Gloria Anzaldúa

(1942-2004)

 

por Ada Cristina Ferreira, doutoranda em Filosofia pela 

Universidade Federal do ABC – Lattes

PDF – Gloria Anzaldúa

 

Gloria Anzaldúa, 1988. Coleção Vozes Particulares: Retratos de Escritores
Gays e Lésbicas por Robert Giard. Biblioteca Pública de Nova York.

 

Vida

Com o florescimento das teorias feministas e os estudos sobre gênero, classe e sexualidade, a autora Gloria Evangelina Anzaldúa (1942-2004) tem sido uma das autoras que vem conquistando espaço dentro dos estudos filosóficos. Serpenteando entre as linhas da poesia, literatura, narrativa, teoria e auto-história, Anzaldúa convida seus leitores e leitoras a visitarem os espaços fronteiriços e serem testemunhas do nascimento de uma nova cultura, a cultura que envolve e representa a população da fronteira e que abriga a identidade da “New Mestiza”.      

Nascida no Vale do Rio Grande no Texas, na fronteira com o México – Estados Unidos, onde uma linha divisória cortou o espaço sagrado da ancestralidade asteca, Anzaldúa foi a filha mais velha de Urbano e Amália Anzaldúa. De origem pobre e campesina e autodeclarada chicana, lésbica e ativista política, Anzaldúa experiencia desde muito cedo as tensões que envolvem seu corpo, sua sexualidade e seu local de origem. Desde muito antes de seu nascimento a família sobrevive do trabalho campesino. Enquanto criança, Anzaldúa e seus irmãos auxiliavam os pais com as tarefas nos campos, intercalando os horários de aula com as horas de trabalho eles ajudavam no sustento da família. À noite, período em que tinha maior liberdade, Anzaldúa lia para sua irmã Hilda adormecer, sua imaginação criativa a fazia inventar contos noturnos em troca do silêncio prometido pela irmã quando Anzaldúa temia ser repreendida pela mãe. Então, atravessava a noite em claro, lendo e escrevendo debaixo das cobertas, iluminando as páginas com uma lanterna para não ser descoberta. 

Ainda muito cedo experimentou o quanto o corpo pode transformar as relações que estabelecemos conosco e com o próximo. Com uma condição rara que a obrigava enfrentar um forte desequilíbrio hormonal que a fazia sangrar desde que tinha três meses de idade, Anzaldúa se vê como uma estranha entre as outras pessoas. Aos sete anos e já com os seios em desenvolvimento, sua mãe tentava protegê-la dos olhares atravessados pela violência enfaixando seus seios para que não fossem vistos pelos colegas e demais pessoas. Ainda era repetidamente advertida para que tomasse cuidado ao se sentar, “Mantenha suas pernas fechadas, Prieta” (Anzaldúa, 2021, p. 66), já que em sua calcinha diversos panos dobrados serviam para absorver o sangramento que tinha. Sua condição a deixou com fortes dores, principalmente na vida adulta. Com cólicas, febres altas e tremores, Anzaldúa sempre estava no hospital.  

Aos 38 anos de idade foi submetida a cirurgia de histerectomia. A retirada do útero trouxe à Anzaldúa uma das experiências mais traumatizantes que a deixou entre a vida e a morte. Esses acontecimentos são relatados num ensaio profundo e emocionante La Prieta publicado em This Bridge Called My Back [Essa Ponte que Chamo de Minhas Costas], em 1981. Nele, Anzaldúa relembra momentos de sua infância e de sua vida adulta, a perda do pai quando tinha apenas 12 anos de idade, a difícil relação com a mãe e os olhares de estranhamento que enfrentava de uma sociedade que a via como uma “loquita, jotita, marimacha, pajuelona, lambiscona, culera” (Anzaldúa, 2021, p. 126) nomes considerados depreciativos e que reproduzem os preconceitos de uma sociedade.   

How to turn away from the hellish journey that the disease has put me through, the alchemical nights of the soul. Torn limb from limb, knifed, mugged, beaten. My tongue (Spanish) ripped from my mouth, left voiceless. My name stolen from me. My bowels fucked with a surgeon’s knife, uterus and ovaries pitched into the trash. Castrated. Set apart from my own kind, isolated. My life-blood sucked out of me by my role as woman nurturer – the last form of cannibalism. 

