens dentre aqueles que não constituem o hegemônico — homem, branco, heterossexual, em idade adulta, classe social alta e europeu. Segundo ela, é preciso que haja condições institucionais para o exercício e desenvolvimento da capacidade individual e coletiva, através de decisões, divisão do trabalho e cultura. 

Para Young, a opressão é uma condição de grupos, um conceito estrutural. Isso significa que o viés adotado não é o da opressão de um tirano, a conquista de um grupo sobre outro ou a dominação colonial. Young refere-se à opressão posta em pauta pelos movimentos sociais de esquerda dos anos 1960 e 1970, em que algumas pessoas são injustiçadas ou estão em desvantagem nas práticas cotidianas de uma sociedade liberal. Assim, suas causas estão arraigadas em hábitos, normas, símbolos, regras institucionais e no cumprimento de tais regras. Isso também significa que não há necessariamente um único agente que perpetua tal opressão — ainda que em relações pessoais esse possa ser o caso — mas que isso se dá de forma estruturada socialmente. De acordo com Young, isso nos leva ao reconhecimento de que os diferentes grupos incidem na vida individual de forma tão múltipla, que pode implicar privilégio e opressão para o mesmo sujeito a depender do caso.

O conceito de opressão é caro a Young uma vez que sua teoria da justiça é diretamente ligada a ele e ao conceito de dominação. Questionar as causas da injustiça significa necessariamente reconhecer a existência de grupos sociais e a opressão que alguns estão submetidos. Portanto, subjacente a qualquer análise crítica teórica que Iris Young faça, está a análise situada, histórica, cultural e socialmente, sobre opressão e dominação. Para tanto, Young nos oferece cinco categorias de análise para a opressão: exploração, marginalização, impotência, imperialismo cultural e violência. 

A categoria de exploração está diretamente ligada aos conceitos marxistas de luta de classes, lucro e mais-valia. Se todos são formalmente livres, como há dominação de classes? É através do conceito de mais-valia que Marx explica como o lucro se dá nas relações capitalistas. Young alarga o conceito, pois para ela não se trata apenas de uma questão econômica, mas também de transferência de poder entre grupo. O trabalhador perde não só os meios materiais de produção, mas o controle de qualquer tipo de poder e, em consequência, é privado de elementos de respeito numa razão muito maior do que aquilo que é de fato transferido. Ainda, o conceito marxista de exploração não leva em consideração a transferência de poderes (num sentido largo) de mulheres aos homens. “A liberdade, poder, status e auto-realização dos homens é possível precisamente porque mulheres trabalham para eles. Exploração de gênero possui dois aspectos, transferência dos frutos materiais do trabalho para os homens e transferência de energia sexual e vital para os homens” (1990, p.50). Outra forma de transferência de energia das mulheres para os homens seria o cuidado emocional destes e da prole. Assim, ao serem exploradas, as mulheres liberam os homens para trabalhos mais importantes e criativos socialmente, aumentando seu status na sociedade. 

Outro modo de exploração analisado por Young se dá na especificidade das relações raciais. Pois, onde há racismo, há a assunção de que os membros do grupo racial oprimido devem servir aos do grupo privilegiado. Na opressão racial, a marginalização — condição a que pessoas excluídas do sistema de trabalho são sujeitas — é a forma mais notável e, talvez, a mais perigosa de dominação, uma vez que toda uma categoria de pessoas é expulsa da participação da vida social e sujeita a privação material, o que pode levá-las ao extermínio. A distribuição de bens materiais por sociedades do bem-estar social, não soluciona os males causados por esse tipo de opressão.

Para Young, a dependência — não apenas do provimento de bem-estar social pelo Estado mas na relação entre cidadãos — em si não deveria ser um fator opressivo, já que todos em algum momento da vida serão dependentes de outros: crianças, doentes, mulheres recuperando-se do parto, idosos debilitados, etc. Para a autora, a vivência feminina demonstra como a dependência deve ser reconhecida como condição básica da experiência humana. 

A impotência tende a ser explicada negativamente: a falta de poder ou de autoridade, status e o senso próprio que profissionais costumam ter, é o que falta em trabalhos considerados não profissionais. A relação entre profissionais e não profissionais, numa divisão social do trabalho, tende a produzir impotência do segundo em relação ao seu próprio trabalho, já que não possui o poder de determiná-lo. São aqueles que o poder é exercido sobre, não aqueles que o detêm. Suas características são a falta de autonomia, falta de exercício criativo, falta de expertise técnica e autoridade. Comumente são aqueles designados como a classe trabalhadora. Assim, essa posição de trabalho é concomitante a uma posição social de não poder. Por fim, a divisão entre trabalhos “manuais” e “mentais” estendem para a vida os privilégios da classe de profissionais para além do local de trabalho, possuindo um senso de respeitabilidade na sociedade. Assim, homens e mulheres da classe trabalhadora, se vêem a todo momento tendo que se provar, de alguma forma, perante a sociedade. 

