Feminismo e Psicanálise

Por Léa Silveira

Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA) – Lattes 

PDF – Feminismo e psicanálise

Den danska konstnärinnan Bertha Wegmann målande ett porträtt, de  Jeanna Bauck, segunda metade do século XIX. A pintora sueca retrata aqui outra pintora, Bertha Wegmann, em seu estúdio. Wegmann, por sua vez, está executando o retrato de um homem.   As artistas viveram a época em que nasceu a psicanálise.

A psicanálise interessa à reflexão feminista na medida em que reivindica para si duas tarefas: elaborar teoricamente o fenômeno da sexualidade humana e, em sendo assumida a tese de que existem processos psíquicos inconscientes, diagnosticar o modo pelo qual eles incidem nas dimensões social e política da nossa experiência – ou seja, nesse caso, trata-se de identificar a maneira como a realidade é informada por fantasias que se estruturam à revelia da consciência, indicando a radicalidade da divisão subjetiva. Ela promove, assim, aportes teóricos – senão ao menos problemas – que parecem ser indispensáveis ao feminismo. Por outro lado, existe um amplo e resiliente vínculo da psicanálise com o patriarcado (se pudermos usar esse termo para nos referirmos a formas de vida alicerçadas de modo estruturante na autoridade do homem sobre a mulher, em números elevados de atos de violência exercidos contra esta e na exclusão das mulheres da vida pública e das instâncias de deliberação política) que o pensamento feminista permite enxergar. Isso significa que feminismo e psicanálise alimentam questões recíprocas.

Tendo em vista esses dois aspectos – polemicamente entrelaçados –, é evidente que o debate entre feminismo e psicanálise é tão antigo quanto a própria obra de Sigmund Freud. Em seu espírito, em sua letra, como também na nova prática inventada por ele. É importante indicar essa dimensão da prática porque a clínica psicanalítica não pode ser pensada sem que se coloque no horizonte uma certa perspectiva de emancipação, embora isso não diga sempre respeito direta e especificamente à condição feminina. 

O gesto com o qual Freud fez a psicanálise nascer possui também um duplo aspecto: tratou-se, para ele, de simultaneamente reconhecer a histeria como resultado de um mecanismo psíquico e de designar, na clínica, um papel de protagonista à fala das pacientes. Freud pensa a histeria como uma psiconeurose de conversão (um conflito psíquico é convertido em manifestação corporal) e se é verdade que, acompanhando Jean-Martin Charcot, ele rejeitou a ideia de que ela seria uma afecção exclusiva de mulheres, também é verdade que foram pacientes mulheres aquelas que impuseram inicialmente, no contexto da clínica, a sua própria fala. Todos os casos relatados por Freud (e por Joseph Breuer) em “Estudos sobre histeria” (Breuer; Freud, 1893-1895/2016) são de pacientes mulheres. Assim como foi a uma mulher – aquela apelidada de Dora – que se referiu o célebre relato “Fragmentos da análise de um caso de histeria” (Freud, 1905[1901]/2016). Com a escuta do que mulheres diziam, Freud começou a se colocar uma pergunta que não cessaria de se radicalizar ao longo de sua obra e que, evidentemente, ultrapassa a condição feminina: por que motivos vem um ser humano a recusar o que deseja? Com relação especificamente à histeria, eis uma das formulações que ele oferece em torno de tal pergunta: “Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobretudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não.” (Freud, 1905[1901]/2016, p. 201) Isso aponta para o fato de que Freud encontra entre a sexualidade e a neurose (todas as psiconeuroses, e não apenas a histeria de conversão) uma relação de defesa que, nesse mesmo texto – o caso Dora –, ele exprime com a tese de que a neurose é o negativo da perversão. “Perversão” aparece aqui por ser o termo com o qual a psiquiatria do século XIX se referia, grosso modo, ao comportamento sexual dissociado da ideia de reprodução e do intercurso sexual então considerado normal.  