 

[Como me afastar da jornada infernal em que a doença me fez passar, as noites alquímicas da alma. Rasgada membro por membro, esfaqueada, roubada, espancada. Minha língua (espanhol) arrancada de minha boca, deixada sem voz. Meu nome roubado de mim. Minhas entranhas fodidas por uma faca de cirurgião, útero e ovários lançados no lixo. Castrada. Separada do meu próprio povo, isolada. Meu sangue-vital sugado de mim pelo meu papel de mulher criadora – a última forma do canibalismo].  (Anzaldúa, 1984, pp. 231-232).

     

Mesmo frequentando a universidade, Anzaldúa manteve uma forte ligação com o campo, trabalhava nos fins de semana e nas férias para ajudar a família. Não era sua intenção desenvolver o tradicional papel destinado à mulher naquela época, que consistia em casar e ter filhos, viver nos campos trabalhando para sobreviver, destino que geralmente era traçado para pessoas mais pobres. Anzaldúa se sentia sufocada com isso. Necessitava de mais. Mais palavras, mais conhecimento, mais questionamentos sobre “o jeito de ser das coisas”. (Anzaldúa, 2021, p. 73). Essa sua sede por conhecimento a conduziu à Universidade Pan American, onde em 1969 recebeu o diploma de licenciatura em Artes e Literatura Inglesa. 

Nos anos seguintes à sua formação, Anzaldúa foi professora em escolas públicas no Texas. Em suas aulas para o ensino médio ela percebia a recusa da escola em oferecer aos alunos e alunas chicanos/as uma literatura que incluísse contos e a arte chicana. Sempre que tentava complementar os estudos de seus alunos levando textos sobre esses temas, era repreendida pela diretora. No entanto, arriscando seu emprego, ela oferecia em segredo alguns poemas, peças, contos da literatura chicana para que seus alunos e alunas pudessem conhecer e experienciar um pouquinho daquilo que viviam na prática.  

Em 1972 se tornou mestre em educação artística e literatura pela Universidade de Austin e logo em seguida ingressou nos movimentos campesinos, encontros de ativistas políticos e movimentos sociais de imigrantes chicanos. Esses contatos a conduziram à coordenação de uma escola na qual Anzaldúa era incumbida da educação de filhas e filhos de migrantes trabalhadores do campo em Indiana. Em 1974, entra em contato direto com o feminismo e passa a participar ativamente de encontros políticos e atividades práticas do movimento. Com a proximidade dos diálogos, Anzaldúa estabelece uma aliança entre o movimento chicano que já participava e o movimento feminista na época. Esse contato foi importante para que ela pudesse perceber que havia críticas a serem feitas em cada um desses movimentos como, por exemplo, o abismo que existia entre o movimento feminista e o movimento anti-racista, a precariedade do trabalho entre as mulheres chicanas em relação aos homens da mesma comunidade (Palacio, 2020). 

Nos anos seguintes, Anzaldúa se ocupa com as discussões feministas e o tema do racismo e passa boa parte de seu tempo se dedicando à escrita. Ela articula a construção de um movimento que pudesse discutir um feminismo mais plural, que trabalhasse com a experiência relatada por mulheres que estavam às margens da visibilidade ocidental, mulheres que Anzaldúa chamou de “Mulheres de Terceiro Mundo” (Anzaldúa, 1987, p. 3). Tais experiências envolveriam principalmente os problemas como o racismo e as desigualdades de classes, temas que atingiam mais as mulheres de cor da classe trabalhadora. Anzaldúa acreditava que apenas com essas discussões era possível alcançar uma emancipação feminina mais abrangente, mais inclusiva e justa. 

