Rosa Luxemburgo

(1871-1919)

Por Isabel Loureiro

Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) – Lattes

PDF – Rosa Luxemburgo

Vida

Rosa (Rosalie, Rosalia, Róża) Luxemburgo (Luksenburg, Luxemburg) nasceu em 5 de março de 1871, em Zamość, pequena cidade na parte sudoeste da Polônia anexada pelo império russo. O pai, Eliasch Luksenburg, comerciante, e a mãe, Lina (de solteira Löwenstein), ligados ao iluminismo judaico, prezavam acima de tudo a educação dos filhos e a alta cultura. Rosa Luxemburgo era a última de três irmãos e uma irmã. 

Em 1873, a família mudou-se para Varsóvia.  Aos cinco anos, para tratar de uma doença do quadril, Rosa passou um ano na cama com a perna engessada. Foi quando aprendeu a ler e escrever. Como resultado do tratamento, a perna esquerda ficou mais curta, levando-a a coxear por toda a vida. Educada em casa até os nove anos, entrou pelo sistema de quotas para meninas judias no II Ginásio Feminino de Varsóvia, colégio russo onde era proibido falar polonês.  

Em fevereiro de 1889, foi para a Universidade de Zurique onde se matriculou em ciências naturais. Pouco depois, abandonou essa carreira ao conhecer Leo Jogiches, de Vilna (Lituânia), seu companheiro por 15 anos, que a convenceu a estudar economia, filosofia e direito. Na universidade, Rosa Luxemburgo se torna exímia conhecedora da obra de Marx, com quem estabeleceu um diálogo frutífero avesso a qualquer forma de dogmatismo. 

Em 1893, com Leo Jogiches e outros revolucionários poloneses, fundou a Social-Democracia do Reino da Polônia, partido de base marxista, fortemente inspirado na social-democracia alemã, que em 1899, com a adesão dos socialistas da Lituânia, foi rebatizada de Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL), nome com que passou à história. 

Em 1897, defendeu a tese de doutorado em economia política, O desenvolvimento industrial da Polônia, publicada logo em seguida por uma grande editora de Leipzig. Em 1898, mudou-se para Berlim, onde fez carreira no Partido Social-Democrata Alemão (SPD) como jornalista, oradora e professora da escola de quadros do partido. De 1904 a 1914, representou a SDKPiL no Bureau da Internacional Socialista em Bruxelas. Ela teve sempre uma dupla militância, no movimento socialista alemão e no polonês. 

Em março de 1906 foi detida junto com Leo Jogiches em Varsóvia, onde ambos se encontravam por conta da Revolução Russa que havia começado um ano antes. Suas reflexões sobre esse período resultaram num de seus escritos mais famosos, Greve de massas, partido e sindicatos (1906). 

De 1907 a 1914, lecionou na escola do SPD, única professora mulher. Desse trabalho pedagógico saíram suas obras de economia política, A acumulação do capital (1913) e a Introdução à economia política (1925). Em 1907, rompeu com Leo Jogiches, mas o vínculo político manteve-se até o fim da vida. Nessa época, começou um relacionamento com Constantin Zetkin, filho mais novo de sua amiga Clara Zetkin, que durou até 1912. 

Em 1914, com a adesão do SPD à mobilização do governo imperial em prol da guerra, Rosa e seus companheiros da ala esquerda do partido fundaram o Grupo Internacional que, posteriormente, adotaria o nome de Liga Spartakus. Presa durante um ano (fevereiro de 1915 a fevereiro de 1916), acusada de agitação antimilitarista, ela redigiu A crise da social-democracia, publicada em abril de 1916, com o pseudônimo Junius. Por causa da atividade contra a guerra foi novamente encarcerada em julho de 1916. Na prisão, entre muitos outros artigos, escreveu as notas críticas aos bolcheviques que ficaram conhecidas como A revolução russa, além de cartas aos amigos e amigas, publicadas postumamente. 