Na obra “Três ensaios de teoria sexual” (Freud, 1905/2016), Freud defende a necessidade de reconhecermos o caráter sexual da estimulação de zonas erógenas parciais (como a oral e a anal), o que organiza, para ele, a possibilidade de pensar a sexualidade infantil e ainda de situar as formas de amar do adulto como resultado de uma conquista, de uma história de investimentos e perdas libidinais, em vez de algo pré-direcionado de um ponto de vista meramente biológico. Ele escreve, nesse sentido, que “na concepção da psicanálise (…) também o interesse exclusivo do homem pela mulher é um problema que requer explicação”, não sendo algo “evidente em si”. (Freud, 1905/2016, p. 35) Quando Freud elabora a ideia de que a neurose é o negativo da perversão, ele está querendo dizer três coisas: que os sintomas neuróticos expressam fantasias, isto é, cenas voltadas para a obtenção de prazer; que o prazer assim encenado não corresponde ao ato sexual em que um homem penetra uma mulher porque se refere à sexualidade infantil; que o adoecimento psíquico constitui uma defesa contra o prazer assim chamado perverso.  

Ao redor desse raciocínio, de uma maneira cuja complexidade não é possível expressar aqui, Freud diagnosticou o caráter paradoxal da moral sexual da época e do lugar em que viveu (Europa, passagem do século XIX para o XX), destacando especialmente o modo como a opressão incidia sobre a vida psíquica das mulheres e como seu adoecimento frequentemente se articulava com as exigências implicadas no casamento (Freud, 1908/2015). Freud entendia que a neurose expressava nas mulheres uma espécie de revolta contra certas diretrizes estabelecidas socialmente e que demandavam especialmente delas o silenciamento da sexualidade, algo que mais tarde Emilce dio Bleichmar chamaria de “feminismo espontâneo da histeria” (Bleichmar, 1985/1988).  

Já nas décadas de 20 e 30 do século passado, quando Freud entende ser preciso repensar sua teoria do complexo de Édipo na direção de suprimir a simetria até então suposta entre o processo feminino e o masculino, ele apresenta a suas leitoras as seguintes ideias principais. Uma mulher precisa se tornar uma mulher porque todas as crianças se situam inicialmente como homens. “A garota pequena é um pequeno homem”, ele escreve (Freud, 1933/2010, p. 271), não havendo reconhecimento, por parte da criança, da existência da vagina, apenas a apreensão do órgão fálico, restando à menina imaginar que seu clitóris é um pênis que ainda não teve a oportunidade de crescer. A tarefa de se tornar mulher envolveria trocar de objeto (substituir a mãe pelo pai no endereçamento do amor) e de zona erógena (substituir o clitóris pela vagina, o que significaria permitir a erogeneização da penetração). Diante das dificuldades possíveis desse percurso, três destinos se tornariam disponíveis para uma mulher: a frigidez, o complexo de masculinidade ou o desenvolvimento da feminilidade normal, que corresponderia a se tornar mãe, preferencialmente de um filho homem (Freud, 1925/2011, p. 291). Para Freud, todos esses elementos organizam-se em torno da questão da castração, tratando-se, para a garota, de reconhecer que algo de muito valor lhe falta; ou seja: a menina reconheceria a ausência de pênis como um “defeito” (Freud, 1931/2010, p. 383) que assinalaria sua inferiorização relativamente ao homem, de modo que a diferença anatômica seria determinante não apenas do psíquico, mas também, diz Freud, da mulher como “ser social” (Freud, 1931/2010, p. 379). Para o autor, isso corresponde à necessidade de reconhecer na mulher a constituição mais frágil do Supereu (Freud, 1925/2011, p. 298) e a menor aptidão para desenvolvimentos éticos e estéticos (Freud, 1930/2010, p. 67), de modo que careceria de sentido a reivindicação feminista por igualdade de direitos (Freud, 1924/2011, p. 211). Essa seria a origem do desprezo e do horror direcionados às mulheres (Freud, 1923/2011, p. 173) e o autor levantará posteriormente a hipótese de que o repúdio do feminino seria mesmo um “fato biológico” (Freud, 1937/2010, p. 254) incontornável. 

Que seja possível argumentar que Freud estava referindo sua discussão ao contexto da fantasia, isso não elimina, evidentemente, a necessidade de pôr sob o viés da crítica suas teses sobre a sexualidade feminina e de pensar o modo pelo qual tal crítica poderia não ter por consequência, como costumamos dizer, jogar fora o bebê junto com a água do banho. Essa reflexão foi, de fato, realizada a partir de diversas frentes.  