Por volta dos anos de 1976-1977, Anzaldúa tenta ingressar no doutorado na Universidade do Texas. Mas, a pesquisa que pretendia sobre estudos feministas e literatura chicana foi frustrada, uma vez que consideravam os estudos sobre mulheres algo a que Anzaldúa não deveria se dedicar (Anzaldúa, 2016, p. 274). Segundo relata, era como se essas vozes não existissem, como se esses estudos não gerassem impacto ou peso acadêmico. (Anzaldúa, 2016, p. 275).

(…) cuando estaba en la Univesidad de Texas, quería centrar mi tesis en estudios feministas y literatura chicana  y enseguida me di cuenta de que eso parecía un proyecto imposible. El asesor de dijo que la literatura chicana no era una disciplina legítima, que no existía, y que los estudios de mujeres no era algo a lo que yo debería dedicarme. Ya sabes, esto era en 1976-1977. Si eras una chicana en una universidad, todo lo que te enseñaban eran sistemas filosóficos, disciplinas y modos de conocimiento rojos, blancos y azules, bien estadunidenses. 

[(…) quando estava na universidade do Texas, queria centrar minha tese nos estudos feministas e literatura chicana e em seguida me dei conta de que isso parecia ser um projeto impossível. O orientador me disse que a literatura chicana não era disciplina legítima, que não existia, e que os estudos sobre as mulheres não era algo a que deveria me dedicar. Já sabe, isso era em 1976-1977. Se você é uma chicana em uma universidade, tudo o que te ensinam são sistemas filosóficos, disciplinas e modos de conhecimento vermelhos, brancos e azuis, bem estadunidense]. (Anzaldúa, In Ikas, 2016, p. 274).  

Após as negativas que recebeu sobre a intenção de sua pesquisa na academia, Anzaldúa desiste de completar o doutorado e se muda para a cidade de São Francisco. Ela então entra para a “Women’s Writer’s Union” e a “Feminist Writer’s Guild”, um sindicato e uma associação que contemplavam escritoras mulheres e feministas. Ali conhece diversas escritoras, como Susan Griffin, Nellie Wong, Merle Woo e também Cherríe Moraga, com quem divide amizade e trabalhos ao longo de sua vida. Durante os encontros com essas mulheres, Anzaldúa percebe que os grupos eram formados em sua maioria por mulheres brancas, e que acabavam negligenciando outros fatores que envolviam a opressão de gênero. Como, por exemplo, a classe social, a raça, a orientação religiosa, a idade, e mesmo o físico das mulheres, entre outros tantos temas que embasavam a violência e deveriam entrar para a discussão, mas não era o que acontecia. 

Essas experiências despertam em Anzaldúa a ideia de unir essas vozes que se encontravam às margens para que pudessem ser ouvidas, incluindo as diferentes opressões que envolvem não só o corpo, mas o lugar que esse ocupa. Em 1981 foi convidada pela Universidade de São Francisco a lecionar no recém programa voltado ao estudos sobre mulheres, em que mantinha o foco na literatura de mulheres de terceiro Mundo (Palacio, 2020). Com o engajamento de seu trabalho e com o interesse demonstrado por diversas mulheres surge, em 1981, por iniciativa de Anzaldúa, um compilado que levou o nome de “This bridge called my back, writings by radical women of color” [Essa ponte que chamo de minhas costas, escrito de mulheres radicais de cor], reunindo diversas escritoras com diferentes estilos de escrita e diferentes formas de experienciar o mundo. 

A recepção do livro, o engajamento e a parceria dessas escritoras fez com que as ideias borbulhassem na mente de Anzaldúa e a encorajassem a seguir com um projeto que já estava sendo desenhado há algum tempo, chamado por ela de “Mundo Zurdo” [Mundo Canhoto]. Nele, Anzaldúa propõe uma espécie de partilha em que as mulheres pudessem dividir não só de forma literária, mas fisicamente, suas histórias, participando de seminários, oficinas, grupos de escuta, movimentos em que o corpo também pudesse mediar o próprio pensamento. A ideia consistia, segundo Palacio (2020), em estabelecer um vínculo entre teoria e prática com o objetivo de criar um espaço desde a marginalidade. Esse espaço serviria de “abrigo” para essas mulheres, fornecendo condições para que as experiências pudessem ser compartilhadas. Muitas vezes a mesma realidade atravessava a vida de diferentes sujeitos e com a partilha se construíam condições em conjunto para superar os obstáculos e articular novas formas para transpor as dificuldades que lhes eram apresentadas. Dessa forma, Anzaldúa e outras tantas mulheres rompiam juntas a tradição do silêncio que anteriormente se instaurava em torno dos marcadores como o sexo, o gênero, a cor e a localidade, etc.