Com a derrota da Alemanha na guerra, a República foi proclamada. Posta em liberdade (8/11/1918), Rosa voltou a Berlim, onde passou a dirigir o jornal spartakista Die Rote Fahne [A Bandeira Vermelha] em que publicava artigos corrosivos contra o governo de seus antigos companheiros social-democratas, acusando-o de sufocar a revolução iniciada com o fim da monarquia (Luxemburgo, 2017b). No final de dezembro de 1918 participou da fundação do Partido Comunista Alemão (KPD). Foi presa, junto com Karl Liebknecht, durante a “insurreição de janeiro” em Berlim. Ambos foram brutalmente assassinados em 15 de janeiro de 1919, por soldados de uma milícia protofascista criada para reprimir os revolucionários. Rosa tinha 47 anos. Seu corpo, lançado ao canal Landwehr, que atravessa o Tiergarten (parque central de Berlim), só foi encontrado em 31 de maio e sepultado em 13 de junho daquele ano. 

Obra: temas e conceitos

A obra de Rosa Luxemburgo se dedica a dois grandes temas, que se iluminam reciprocamente: economia e política. Ao não separar uma da outra em polos estanques, o empreendimento intelectual de Rosa, inseparável de sua militância socialista, se estrutura em torno do conceito de totalidade (Lukács, 1970, p.94). 

Por um lado, Luxemburgo faz análise do modo de produção capitalista com suas contradições: trata-se de um modo de produção que cria necessariamente a desigualdade entre os seres humanos, as classes e os países; que para se reproduzir precisa acumular indefinidamente, destruindo antigos modos de vida, a natureza, os vínculos sociais; é racista e sexista. Desta análise decorre logicamente a necessidade da transformação radical desse modo de produção disfuncional. Ou, nos termos de Rosa Luxemburgo, a necessidade da revolução socialista. Aqui nos deparamos com sua obra de economia política, A acumulação do capital (1913) e Introdução à economia política (1925), para citar apenas os textos mais importantes. 

Por outro lado, ela estuda a história das lutas de classes, das revoluções, do protagonismo da classe trabalhadora, de suas vitórias e derrotas, para aprender tanto com as vitórias quanto com as derrotas. Aqui Luxemburgo enfatiza o papel da experiência como a grande mestra dos oprimidos. Neste terreno encontramos, entre outros, escritos políticos como Questões de organização da social-democracia russa (1904), Greve de massas, partido e sindicatos (1906), A crise da social-democracia (1916), A revolução russa (1918). Deste conjunto de textos podemos extrair sua filosofia política. 

Ademais, Luxemburgo é autora de vasta correspondência com interlocutores do campo socialista europeu, de cartas de cunho estritamente pessoal com amores, amigos e amigas, além de pequenos ensaios sobre a literatura russa, Tolstói e Korolenko em particular. Nestes textos é perceptível uma espécie de filosofia de vida, que mais do que fruto de reflexão elaborada e sistemática, é antes produto espontâneo do seu modo de ser.  

Imperialismo e crítica do progresso

Reconhecida como a grande herdeira de Marx da primeira geração que se seguiu à morte dele, Luxemburgo foi a primeira teórica marxista a analisar o capitalismo como sistema global em sua obra magna de economia política, A acumulação do capital (1913). Por natureza antidogmática e profundamente independente, Rosa não temia apontar insuficiências na teoria de Marx, que considerava inacabada. No seu entender, ele não expunha de maneira adequada o desenvolvimento do capitalismo e Rosa pensava continuar a obra do mestre nesse sentido. Ela foi muito criticada pelos especialistas em economia política, segundo os quais a revolucionária polonesa não havia entendido Marx, e suas críticas eram erradas. Seu livro recebeu críticas de todos os tipos: de ordem técnica, que apontavam contradições e lacunas na argumentação; de ordem teórica, que rejeitavam a ideia da impossibilidade da acumulação numa economia capitalista fechada; de ordem pessoal, que consideravam inaceitável que uma mulher inteligente se pusesse a corrigir Marx. 

Muito tempo se passou até que seu empreendimento teórico original fosse avaliado de maneira justa. Independentemente dos erros, reconhecidos mesmo por seus simpatizantes, hoje é evidente a enorme atualidade da parte histórica de A acumulação do capital. Aí Rosa Luxemburgo mostra que o capitalismo na metrópole só pôde se desenvolver às custas da espoliação da periferia, num processo que começou há séculos e continua até o presente. Ela enfatiza o reverso sangrento da modernização capitalista com seu conhecido séquito de horrores: genocídio dos povos primitivos e seus modos de vida comunitários pelo capitalismo europeu, a fim de submetê-los aos mecanismos de mercado; guerra do ópio na China com o mesmo objetivo; comércio de escravos; enriquecimento da metrópole às custas do endividamento da periferia; acumulação de capital mediante compras de armas pelo Estado, o que favorece o militarismo e as guerras. 