Exploração, marginalização e impotência referem-se a relações de poder e opressão que ocorrem em virtude da divisão do trabalho, de relações estruturais e institucionais que delimitam a vida de muitas pessoas materialmente, sendo uma questão concreta de poder de uns sobre outros.

O imperialismo cultural, por sua vez, é a experiência de como os símbolos dominantes de uma sociedade tornam a perspectiva particular de grupos oprimidos invisível, ao mesmo tempo que estereotipa e marca tais grupos como o Outro. O conceito de imperialismo cultural é uma forma de opressão que, segundo Young, advém de teorias feministas e do movimento por libertação negra, tomado de Lugones e Spelman. Nas palavras de Young: “Imperialismo cultural envolve a universalização da experiência e cultura de um grupo dominante e seu estabelecimento como a norma” (1990, p.59). Ao fazê-lo, o grupo dominante projeta sua própria experiência como representativa da humanidade, assim como os produtos culturais expressam a perspectiva de tal grupo. No encontro com outros grupos, o que ocorre é que estes se tornam inferiores e desviantes ou, ainda, como faltantes. Outro desdobramento é que aqueles que são culturalmente dominados sofrem uma opressão paradoxal: ao mesmo tempo em que são estereotipados, são invisibilizados. Young recorre a Du Bois para explicar o fenômeno da dupla consciência que emerge do processo de opressão: o sujeito deseja ser reconhecido como humano, mas recusa a coincidir com as visões estereotipadas, objetificadas e desvalorizadas de si. A injustiça do imperialismo cultural consiste no fato de que as experiências e interpretações da vida social dos grupos oprimidos encontram pouco eco na cultura dominante, enquanto essa mesma cultura lhes impõe experiências e interpretações consoante a norma. 

Por fim, há o aspecto da violência a que muitos grupos estão submetidos de forma sistemática como é o caso da violência contra corpos negros, femininos, gays, lésbicos, ou seja, todos aqueles que fogem da norma hegemônica. Nesta categoria estão inclusas formas menos severas de violência física, como o assédio, humilhação ou estigmatização de grupos. É seu caráter sistêmico, sua existência como prática social, que torna a violência um fenômeno de injustiça social. Sistemática porque ocorre com determinados grupos apenas por serem marcados como diferentes. “A opressão da violência consiste não apenas na direta vitimização, mas no conhecimento diário partilhado por todos os membros de grupos oprimidos que eles são sujeitos a violação, apenas pelo fato de sua identidade enquanto grupo” (1990, p.62). Para Young, é somente através das mudanças em imagens culturais, estereótipos e a consequente dissolução das relações de dominação que esse cenário de perpetração de violências contra determinados grupos, que são tolerados e até mesmo encorajados por práticas sociais e instituições, poderá mudar.

Enfim, Young entende que a pluralização da categoria de opressão nas formas em que apresentou pode ajudar a teoria social a evitar a exclusão ou simplificação que marcadores como racismo, sexismo, classismo, heterosexismo podem trazer. Isto porque, opressões se interrelacionam e podem apresentar similaridades entre grupos diversos. Além disso, o posicionamento de cada indivíduo dentro de um grupo é único e, geralmente, marcadores sociais tendem a representar a situação de membros diferentes de um grupo como única.

 

Justiça e Diferença

 

É no seu livro Justiça e as Políticas da Diferença (1990) que Young aborda diretamente os temas da justiça e da diferença, o que não significa que não estejam presentes nas outras obras aqui já mencionadas. Inclusão e Democracia (2000) trata de questões próximas a essas. 

Young aborda o tema da justiça por entender que esta é a questão central da filosofia política. Em sua crítica ao positivismo da teoria política, afirma que muitas vezes as estruturas institucionais são assumidas como dados, ao invés de serem questionadas. Esse reducionismo, por sua vez, conduz os sujeitos à uma unidade e à valorização do comum, ao invés da especificidade e diferença. Ainda que trate sobre justiça, Young defende que não pretende construir uma teoria da justiça, porque há de se considerar a temporalidade e espacialidade das relações sociais, que são sempre complexas, ao passo que uma teoria nesse sentido se pretende atemporal e universal. 

Segundo a filósofa, as teorias contemporâneas de justiça tendem a focar no paradigma da redistribuição, que é de fato necessário, mas que obscurece as questões de opressão e dominação. Estes sim deveriam ser os termos primários para uma conceitualização da injustiça social. Seu ponto é que o paradigma da redistribuição deveria se ater à distribuição de bens materiais, pois alargar este conceito para a distribuição de poder e oportunidade não daria conta de abarcar as múltiplas perspectivas, interesses e opiniões nas sociedades contemporâneas complexas. Ainda, poder e oportunidade se dão em termos de opressão e dominação, como examinamos acima. 