La noción del Mundo Zurdo no pretende ser una mera categoría explicativa, sino que introduce el vínculo entre teoría y práctica, ya que de lo que se trata es de crear un espacio desde la marginalidad, un espacio que al ser creado por ellos pueda albergarles. En este sentido, la metodología de talleres y seminarios acompaña al proceso de elaboración de un nuevo sentido al que refiere este Mundo Zurdo. Anzaldúa sabía de qué hablaba y por qué, ella conocía la marginación y confiaba en que la experiencia de las carencias sirviera de resorte a una visión diferente de una misma realidad compartida. 

[A ideia ‘Mundo Zurdo’ não pretende ser uma categoria explicativa, mas visa introduzir o vínculo entre teoria e prática, já que se trata de criar um espaço desde a marginalidade, um espaço que ao ser criado possa servir de abrigo. Neste sentido, a metodologia de oficinas e seminários acompanha o processo de elaboração de um novo sentido a que se refere o Mundo Zurdo. Anzaldúa sabia o que falava e por que falava, ela conhecia a marginalização e confiava que a experiência sobre as carências serviria de aporte a uma visão diferente de uma mesma realidade compartilhada]. (Palacio, 2020, versão ebook, tradução nossa).  

Após o ano de 1981, Anzaldúa participou de diversas atividades além de lecionar em Universidades, como Columbia, Maryland, Yale, Norwich, Califórnia e, anos mais tarde, na Universidade da Flórida. Em 1987 finalmente é publicado seu mais famoso livro “Bordelands/La frontera: La consciencia de la nueva mestiza” [Fronteiras/ A Fronteira: A consciência da nova mestiça] eleito pela Journal como um dos 38 melhores do ano e um dos 100 melhores de 1987 segundo as revistas Hungry Mind e Utner Reader. Por suas publicações e pelo impacto de suas obras Anzaldúa recebe diversos prêmios, como o Before Columbus American Book Award, prêmio Lambda Lesbian Small Book Press, Lesbian Rights, Prêmio Nacional de Artes da faculdade de Artes Liberais da Pamona College na Califórnia, Prêmio Sappho, Americas Honor Award e o prêmio concedido pelo programa de Estudos Latinos o Consortium of Latin American Studies Programs – CLAPSA. 

   Nos anos que se seguem, Anzaldúa mantém um forte ritmo produtivo e retoma sua pesquisa no doutorado com mais afinco em 2003 na Universidade da Califórnia. Porém, com sua saúde cada dia mais debilitada somada ao diagnóstico de diabetes, Anzaldúa não concluiu seu doutoramento e faleceu em casa na cidade de São Francisco no dia 15 de maio de 2004 aos 61 anos de idade. Seu corpo retornou para casa, para a pequena cidade de Hargill no Texas onde cresceu. Posteriormente, a Universidade da Califórnia lhe concedeu o título póstumo de doutora em literatura. E em 2009 uma série de entrevistas editadas por AnaLouise Keating – “The Gloria Anzaldúa Reader” – é publicada. 

 

O poetizar da obra Borderlands/La Frontera: The New Mestiza

 

Realizar a leitura de uma obra é sempre uma tarefa difícil, pois a leitura exige mais que uma mera interpretação, exige absorção do texto, da narrativa, das imagens, do aprofundamento e da apropriação dos conceitos. A leitura do texto de Glória Anzaldúa se torna mais desafiadora quando ela retira o leitor de seu comodismo acadêmico e o insere de forma gradativa no universo da fronteira. Ao iniciarmos a leitura dessa obra, Anzaldúa nos convida a experimentar a linguagem fronteiriça, linguagem que reflete seus antepassados e o seu presente e que atualmente representa a sobrevivência na fronteira. Do “bilinguajamento”, “multilinguajamento”, ou seja, a intersecção de línguas que se fundem em uma só como a mescla do espanhol com inglês, o Tex-Mex, o Pachuco, as gírias, emerge “um modo de viver”, um viver-entre-línguas (Anzaldúa, 1987). Só assim é que se pode adentrar no espaço da mestiza e conhece-la da forma como Anzaldúa desejaria que a conhecêssemos. 