Numa postura distante do eurocentrismo da social-democracia alemã e da II Internacional, Rosa demonstra grande simpatia pelas culturas “tradicionais”, que foram aniquiladas pelo rolo compressor do capital. A modernização capitalista não significa progresso em relação ao período anterior, mas apenas a ruína econômica e cultural dos povos originários. Diferentemente de uma concepção iluminista do progresso, segundo a qual a violência capitalista é vista como mal “necessário” no caminho que leva ao socialismo, Rosa acredita que os povos originários podem ensinar aos “civilizados” formas de sociabilidade mais igualitárias e não predadoras, determinadas pelos interesses da coletividade. Rosa Luxemburgo, originária da Polônia periférica na Europa do começo do século XX, tem insights que apontam para uma concepção de história distinta da do marxismo ortodoxo de seu tempo, caracterizado por uma fé ingênua no desenvolvimento das forças produtivas. 

No começo da Primeira Guerra Mundial, ao pôr na ordem do dia a consigna socialismo ou barbárie, Rosa Luxemburgo se afasta do progressismo típico da II Internacional, segundo o qual o socialismo resultaria, mais cedo ou mais tarde, das contradições imanentes ao modo de produção capitalista. Assim procedendo ela reforça a perspectiva de uma história indeterminada, aberta à experiência, dando assim a entender que o socialismo deixou de ser uma garantia e passou a ser uma aposta, que só pode ser vencida se houver o engajamento das classes populares, aqui e agora, contra a barbárie. Essa perspectiva de uma história aberta adquire cada vez mais atualidade numa época de crise civilizatória como a que estamos atravessando, no âmago da qual ecoa a pergunta já formulada por Rosa, que continua não querendo calar: a barbárie capitalista é mesmo o horizonte inelutável da humanidade? 

Socialismo democrático 

A concepção de socialismo de Rosa Luxemburgo, que ela identificava com uma sociedade igualitária de seres humanos livres, rompe duplamente com a visão autoritária da corrente hegemônica da esquerda no século XX, o marxismo-leninismo. Para Rosa, não se trata primeiro de tomar o poder e só depois mudar o mundo: “A democracia socialista não começa somente na Terra prometida, quando tiver sido criada a infraestrutura da economia socialista, como um presente de Natal, já pronto, para o bom povo que, entretanto, apoiou fielmente o punhado de ditadores socialistas. A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. Ela começa no momento da conquista do poder pelo partido socialista.” (Luxemburgo, 2017b, p.210). 

 Socialismo e democracia são inseparáveis, assim como liberdade e igualdade. O socialismo só pode resultar da ação livre das massas populares e o caminho para lá chegar precisa necessariamente ser democrático. Meios e fins se condicionam reciprocamente. Justamente porque uma sociedade socialista só pode ser instituída a partir da experiência vivida de todos os atingidos pela ordem reinante é que ela defende incisivamente a manutenção das liberdades democráticas na transição ao socialismo. Rosa sempre argumentou com ardor em prol das liberdades democráticas, fruto das revoluções burguesas no ocidente. Tendo vivido a infância e a adolescência na Polônia dominada pela autocracia tzarista, conhecia bem a vida sem liberdade de imprensa, associação, reunião; sem liberdade religiosa; sem direitos de nenhuma espécie para trabalhadores, mulheres, crianças proletárias etc. (Luxemburgo, 2017 a, p.218-262). Daí a crítica à dissolução da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques: 

“Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem livre debate de opiniões, a vida se estiola em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente em que só a burocracia subsiste como o único elemento ativo. A vida pública adormece progressivamente, algumas dúzias de chefes partidários, de uma energia inesgotável e de um idealismo sem limites, dirigem e governam; entre eles, na realidade, uma dúzia de cabeças eminentes dirige, e a elite do operariado é convocada de tempos em tempos para reuniões, para aplaudir os discursos dos chefes e votar unanimemente as resoluções propostas; portanto, no fundo, é um grupinho que governa (…)” (Luxemburgo, 2017 b, p.208-209). 