Melanie Klein, em sua teorização sobre a polaridade objeto bom/objeto mau, remete o falo à originalidade do seio materno (Klein, 1952/1984) e a construção da masculinidade a uma feminilidade anterior (Klein, 1928/1996), reconhecendo a identificação da vagina pela criança. É com a centralidade da referência ao seio materno e à percepção, por parte da criança, da potência da mãe, que Klein conceitualiza tanto a posição esquizoparanoide quanto a posição depressiva, o que lhe permite repensar o complexo de Édipo, situando seu início em uma idade bem anterior àquela estipulada por Freud (neste caso: entre os 3 e os 5 anos). Em direção semelhante – a de reconhecer a mobilização precoce do complexo de Édipo –, Ernest Jones (1935) vincula o desejo da menina por um pênis às fantasias, próprias do período oral, de atribuir ao interior do corpo da mãe uma série de objetos desejados (seio, fezes, pênis, bebê), questionando a existência de uma fase fálica no sentido de, contrariamente a Freud, destituí-la como fase do desenvolvimento libidinal e reivindicá-la como posição psíquica mais geral. 

Karen Horney (1939/1966) e Alfred Adler (1923) sublinharam o papel dos privilégios sociais na valorização do pênis, que supunham então subjazer à inveja atribuída às mulheres, argumento que repercutirá de modo decisivo n’O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, notadamente a caracterização adleriana da inferioridade da mulher como falácia e preconceito de nossa civilização. Enquanto Adler afastou-se decisivamente do pensamento psicanalítico, construindo a chamada psicologia individual e substituindo o papel heurístico da sexualidade pela noção de sentimento de inferioridade, Horney, que foi uma das primeiras psicanalistas a chamar a atenção para o fato de que a feminilidade vinha sendo majoritariamente descrita e estudada por homens, foi sobretudo vista como uma autora que teria sustentado um culturalismo demasiado. Com relação a este último ponto, são fundamentais as críticas de Adorno (1952/2015) e Marcuse (1955/2015), que identificam não apenas em Horney, mas, de uma forma mais geral, no conjunto dos autores que denominam “revisionistas”1, eixos conformistas e moralistas que teriam destituído o pensamento freudiano de seu potencial crítico. 

Joan Rivière, uma autora inglesa, da escola kleiniana, introduz a concepção de feminilidade como mascarada (masquerade) (Rivière, 1929/2005), uma ideia que será, na sua capacidade de propor um pensamento não essencializante para a sexualidade, amplamente retomada por Jacques Lacan e por Judith Butler. Com ela, Rivière constrói a hipótese de que mulheres que se identificam com características consideradas masculinas podem adotar uma espécie de disfarce ou máscara de feminilidade (o que Lacan chamou de “semblante”) para desviar tanto o que supõem serem impulsos vingativos por parte dos homens quanto a angústia atrelada a tal suposição.  

É também em território britânico que surge um livro que imprime uma alteração na perspectiva do debate: Psicanálise e feminismo, publicado por Juliet Mitchell em 1974. Apesar dessa discussão ter nascido, de uma maneira relevante e no sentido das questões que suscita, juntamente com a própria psicanálise, a reação das pensadoras feministas foi durante algum tempo exclusivamente negativa face ao saber inaugurado por Freud. É, então, em um sentido contrário a este que se encaminha o livro de Mitchell, pois ele corresponde a uma primeira defesa direta do interesse da psicanálise para o próprio feminismo (Brennan, 1998). Mitchell denuncia aqui o historicismo da leitura de Freud realizada por autoras tais como Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Eva Figes, Germaine Greer, Susan Firestone e Kate Millet e insiste:  

1- na hipótese de que aquilo que as autoras feministas costumam rejeitar em Freud não são suas ideias sobre a feminilidade, mas as próprias concepções fundamentais de sexualidade e de inconsciente (p. 370);  

2- na importância de não confundirmos realidade social com realidade psíquica (p. 374).  

Em outro lugar – num artigo chamado Sobre Freud e a distinção entre os sexos – Mitchell (1974/1988) traz ainda, e numa clara tensão com os argumentos de seu livro, a defesa de que o valor das teses de Freud sobre a feminilidade residiria sobretudo na sua qualidade de diagnóstico de época, de constatação de um certo estado de coisas. Esse argumento será retomado, de modo relevante para a discussão, por Gayle Rubin (1975/1993), que desenvolve então um paralelo entre ela e uma análise do pensamento de Lévi-Strauss. 