Ao tomarmos contato com seu mais famoso livro, Anzaldúa consegue resgatar nossa atenção desde sua capa — a da primeira edição de 1987. No título a palavra “Borderlands”, localizada na parte superior, insinua o norte inglês, o norte geográfico, e na parte inferior “La fronteira”, o sul mexicano, seguido por dois pontos — “The new mestiza”, mostra a mescla linguística que representa o espaço híbrido da fronteira. Para separar os territórios uma linha divisória corta o sul e o norte e delimita dois lados, o desenho é uma metáfora para demonstrar as barreiras assinaladas pela geografia política colonial. 

A estruturação dos capítulos do livro e a mescla que a autora faz da narrativa poética nas passagens em que resgata a memória chicana deixa mais evidente o movimento da obra. Essa estrutura é fundamental para ilustrar o próprio processo de construção da consciência mestiça. O desenvolvimento passa pela teoria, pela autobiografia e, desta, para poesia e posteriormente para a transcrição de uma entrevista concedida a Karin Ikas. A obra se divide em duas partes. A primeira “Atravesando Fronteras/Crossing Borders” traz importantes temas como a violência colonial, os processos de resistência, as ameaças constantes sofridas pelas chicanas e chicanos e, por fim, a consciência mestiça. A segunda parte inicia-se em “Un Agitado Viento/Ehêcatl, The Wind” e é composta de poesias.

Apesar do livro se dividir em duas partes e conter vários capítulos, podemos dizer que a obra passa por três movimentos, os quais vão se transformando poeticamente em uma espécie de ritual metafórico e que se consolida por fim com o nascimento da “New Mestiza”. 

 

A fronteira

A contextualização do lugar de onde nascem as discussões de Anzaldúa é importante para que se compreenda a identidade mestiza. Nos primeiros capítulos de “Borderlands/La Frontera: The new mestiza”, a autora se preocupa em apresentar a fronteira de onde ela fala. Ressalta que essa fronteira não é apenas um espaço geográfico definido, mas sim um local conflituoso que, em meio às tensões políticas, econômicas e culturais desenvolve, segundo Anzaldúa (1987), uma luta que também é feminista.

Anzaldúa faz um apanhado histórico, revisitando o México, principalmente a parte norte do hemisfério, área tradicional de cultura mexicana e onde atualmente é o sul dos Estados-Unidos. A autora ressalta a importância dada às entidades místicas femininas, algumas como Malintzin, La Llorona, Coatlicue, Malinche e a virgem de Guadalupe, entre outras que foram estigmatizadas ou passaram por um processo de adaptação cristã. Suas histórias remetem aos símbolos da américa pré-colombiana e entidades que estão intrinsecamente relacionadas ao surgimento da cultura chicana.

A autora apresenta não só o contexto de formação da fronteira, mas aponta a situação de dupla violência que as mulheres fronteiriças enfrentam diante da situação em que se encontram. Anzaldúa busca demonstrar como se institui o dispositivo hierárquico de poder e, como aponta Meloni (2012), essa colonialidade opera em três níveis: o poder econômico (político), o saber epistêmico, e produz o controle da sexualidade pela designação de rótulos para os gêneros. Assim realiza o que Aníbal Quijano (2005), Mignolo (2003) e os teóricos do círculo de debates do grupo “Modernidade/Colonialidade” chamaram posteriormente de colonialidade do poder, do saber e do ser.