É por acreditar na criatividade das massas que Rosa apoia com energia os conselhos de trabalhadores e soldados surgidos espontaneamente no começo da Revolução Alemã de 1918, vendo neles uma nova forma de soberania popular no plano político, econômico e cultural (Luxemburgo, 2017 b, p.289, 294-96). Esses organismos democráticos e suprapartidários, expressão da auto-organização das massas, seriam a base de uma democracia popular ativa. Além disso, tinham papel pedagógico fundamental na formação política dos trabalhadores: “Exercendo o poder [nos conselhos], a massa deve aprender a exercer o poder. Não há nenhum outro meio de lhe ensinar isso.” (Luxemburgo, 2017 b, p.369). 

Em suma, para Rosa Luxemburgo, contemporânea dos conselhos, a democracia socialista se funda na multiplicação dos espaços de democracia direta e de autogoverno e, nesse sentido, engloba e supera a democracia representativa burguesa e o Estado de direito burguês. 

Revolução e autonomia das massas populares 

A revolução imaginada por Luxemburgo não consistia na troca de grupos no poder, e sim na mudança estrutural da sociedade em termos econômicos, políticos, sociais e culturais. Isso implicava mudança de valores dos indivíduos e das coletividades, ou seja, uma revolução como processo, e, portanto, lenta (Luxemburgo, 2017 b, p.343-370). Ao mesmo tempo, ela não rejeitava a conquista do poder político pelos trabalhadores – revolução como ruptura rápida das relações de poder existentes, que permitiria acelerar o processo de mudança estrutural (Luxemburgo, 2017 a, p.67-77). Embora não diga com clareza como isso se realizaria na prática, ela sempre afirma de maneira contundente que não seria por meio do golpe de uma minoria convertida em substituta das massas (Luxemburgo, 2017 b, p.291).   

Em suma, o que subjaz à noção de revolução democrática de Luxemburgo é a ideia de que a transformação da sociedade capitalista em direção ao socialismo só pode resultar da atividade autônoma das massas populares. Essa é sua contribuição original à teoria política. A consciência política não é introduzida de fora por uma vanguarda esclarecida de intelectuais que supostamente sabem melhor o que os de baixo devem pensar, sentir e fazer, mas resulta da participação autônoma dos próprios concernidos, tanto na luta quotidiana pela ampliação de direitos, quanto para transformar de maneira radical o estado de coisas vigente. Rosa Luxemburgo sempre foi decididamente contra a ideia de vanguarda substituta das massas (Luxemburgo, 2017 a, p.151-175). Para ela, o verdadeiro líder político socialista é aquele que esclarece, destrói as ilusões dos trabalhadores, transforma a massa em liderança de si mesma, acaba com a separação entre dirigentes e dirigidos e, assim, contribui para formar o que ela considera o pré-requisito fundamental de uma humanidade emancipada: a “autonomia intelectual”, “autodeterminação e iniciativa”, “pensamento crítico” (Luxemburgo, 2017 a, p.419, 421-2), o único antídoto contra a burocratização das organizações de esquerda (Luxemburgo, 2017 b, p. 205-210).

A revolução socialista é obra da ação livre, espontânea, dos trabalhadores, ou não é revolução. Rosa Luxemburgo chega a essa ideia analisando as lutas de classes de sua época, sobretudo na Rússia de 1905-1907, durante a primeira Revolução Russa (Luxemburgo, 2017 a, p.263-349). Mas, ao mesmo tempo, só espontaneidade não basta: o trabalho organizativo é fundamental para estruturar e dar continuidade às explosões contra-hegemônicas dos de baixo, que irrompem de tempos em tempos na rotina da vida quotidiana. Na obra de Luxemburgo há sempre essa relação dialética entre espontaneidade e organização, de tal maneira que a acusação de espontaneísmo – como se ela negasse a necessidade da organização política dos trabalhadores – que lhe foi endereçada pelo stalinismo não faz o menor sentido.

A arte da vida

Nos últimos anos renovou-se a tendência a valorizar a correspondência privada de Rosa Luxemburgo como fonte indispensável para a compreensão do conjunto de sua obra (Caysa, 2017, Brie, 2019). Vida política e vida pessoal são inseparáveis nessa personagem que, mais do que qualquer outra, uniu teoria e prática. Lukács, em uma das obras filosóficas fundamentais do século XX, História e consciência de classe, já o havia constatado: “É sinal da unidade de teoria e prática na obra da vida de Rosa Luxemburgo que essa unidade de vitória e derrota, destino individual e processo total tenha formado o fio condutor de sua teoria e modo de vida.” (Lukács, 1970, p.117). 