Em sua análise da justiça, Young afirma a existência de grupos sociais, como vimos, além da defesa de que a diferença em si mesma não só não deveria ensejar opressão, mas deveria ser afirmada enquanto um valor social democrático. As diferentes perspectivas enriquecem o debate público e político, e esta positivação da diferença deveria ser buscada, ao invés de uma unidade utópica. Processos democráticos de tomada de decisão são outro elemento importante e condição para justiça social. Outro paradigma desmontado por Young é o da imparcialidade, que pressupõe a separação teórica entre corpo e razão. Se, como propomos, Young entende as subjetividades a partir do conceito de corpo vivido e, se sua teoria é coerente, tal divisão não cabe dentro de uma perspectiva justa de sociedade. 

Na busca por uma sociedade justa em que as diferenças de raça, sexo, religião, etnia não sejam a causa de diferentes oportunidades e direitos, Young questiona o ideal de justiça que busca a liberação como a transcendência da diferença de grupos, numa ideia de assimilação. Além disso, afirma que a política tradicional que exclui ou desvaloriza determinadas pessoas, assume os atributos de um grupo como uma diferença essencialista, como se tais grupos tivessem diferentes naturezas. O que a autora busca é a afirmação da diferença enquanto um processo fluído e relacional, como produto de processos sociais. Segundo ela, uma sociedade sem diferenças de grupos não é possível ou desejável. Logo, há de se reconhecer que grupos existem e que alguns ocupam uma posição de privilégio enquanto outros são oprimidos. A diferença enquanto afirmação desloca o hegemônico como norma, que torna a diferença em exclusão. Assim, enquanto grupos privilegiados são neutros e exibem uma subjetividade maleável e livre, os grupos excluídos são marcados por uma suposta essência, aprisionados sob determinadas possibilidades. Nas palavras de Young: “Diferença passa a significar não outridade, oposição exclusiva, mas especificidade, variação, heterogeneidade. Diferença nomeia relações de similaridade e dissimilaridade que não podem ser nem reduzidas a identidades coextensivas nem a alteridades não sobrepostas” (1900, p.171). Assim, um sentido positivo de diferença de grupos é emancipatório porque reclama a definição do grupo pelo próprio grupo, como uma criação e construção, ao invés de uma essência dada ou prévia. 

A diferença também é sustentada por Young na sua defesa de uma vida justa na cidade. Segundo ela, a maioria dos teóricos encontram como saída para as sociedades capitalistas contemporâneas a defesa da comunidade. Para ela, o ideal da comunidade falha em oferecer alternativas para uma política democrática. Resumidamente, porque o ideal comunitário expressa um desejo por uma fusão dos sujeitos em práticas que operam por excluir aqueles que não se identificam com eles. Além disso, nega e reprime diferenças sociais. Sua proposta é, portanto, um ideal de vida que afirme diferenças entre grupos, para que todos possam ter voz sem que isso forme uma comunidade coesa.

 

Referências Bibliográficas

 

Obras da autora

 

YOUNG, I M. (1990). Justice and the Politics of Difference. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.

_______. (1997). Intersecting Voices: Dilemmas of Gender, Political Philosophy, and Policy. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.

_______. (2000). Inclusion and Democracy. New York: Oxford University Press.

_______.(2005). On female body experience: “Throwing like a girl” and other essays. New York: Oxford University Press.

_______. (2007). Global Challenges. War, Self-Determination and Responsibility for Justice. Cambridge: Polity Press, 2007.

_______. (2011). Responsibility for justice. New York: Oxford University Press.

 

Literatura secundária

 

ANTONIAZZI, C.B. (2022). Subjetividade e opressão a partir do corpo gestante. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo. São Paulo. 

BEAUVOIR, S. de. ([1949] 2016). O segundo sexo. 3ªed. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BENHABIB, S.; DEAN, J. (2006). In Memoriam: Iris Young, 1949-2006. In: Constellations Volume 13, No 4., Reino Unido.

ELIAS, R. do V. (2018). Justiça, grupos sociais e responsabilidade: estrutura e agência em Iris Young. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo.

MERLEAU-PONTY, M. ([1945] 1999). Fenomenololgia da percepção. 2ª ed. trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes.

MOI, Toril. (1999). What Is a Woman? And Other Essays. New York: Oxford University Press.

NEVES, Raphael Cezar da Silva. (2005). Reconhecimento, multiculturalismo e direitos. Contribuições do debate feminista a uma teoria crítica da sociedade. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo. São Paulo. 

UHDE, Zuzana. (2010). On Sources of Structural Injustice: A Feminist Reading of the Theory of Iris M. Young. In: Human Affairs 20, pp.151-166. Institute of Sociology, Academy of Sciences of the Czech Republic. Czech Republic.

 

Outras fontes

 

Oxford Learning Link: https://learninglink.oup.com/access/content/garner-2ce-student-resources/key-thinkers-iris-marion-young (último acesso em 29/08/2023)

 

Constellations Journal: https://onlinelibrary.wiley.com/journal/14678675 (último acesso em 29/08/2023)