O pensamento de Juliet Mitchell já é marcado por uma forte inspiração lacaniana na qual ela encontra as vias pelas quais se referir a uma opacidade própria ao inconsciente. Esse é, com efeito, um dos elementos mais importantes da argumentação de Lacan. Ele resulta, no final de seu ensino, no aforismo “não há relação sexual” (Lacan, 1973/2003, p. 454). Ao formular esse dizer, Lacan quer se referir à incidência da fantasia sobre o desejo, à incomensurabilidade dos gozos feminino e masculino (Lacan, [1972-73]1975/2008) e ao modo pelo qual isso retira de cena qualquer perspectiva de complementaridade entre os sexos (Rose, 1982/2020). Para o psicanalista francês, essa não relação organiza-se em torno do falo como significante do desejo; o falo indica, diz o autor, aquilo que “me separa de meu desejo, e que faz com que meu desejo seja sempre marcado pela alteração que ele sofre em decorrência da entrada no significante.” (Lacan, [1957-58]1998, p. 284) Vemos por aí a importância que adquire, para Lacan, a necessidade de não tomar o falo como pênis, isto é, de não referir o modo de desejar ao dado anatômico. O falo, nenhum ser humano o possui, seja ele de que sexo for. Embora alguns textos de Lacan tragam afirmações e argumentos no sentido contrário (Lacan, 1960a/1998, p. 738; 1960b/1998, p. 836, 837 e 840; 1958/1998, p. 699) – como se se tratasse, em seu próprio pensamento, de uma oscilação não plenamente resolvida –, esse é certamente o raciocínio que prevalece. Nele, uma dificuldade nuclear e resistente à eliminação é aquela que pode ser elaborada da seguinte forma: “O falo não é o pênis. Mas, exatamente, quanto menos o falo é o pênis mais difícil se torna sustentar que se trate, aí, de falo.” (Silveira, 2017, p. 8; ver também Gallop, 1988/2001) É, de qualquer modo, por referência ao falo que Lacan elabora tanto a estruturalização do complexo de Édipo (Lacan, 1959/1998, p. 563) – então organizado a partir de funções, e não de indivíduos – quanto a bipartição das “fórmulas da sexuação” nas quais o lado Homem corresponde ao gozo fálico e o lado Mulher ao gozo Outro (Lacan, [1972-73]1975/2008). Em torno dessa ideia de que não haveria um significante equivalente ao falo no campo do feminino e que pudesse articular as mulheres em conjunto, Lacan construirá um de seus mais conhecidos aforismos: “Ⱥ mulher não existe”. 

Em diálogo com a obra de Lacan, porém reivindicando a possibilidade e necessidade dessa simbolização por ele recusada, Luce Irigaray (1977/2017) discorre sobre a metáfora dos lábios vaginais, a ser articulada pelo toque, e não mais pelo olhar. Para Irigaray, a simbolização feminina seria capaz de instituir uma lógica não mais falocêntrica, acenando assim para o papel da linguagem e da escrita na reflexão feminista, algo elaborado também por Julia Kristeva (1974/1986) e Hélène Cixous (1975/1976).  

Também sob um viés crítico, porém em outra direção, Judith Butler (1990/2003), ao propor o questionamento sobre a existência de um sujeito feminino que seria subjacente à reflexão sobre gênero, denuncia fundamentalmente a reprodução, por parte da psicanálise, da heterossexualidade normativa tanto pela presença desse traço na própria noção de simbólico – fundamental no pensamento lacaniano – quanto pela compreensão de tipo melancólica, encontrada em Freud, dos processos de aquisição e construção da masculinidade e da feminilidade (ver também Butler, 1997/2017). Em Problemas de gênero, Butler, ao defender que o tabu da homossexualidade antecede, no pensamento freudiano, o tabu do incesto, pretende denunciar, em torno disso, o “falso fundacionismo” (Butler, 1990/2003, p. 117) depositado por ele na ideia de predisposição, como se Freud transpusesse para o território do constitucional aquilo que é construído e transmitido pela cultura; “(…) as predisposições”, escreve Butler, “não são fatos sexuais primários do psiquismo, mas efeitos produzidos por uma lei imposta pela cultura e pelos atos cúmplices e transvalorizadores do ideal do eu.” (Butler, 1990/2003, p. 117) A filósofa se pergunta, então:  

1- por que aquilo que é remetido por Freud à predisposição não poderia ser entendido como resultado da série de internalizações e  

2- o que seriam essas predisposições masculina e feminina originárias (Butler, 1990/2003, p. 111) diante de cuja hipótese Freud incorre em tantos impasses. 