Rosa Luxemburgo foi interpretada como aquela que exerce “a arte da vida” (Kautsky, s/d, p.41; Caysa, 2017, p.36-41), compreendida como “uma forma de vida filosófica caracterizada pela identidade concreta entre vida e pensamento e na qual se trata de configurar e dirigir a vida de modo autoconsciente de acordo com uma ideia.” (Caysa, 2017, p.37). Assim, aplica-se a ela a sugestão de Antonio Candido a respeito de Florestan Fernandes. Para além da obra de sociólogo e de sua atuação como intelectual, professor e pesquisador, “ele realizou outra obra não menos admirável: a construção de si mesmo.” (Candido, 2001, p.65).  

Do mesmo modo, Rosa Luxemburgo, para além do jornalismo, da docência, da militância revolucionária, dedicou-se à construção de si mesma. Qual seria então a ideia fundamental que a orientava como máxima de vida e que aparece nas cartas da prisão escritas durante a guerra? Antes de mais nada, tinha em alta conta uma concepção de vida interior centrada em valores como harmonia, equilíbrio, estoicismo, recusa a lamentações diante das adversidades: “‘assim’ é a vida desde sempre, tudo faz parte dela: sofrimento e separação e saudade. Temos de aceitá-la com tudo isso e achar tudo belo e bom. Eu pelo menos faço assim. Não por meio de uma sabedoria artificial, mas simplesmente por minha natureza.” (Luxemburgo, 2017 c, p.267)

 A carta à amiga Luise Kautsky, de 26 de janeiro de 1917, é esclarecedora: 

“Essa entrega total à miséria de nossos dias é absolutamente incompreensível e insuportável para mim. Veja como um Goethe, por exemplo, mantinha uma fria serenidade diante das coisas. Mas pense em tudo o que ele teve de passar: a grande Revolução Francesa, que, vista de perto, certamente parecia uma farsa sangrenta e completamente sem sentido, depois, de 1793 a 1815 uma série ininterrupta de guerras em que o mundo novamente parecia um hospício desembestado. E com que tranquilidade, com que equilíbrio espiritual ele realizou simultaneamente a tudo isso os seus estudos sobre a metamorfose das plantas, sobre a teoria das cores e mil outras coisas. Eu não exijo de você que escreva poemas como Goethe, mas a concepção de vida dele – o universalismo dos interesses, a harmonia interior – podem todos adquirir ou ao menos almejar.” (Luxemburgo, 2017 c, p.223)

No entanto – e essa é uma das facetas que fazem a riqueza da nossa personagem –, ao mesmo tempo, ela nunca quis renunciar aos prazeres da vida. Fazia sua a máxima do escritor russo Vladimir Korolenko, que traduziu na prisão: “o homem é criado para ser feliz como o pássaro para voar.” (Kautsky, 1973, p.61).  Por isso mesmo, nunca se contentou com uma vida consagrada unicamente à militância política: se dirigia às massas como jornalista e oradora, e voltava inteira para si mesma, para a solidão criativa, dedicando-se à pintura, ao desenho, à música, à botânica, à geologia. No isolamento da cela relembrava momentos de alegria com os amigos, quando bebiam champanhe e “a vida nos formiga na ponta dos dedos e estamos sempre prontas para qualquer loucura” (Luxemburgo, 2017 c, p.221). Mesmo aprisionada, não desistia de ser feliz e mantinha um amor platônico com seu amigo Hans Diefenbach; se apegava aos sinais da natureza que chegavam esparsos à prisão: cultivava um pequeno jardim, herborizava, observava as nuvens, as plantas, os animais; alegrava-se com o canto dos pássaros. 

Essa maneira de ser se alicerçava numa concepção orgânica do mundo, fortemente inspirada no amor à natureza: “Em mim, a fusão íntima com a natureza orgânica (…) toma formas quase doentias” (Luxemburgo, 2017 c, p.340). Ela procurou ajustar “o sentimento espontâneo da vida, que nunca reprimiu” (Roland Holst, 1937, p.24) à teoria de Marx, interpretada de maneira não dogmática:

“O próprio marxismo é, por essência, o pensamento mais universal, mais fecundo que dota o espírito de uma teoria vasta como o mundo, flexível, rica de cores e de nuances como a natureza, incitando à ação, transbordante de vida como a própria juventude.” (Luxemburgo, apud Laschitza,1986, p.129).