Com a colonização espanhola no começo do século XVI, a terra “Aztlán”, a terra sagrada asteca, foi dominada pelos europeus e a população originária drasticamente reduzida. Séculos depois, entre 1846-1848 a guerra entre México e Estados Unidos provocou a perda de grande parte do território norte do México para os Estados Unidos, e o tratado de Guadalupe Hidalgo celebrado em 1848 fez com que milhares de mexicanos e mexicanas se transformassem repentinamente cidadãos e cidadãs estadunidenses. Surge então a fronteira, o “terceiro espaço”, que, como conceituado por Bhabha (2007), projeta a noção da diferença cultural que se desenvolve no contexto histórico de lutas e resistências.     

The U.S.-Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds. And before a scab forms it hemorrhages again, the lifeblood of two worlds merging to form a third country, a border culture.

 

[A fronteira entre Estados Unidos e México es una herida abierta onde o terceiro mundo é arranhado pelo primeiro e sangra. E antes de que se forme uma crosta, volta a sangrar novamente, a força vital de dois mundos que se fundem para formar um terceiro país, uma cultura de fronteira. (Anzaldúa, 1987, p. 3, tradução nossa)].

 

A ferida aberta é uma ferida colonial que produz e categoriza o sujeito subalterno e aponta, com uma linha divisória, os lugares que são ou não são seguros (Anzaldúa, 1987). São fronteiras que se estendem para além da geopolítica, pois acompanham seu povo e sua cultura. Num país em que a terra e o indivíduo mantêm uma íntima relação de sobrevivência, fixar limites é separar o sujeito de seu lar, é separá-lo de sua própria identidade.

 

A mulher fronteiriça

 

Após destacar as tensões que compõem a história da fronteira México-Estados Unidos, a autora volta sua análise para a mulher que habita esse local. Anzaldúa se concentra nas experiências dessas mulheres em relação ao trabalho, à cultura, à família e à religiosidade. Sua investigação deixa evidente a existência de papéis pré-definidos para cada grupo. Da mulher pobre à professora universitária, cada uma vive dentro de um limite definido, conduzindo-nos à crítica de como organizamos as diferentes estruturas de poder a partir das diferentes experiências. A autora consegue viver a experiência de diversas culturas ao mesmo tempo e descrever o poder que existe em cada uma delas.

It’s an interesting path, one that continually slips in and out of the white, the Catholic, the Mexican, the indigenous, the instincts. (…) It is a path of knowledge – one of knowing (and of learning) the history of oppression of our raza. It is a way of balancing, at mitigating duality.

 

[É um caminho interessante, que continuamente desliza para dentro e para fora do branco, do católico, do mexicano, do indígena, dos instintos. (…) É um caminho de conhecimento – de saber (e de aprender) a história de opressão de nossa raza. É uma forma de equilibrar, de mitigar a dualidade]. (Anzaldúa, 1987, p. 19, tradução nossa).

 

Como uma mulher fragmentada — pela língua, cultura, gênero, classe social, crenças, sexualidade — ela se insere em debates que envolvem a condição da mulher que segue marcada por diferentes grupos sociais. A autora tem a legitimidade de apontar determinados aspectos de opressão que não são facilmente detectados por outros sujeitos femininos. Quanto mais próxima está a mulher da fronteira, mais visíveis ficam as opressões. Ela desarticula o conceito hegemônico ocidental de “mulher” para apontar as diferenças coloniais e experienciais que seguem estruturando identidades. A autora busca incluir não só a chicana em seus estudos, mas a partir de sua experiência abranger outras mulheres que se identifiquem com o local de hibridez.

La mestiza tem que se mover constantemente para fora das formações cristalizadas — do hábito; para fora do pensamento convergente, do raciocínio analítico que tende a usar a racionalidade em direção a um objetivo único (um modo ocidental), para um pensamento divergente, caracterizado por um movimento que se afasta de padrões e objetivos estabelecidos, rumo a uma perspectiva mais ampla, que inclui em vez de excluir. (Anzaldúa, 2005, p. 706). 

 

Neste sentido, a autora nos convida a repensar as diferenças que se constroem dentro das bordas geográficas, dos intercâmbios culturais. Encontrar caminhos para articular o trânsito de vozes e conhecimento. 