Lélia Gonzalez (1984), por sua vez, vale-se do pensamento lacaniano para situar o desejo pelo negro – em especial pela mulher negra, nas figuras da mulata, da doméstica e da mãe preta – como alvo de uma denegação por parte da cultura brasileira, diante da qual seria possível identificar, na dimensão da língua, uma resistência sob a forma do “pretuguês”. 

Mais recentemente, Drucilla Cornell (1995/2018) apropria-se criticamente do pensamento de Lacan para propor o “feminismo ético”, um feminismo que, de acordo com a autora, privilegie a diversidade, colocando no horizonte “uma relação não violenta com o Outro” (Cornell, 2018, p. 127). Cornell propõe que esse feminismo reflita sobre a “interação entre fantasias da Mulher e a opressão material das mulheres” (Idem, p. 119), levando em conta a preservação destas em lugar heterogêneo relativamente à hierarquia de gêneros, e que ele não separe o problema de tal hierarquia das questões de “raça, classe, nacionalidade e heterossexualidade sancionada” (Idem, p. 118).   

Na tendência da escola das relações de objeto, filiada sobretudo a Melanie Klein e Donald Winnicott, é importante destacar duas autoras: Nancy Chodorow e Jessica Benjamin. Para Chodorow, a psicanálise é capaz de revelar o modo pelo qual a divisão do trabalho na família contribui para a desigualdade entre os sexos (Chodorow, 1978/2002, p. 52) produzindo significações específicas de gênero, processo que retroage sobre a própria constituição da família, gerando um ciclo de reprodução da estrutura do cuidado com os filhos, na qual mulheres maternam enquanto homens se ocupam em participar da esfera pública (Chodorow, 1978/2002, p. 60). Jessica Benjamin enfrenta o problema da dominação/submissão, sustentando, ao contrário do que foi alegado por Freud, que ele não se inscreve na natureza humana, mas resulta de certos modos pelos quais são desenvolvidos os laços amorosos, modos que respondem de maneiras específicas à agressividade e às exigências civilizatórias (Benjamin, 1988, p. 5). Segundo Benjamin, a psicanálise permite compreender como o desenvolvimento de uma estrutura psíquica alicerçada na distinção entre sujeito e objeto perpetua, em nossa sociedade, a sobreposição do par dominação/submissão ao par masculino/feminino (Benjamin, 1988, p. 7). A autora parte de uma distinção entre o que seriam as dimensões intrapsíquica (que ela atribui a Freud) e intersubjetiva (que ela encontra na teoria das relações de objeto) da experiência humana – especialmente das relações entre adultos e bebês – para construir uma teoria específica do reconhecimento.   

Todos esses percursos, temas e problemas indicam a riqueza do debate que se instala no diálogo e na tensão entre feminismo e psicanálise e, simultaneamente, assinalam sua importância para um pensamento sobre a contemporaneidade que leve em conta o sujeito e sua divisão. Além de nos advertir para a presença da vida pulsional em nossas experiências políticas, a psicanálise nos permite identificar elementos centrais das fantasias que a cultura patriarcal construiu em torno da mulher. Porém, ao mesmo tempo em que faz isso, ela reproduz algumas das diretrizes mobilizadas na própria construção dessas fantasias. Pode o conceito freudiano de inconsciente ser preservado sem tal consequência? 

 

Bibliografia citada 

ADLER, Alfred. (1923) “Sex”. Em: Understanding human nature. (Tradução de Walter Wolfe) Londres: George Allen, 1954. Disponível em: https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.126777/page/n1 

ADORNO, Theodor. (1952) “A psicanálise revisada”. Em: Ensaios sobre psicologia e psicanálise. (Tradução de Verlaine Freitas) São Paulo: Unesp, 2015. 

BENJAMIN, Jessica. The bonds of love. Nova York: Patheon Books, 1988. 

BLEICHMAR, Emilce dio. (1985) O feminismo espontâneo da histeria: Estudo dos transtornos narcisistas da personalidade. (Tradução de Francisco Vidal). Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1988. 

BUTLER, Judith. (1990) Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. (Tradução de Renato Aguiar). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 

BUTLER, Judith. “Resposta a Adam Phillips”; “Começos psíquicos”. Em: A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição. (Tradução de Rogério Bettoni). Belo Horizonte: Autêntica, 2017. 