Em muitas passagens encontramos referência à vida, ao orgânico, não burocrático: 

“Não é a letra do estatuto, mas o sentido e o espírito nela introduzidos pelos militantes ativos que determinam o valor de uma forma de organização.” (Luxemburgo, 2017 a, p.164).

 “Seria um engano desastroso imaginar que, desde então [desde a fundação da social-democracia], também toda a capacidade histórica de ação do povo tivesse se transferido unicamente para a organização social-democrata, que a massa desorganizada do proletariado teria se tornado um mingau disforme, um peso morto da história. Pelo contrário. Apesar da social-democracia, a matéria viva da história mundial permanece sendo a massa popular, e apenas se existir uma circulação sanguínea viva entre o núcleo organizado e a massa popular, quando a mesma pulsação der vida a ambos, poderá a social-democracia mostrar-se qualificada para realizar grandes ações históricas.” (Idem, p.465).

“Só uma vida fervilhante e sem entraves chega a mil formas novas, improvisações, mantém a força criadora, corrige ela mesma todos os seus erros.” (Luxemburgo, 2017 b, p.207).

 E quando se refere à greve de massas, que não pode ser executada por um decreto do partido, com hora marcada, vemos a mesma ênfase na vida:

“O absolutismo na Rússia precisa ser derrubado pelo proletariado. Mas, para isso, o proletariado precisa de um alto grau de educação política, de consciência de classe e de organização. Todas essas condições não podem ser adquiridas em brochuras e panfletos, mas apenas na escola política viva, na luta e pela luta, no andamento progressivo da revolução.” (Luxemburgo, 2017 a, p.285-286).

Também o socialismo não pode ser introduzido por decreto, a partir de uma receita já pronta, mas é criação livre das massas que, levando em conta suas experiências, exercem quotidianamente a criatividade para resolver os milhares de problemas que se colocam diante delas. Rosa se recusa a pensar a política nos termos da política burguesa, em que existe um plano traçado de antemão para que a máquina funcione racionalmente e o mais eficazmente possível e com consequências calculáveis, tudo isso sem a incômoda participação das classes populares que, com suas reivindicações “extemporâneas”, bagunçam o que foi planejado pelos dirigentes. 

Ao se contrapor à concepção leninista de partido como vanguarda de revolucionários profissionais, ela acusa Lenin de ter uma visão mecanicista do partido e da revolução. É justamente essa recusa do mecânico, sem vida, burocrático que aparece também na correspondência da jovem Rosa com seu amado Leo Jogiches. Enquanto ela fala de sua vida, de seus sentimentos, ele só tem olhos para a política e a causa revolucionária (Luxemburgo, 2017 c, p.6, 30-31, 110-11). Ela, em contrapartida, quer conciliar a política com a felicidade pessoal, a luta coletiva por uma sociedade justa e igualitária com a alegria das pequenas coisas quotidianas. Ela luta por uma vida plena, não compartimentada, multifacetada. 

Seu ideal é resumido de maneira límpida numa carta à amiga Mathilde Wurm, de 28 de dezembro de 1916, em plena guerra: 

“Então cuide de permanecer sendo um ser humano. Ser humano é o mais importante de tudo. E isso significa: ser firme, claro e alegre, sim, alegre apesar de tudo e de todos, pois choramingar é ocupação para os fracos. Ser humano significa atirar com alegria sua vida inteira ‘na grande balança do destino’ se for preciso, mas ao mesmo tempo se alegrar a cada dia claro, a cada bela nuvem, ah, eu não sei dar uma receita de como ser humano, eu só sei como se pode sê-lo, e você também sempre soube quando passeávamos por algumas horas juntas no campo em Südende e a luz rosada da tarde caía sobre as searas. O mundo é tão belo, com todo o seu horror, e seria ainda mais belo se não houvesse nele os fracos e covardes.” (idem, p.214).  