A uma determinada altura, no nosso caminho rumo a uma nova consciência, teremos que deixar a margem oposta, com o corte entre os dois combatentes mortais cicatrizado de alguma forma, a fim de que estejamos nas duas margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar tudo com olhos de serpente e de águia. (Anzaldúa, 2005, p. 706).

 

Sua finalidade é propor o alargamento de nossa compreensão em relação às histórias que carregam os sujeitos femininos e as identidades que as integram para a formulação e edificação dos saberes. Identidade que não é branca, hispânica, negra, indígena, mas heterogênea. 

 

A tomada de consciência – nascimento da New Mestiza

 

Após levantar o debate sobre o significado da fronteira na geografia política territorial e indicar a experiência que compõe a identidade da mulher fronteiriça, Anzaldúa soma ao seu discurso o capital simbólico que se encontra nas entidades culturais de seus antepassados. Para romper com as hegemonias do conhecimento do cânone ocidental, a autora revisita as histórias de seus ascendentes astecas que, depois da invasão espanhola, compuseram uma identidade híbrida com traços mexicanos e espanhóis. Será a partir deste momento que a leitura vai desvendando o processo que chamamos de “tomada de consciência”, em que Anzaldúa (2005) percebe a necessidade de romper com as dualidades que aprisionam a identidade chicana ao ter que escolher entre uma ou outra cultura. O viver entre fronteiras é, segundo Anzaldúa (1987), uma batalha que nunca termina, que envolve a luta constante pela identidade cultural. A inquietude psíquica sempre está presente e sempre se depara com a mesma pergunta, “com o dilema das raças híbridas: a que coletividade pertence a filha de uma mãe de pele escura?” (Anzaldúa, 2005, p. 705).  

A “tomada de consciência”, ou seja, o nascimento da identidade mestiça, se torna possível pelas lentes da poesia. Anzaldúa assume a poesia como uma estratégia narrativa a fim de aproximar sua comunidade dos laços que a mantém enquanto povo mestiço. Ela recorda (Anzaldúa, 1987, p. 63) o impacto que a poesia bilíngue teve em sua comunidade em meados dos anos sessenta quando houve a publicação de “I Am Joaquín” [Eu sou Joaquín] de Rodolfo Gonzales. A poesia era uma exposição do sentimento e afirmação da experiência vivida. Cada pessoa que a declamava, mesmo que individualmente, sentia as palavras se aproximarem do sentimento mais profundo que carregava. Para Anzaldúa, essa obra fez com que a população experimentasse pela primeira vez um sentimento de coletividade e de pertença a uma comunidade. E este sentimento, o sentimento de “La raza unida” foi o nome que deu aporte para os movimentos chicanos que se intensificaram nos anos seguintes nos Estados Unidos. Entender o processo que conduz ao sentimento de união de uma comunidade foi fundamental para que Anzaldúa pudesse encontrar na “New Mestiza” uma identidade que expressasse o sentimento de estar na fronteira. 

A “New Mestiza” nasce no envolvimento poético da natureza textual de sua narrativa e a autora nos transforma em cúmplices metafóricos/as de seu surgimento. Frente a um espelho, num processo simbiótico de ver a outra metade de si mesma, ela consegue observar o que compõe a sua formação cultural. Embalada pela poesia de suas palavras, a autora enxerga sua infância, o rosto de seus familiares, o passado de seu povo e a identificação de sua alma à ancestralidade que carrega.

And there in the black, obsidian mirror of the Nahuas is yet another face, a stranger’s face. Simultáneamente me miraba la cara desde distintos ángulos. Y mi cara, como la realidad, tenía un carácter multiplice.

 

[E ali no espelho negro de obsidiana dos Nahuas existe mais um rosto, o rosto de uma estranha. Simultaneamente olhava para meu rosto de distintos ângulos. E meu rosto, como a realidade, tinha um caráter múltiplo] (Anzaldúa, 1987, p. 44, tradução nossa). 

 

Inicia-se assim um processo metaforizado de “tomada de consciência”, um diálogo com o símbolo ambivalente, que não produz apenas imagens, mas proporciona a visão da própria alma. Ela percebe o fosso entre dois mundos, um vazio que só pode ser preenchido com uma nova consciência. E assim, ela realiza, num ato simbólico de passagem, o despertar da consciência da “New Mestiza.