CHODOROW, Nancy. (1978) Psicanálise da maternidade: Uma crítica a Freud a partir da mulher. (Tradução de Nathanael C. Caixeiro). Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2002. 

CIXOUS, Hélène. (1975) “The Laugh of the Medusa”. (Tradução de Keith Cohen e Paula Cohen). Em: Signs, Vol. 1, No. 4. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/66416/mod_resource/content/1/cixous-the-laugh-of-the-medusa.pdf  

CORNELL, Drucilla. (1995) “O que é feminismo ético?” Em: BENHABIB, Seyla (et aliae). Debates feministas: Um intercâmbio filosófico. (Tradução de Fernanda Veríssimo) São Paulo: Editora Unesp, 2018.  

BRENNAN, Teresa. “Psychoanalytic feminism”. Em: JAGGAR, Alison M. e YOUNG, Iris M. A companion to feminist philosophy. Blackwell, 1998.  

BREUER, Joseph e FREUD, Sigmund. “Estudos sobre histeria”. Em: Obras completas. Volume 2. (Tradução de Laura Barreto). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.  

FREUD, Sigmund. (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Em: Obras completas. Volume 6. (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. Em: Obras completas. Volume 8. (Tradução de Paulo César de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 

FREUD, Sigmund. (1923). “A organização genital infantil”. Em: Obras completas. Volume 16. (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

FREUD, Sigmund. (1924). “A dissolução do complexo de Édipo”. Em: Obras completas. Volume 16. (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

FREUD, Sigmund. (1925). “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”. Em: Obras completas. Volume 16. (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

FREUD, Sigmund. (1930) “O mal-estar na civilização”. Em: Obras completas. Volume 18. (Tradução de Paulo César de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

FREUD, Sigmund. (1931) “Sobre a sexualidade feminina”. Em: Obras completas. Volume 18. (Tradução de Paulo César de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

FREUD, Sigmund. (1933) “A feminilidade”. Em: Obras completas. Volume 18. (Tradução de Paulo César de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

FREUD, Sigmund. (1937) “Análisis terminable e interminable”. Em: Obras Completas. Volume XXIII. (Trad. J. L. Etcheverry) Buenos Aires: Amorrortu, 2010. 

GALLOP, Jane. (1988) “Além do falo”. Em: Cadernos Pagu. n.16, pp. 267-287, 2001Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a12.pdf 

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Em: Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, 1984. 

HORNEY, Karen. (1939) Novos rumos na psicanálise. (Tradução de José Severo de Camargo Pereira) Civilização Brasileira: 1966. 

IRIGARAY, Luce. (1977) “Este sexo que não é só um sexo: Sexualidade e status social da mulher”. (Tradução de Cecília Prada) São Paulo: Senac, 2017. 

JONES, Ernest. (1935). “Early female sexuality”. Em : The International Journal of Psychoanalysis, 16, 263-273. 

KLEIN, Melanie. (1928) “Estágios iniciais do conflito edipiano”. Em: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). (Tradução de André Cardoso) Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

KLEIN, Melanie. (1952) “Some theoretical conclusions regarding the emotional life of the infant”. Em : The writings of Melanie Klein, Volume III : Envy and gratitude and other works. Nova York : The Free Press, 1984. 

KRISTEVA, Julia. (1974) “Revolution in poetic langage” (Tradução de Margaret Waller). Em : MOI, Toril (Ed.) The Kristeva reader. Nova York : Columbia University Press, 1986. 

LACAN, Jacques (1958) “A significação do falo”. Em: Escritos. (Tradução de Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 

LACAN, Jacques (1959) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Em: Escritos. (Tradução de Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 

LACAN, Jacques (1960a) “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 

LACAN, Jacques. (1960b) “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Em: Escritos. (Tradução de Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 

LACAN, Jacques. ([1957-58]1998) O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro : Zahar, 1999.  

LACAN, Jacques. (1973) “O aturdito”. Em : Outros escritos. (Tradução de Vera Ribeiro) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 

LACAN, Jacques. ([1972-73]1975) Seminário, livro 20: Mais, ainda. (Tradução de M. D. Magno). Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 

MARCUSE, Herbert. (1955) “Epílogo”. Em: Eros e civilização : Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. (Tradução de Álvaro Cabral) Rio de Janeiro: LTC, 2015. 

MITCHELL, Juliet. (1974) Psicanálise e feminismo. (Trad. Ricardo Britto Rocha) Belo Horizonte: Interlivros, 1979. 