Desse ideal de ser humano completo também fazia parte a generosidade com os “humilhados e ofendidos”: presos comuns, prostitutas, sem-teto, crianças maltratadas, temas de alguns de seus artigos. No começo da Revolução Alemã, uma semana depois de sair da prisão, Rosa escreve no jornal spartakista Die Rote Fahne

“A mais violenta atividade revolucionária e a mais generosa humanidade – eis o único e verdadeiro alento do socialismo. Um mundo precisa ser revirado, mas cada lágrima que cai, embora possa ser enxugada, é uma acusação; e aquele que, para realizar algo importante, de maneira apressada e com brutal descuido esmaga um pobre verme, comete um crime.” (Luxemburgo, 2017 b, p.242). 

Embora herdeira do Iluminismo, marxista que era, Rosa desejava um mundo em que coubessem vários mundos. Sua crítica do capitalismo levava, com uma lógica implacável, à rejeição do colonialismo, do imperialismo, militarismo, nacionalismo, racismo, assim como à recusa da desvalorização das mulheres, das crianças e da natureza. Socialismo democrático, humanista e internacionalista, sem dúvida. Mas mais que isso. Sua ligação com a natureza, testemunhada pelas cartas da prisão, mais do que anedótica, dá elementos que permitem ver em Rosa Luxemburgo uma precursora da militância socioambiental. Por tudo isso, suas ideias continuam a frutificar, sobretudo na América Latina, mais uma vez condenada ao eterno retorno do mesmo (Ouviña, 2019). 

Referências bibliográficas 

Obras de Rosa Luxemburgo

Luxemburgo, R. (2017a). Textos escolhidos, vol. I (1899-1914). Organização de Isabel Loureiro. Tradução de Stefan Fornos Klein, Bogna T. Pierzynski, Grazyna Maria A. da Costa, Pedro Leão da Costa Neto. 2a edição, São Paulo: Editora UNESP.

––––– (2017b). Textos escolhidos, vol. II (1914-1919). Organização e tradução de Isabel Loureiro. 2a edição, São Paulo: Editora UNESP.

––––– (2017c). Cartas, vol. III. Organização de Isabel Loureiro. Tradução de Mário Luiz Frungillo. 2a edição, São Paulo: Editora UNESP. 

Luxemburg, R. (1979-2017). Gesammelte Werke. Berlim: Dietz, 7v.

 _____ (1982-1993). Gesammelte Briefe. Berlim: Dietz, 6v.

 _____ (1985). A acumulação do capital (1985). São Paulo: Nova Cultural.

Luxemburgo, R. (s/d). Introdução à economia política. Tradução de Carlos Leite. São Paulo: Martins Fontes. 

Literatura secundária

Brie, M. (2019). Muéstranos tu milagro! Dónde está tu milagro? Herramienta, 62, p.19-33. 

Candido, A. (2001). Florestan Fernandes. São Paulo: Perseu Abramo.

Caysa, V. (2017). Rosa Luxemburg – Die Philosophin. Leipzig: Rosa-Luxemburg-Stiftung Sachsen.

Evans, Kate. (2017). Rosa Vermelha. São Paulo: Martins Fontes.

Kautsky, L. (s/d). Mon amie Rosa Luxembourg. Paris: Spartacus. 

Laschitza, A. (1986). Une marxiste éminente. In Badia, G., Weill, C. Rosa Luxemburg aujourd’hui (p.123-139). Paris: Presses Universitaires de Vincennes. 

Loureiro, I. (2019). Rosa Luxemburgo – os dilemas da ação revolucionária. 3a edição, São Paulo: Editora UNESP. 

_____. (org., 2018). Rosa Luxemburgo e o protagonismo das lutas de massa. São Paulo: Expressão Popular. 

Lukács, G. (1970). Geschichte und Klassenbewußtsein. Darmstadt: Luchterhand. Tradução de Telma Costa (1974): História e consciência de classe. Lisboa: Escorpião. 

Ouviña, H. (2019). Rosa Luxemburgo y la reinvención de la política – una lectura desde América Latina. Bogotá: La Fogata; Lanzas e Letras.

Roland Holst-Van der Schalk, H. (1937). Rosa Luxemburg, Ihr Leben und Wirken. Zurique: Jean-Christoph Verlag. Schütrumpf, J. (org., 2015). Rosa Luxemburgo ou o preço da liberdade. 2a edição, São Paulo: Expressão Popular.