MITCHELL, Juliet. (1974) “Sobre Freud e a distinção entre os sexos”. Em: Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988. 

ROSE, Jacqueline. (1982) “Introdução II a Feminine sexuality“. (Tradução de João Cunha e Léa Silveira). Em: PARENTE, Alessandra Martins e SILVEIRA, Léa. Freud e o patriarcado. São Paulo: Hedra/Fapesp, 2020. 

RIVIERE, Joan. (1929) “A feminilidade como máscara”. (Tradução de Ana Cecília Carvalho e Esther Carvalho). Em: Psyche (Sao Paulo) [online]. 2005, vol.9, n.16, pp. 13-24 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382005000200002&lng=pt&nrm=iso>.  

RUBIN, Gayle. (1975). O tráfico de mulheres: Notas sobre a “economia política” do sexo. (Tradução de Cristine Rufino Dabat, Edileusa Oliveira da Rocha e Sonia Corrêa) Recife: SOS corpo, 1993. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1919

SILVEIRA, Léa. “Assim é a mulher por trás de seu véu? Questionamento sobre o lugar do significante falo na fala de mulheres leitoras dos Escritos”. Em: Lacuna: Uma revista de psicanálise, v. 3, 2017. Disponível em: https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-08/#_ftnref14 

 

Fonte, literatura secundária e outros materiais 

AMBRA, Pedro. “Um panorama histórico”. Em: Revista Cult. Feminismos e femininos – Velhas discórdias, novas aproximações. São Paulo, 10 set. 2018. 

ARÁN, Márcia. (2009) ‘A psicanálise e o dispositivo diferença sexual”. Em: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 17, n. 3, pp. 653-673.  Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2009000300002&lng=en&nrm=iso>. Consultado em: 17/07/2016. 

BEAUVOIR, Simone de. (1949a) O segundo sexo: Fatos e mitos, volume 1. (Tradução de Sérgio Milliet). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 

BENJAMIN, Jessica. “O fim da internalização: Psicologia social de Adorno”. (Tradução de Bárbara Santos e Inara Luisa Marin) Em: Dissonância. n. 01. Campinas, 2017, p. 155-198. 

BIRMAN, Joel. “Genealogia do feminino e da paternidade em psicanálise”. Em: Natureza humana, São Paulo ,  v. 8, n. 1, 2006. pp. 163-180.  Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302006000100005&lng=pt&nrm=iso>. Consultado em: 17/07/2016. 

BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo: A feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 

BRENNAN, Teresa. (1989) (org.) Para além do falo: Uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. (Tradução de Alice Xavier) Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997. 

DAVID-MÉNARD, Monique. As construções do universal: Psicanálise, filosofia. (Tradução de Celso Pereira de Almeida). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 

FRASER, Nancy (2013) “Contra o ‘simbolicismo’: Usos e abusos do ‘lacanismo’ para políticas feministas”. (Tradução de Pedro Ambra) Em: Lacuna: Uma revista de psicanálise . São Paulo, n. -4, p. 9, 2017. 

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: A mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998. 

KRISTEVA, Julia. (1979) “Le temps des femmes”. Em: Revue 34/44. Univ. Paris VII (5), 1979, pp. 5-19.  

SOLER, Colette. (2005). O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 

COPJEC, Joan. (1994) Read my desire – Lacan against the historicists. London; New York: Verso, 2015. 

COSSI, Rafael Kalaf. Lacan e o feminismo: A diferença dos sexos. São Paulo: Annablume, 2018. 

MARIN, Inara. “Déficit psicanalítico na teoria crítica feminista”. Em: Dissonâncias, v. 2, 2018. 

McCLINTOCK, Anne. (1995) Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. (Tradução de Plínio Dentzien) Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. 

MOREIRA, Maíra Marcondes. O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade. São Paulo: Annablume, 2019. 

PARENTE, Alessandra Martins. “Freud como grão-burguês e o patriarcado na psicanálise”. Em: Peixe elétrico. N. 9, 2019. 

PARENTE, Alessandra Martins e SILVEIRA, Léa. Freud e o patriarcado. São Paulo: Hedra/Fapesp, 2020. 

PORCHAT, Patrícia. Psicanálise e Transexualismo: Desconstruindo gêneros e patologias com Judith Butler. Curitiba: Juruá Editora, 2014. 

SEGATO, Rita. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Brasília: Série Antropologia UnB, 2006.