The gaping mouth slit heart from mind. Between the two eyes in her head, the tongueless magical eye and the loquacious rational eye, was la rajadura, the abyss that not bridge could span. Separated, they could not visit each other and each was too far away to hear what the other was saying. Silence rose like a river and could not be held back, it flooded and drowned everything.

 

[A boca aberta separou o coração da mente. Entre os dois olhos em sua cabeça, o olho mágico sem língua e o olho racional loquaz, estava la rajadura, o abismo que nenhuma ponte poderia transpor. Separados, eles não podiam se visitar e cada um estava muito longe para ouvir o que o outro dizia. O silêncio cresceu como um rio e não pôde ser contido, inundou e afogou tudo]. (Anzaldúa, 1987, p. 45, tradução nossa). 

 

Anzaldúa deixa que o poetizar de suas palavras alcance o que ela quer transmitir. Dois olhos que enxergam de formas diferentes: um desses olhos, sem a língua que o especifique aos olhos ocidentais, como os chicanos e chicanas que utilizam diversos dialetos e diferentes línguas para se comunicarem; o outro, o olho “racional” ocidentalizado, aquele que ocupa as categorias do conhecimento acadêmico e científico. Estão separados por uma rachadura que os mantêm distantes. Condicionados ao silêncio, esse pode ser rompido com o nascimento de uma nova consciência, a consciência da “New Mestiza”. Com ela podemos transpor fronteiras, construir pontes, gerar uma forma mais maleável e rica de cultura, sem negar uma ou outra identidade. Ser híbrido, que nasce “a partir dessa “transpolinização” racial, ideológica, cultural e biológica” (Anzaldúa, 2005, p. 704). Uma consciência que está em constante formação e transformação e que pretende reconstruir a história, equilibrar as culturas, renovar e ampliar as identidades. 

 

Referências Bibliográficas

 

Obras de Gloria Anzaldúa

 

Anzaldúa, G. E. (1987). Borderlands/La Frontera: The new mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books.

 

_________. et al (1984). This Bridge Called My Back, Writings by radical women of color. New York: Kitchen Table/Women color press.

 

_________. (1990). Making Face, Making Soul/Haciendo Caras: Creative and Critical Perspectives by Feminists-of-Color. San Francisco: Aunt Lute Books. 

 

_________. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Tradução: Édna M. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v.8, n. 1, p. 229-236. 

 

_________. (2005). La consciencia de la mestiza/Rumo a uma nova consciência. Tradução: Ana C. A. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v. 13, n. 3, p. 704-719, set-dez.

 

_________.(2009). Como domar uma língua selvagem: Gloria Anzaldúa. Tradução: Joana P. P.; Karla S.; Viviane V. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: difusão da língua portuguesa, Niterói, n. 39, p. 305-318, 2º sem.

 

_________. (2016). Borderlands/La Frontera: La nueva mestiza. Tradução: Carmen V. Madrid, España: Capitán Swing libros. 

 

_________. (2021). A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios. Tradução: Tatiana N. Rio de Janeiro, Brasil: A bolha editora.

BHABHA, H. K (2007). O local da cultura. Tradução: Myriam Á. et al. 4. reimp. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 

 

Bibliografia secundária

 

Alarcon, N (1984). Chicana Feminist Literature: A Re-Vision Through Malintzin/or Malintzin: Putting the Flesh Back on the Object. In: This Bridge Called My Back, Writings by radical women of color. Ed Cherríe Moraga and Gloria Anzaldúa, 182-189. New York: Kitchen Table/Women color press.     

 

Costa, C. L.; Ávila, E. (2005). Gloria Anzaldúa, a consciência mestiça e o feminismo da diferença. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, v. 13, n° 3, p. 691-703.

 

_________. (2004). O silêncio da tradução. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, n° 12, p. 13-14.  

 

Ikas, K. R. (2001). Chicana Ways; Conversations with Ten Chicana Writers. Reno, University, Nevada Press. 

 

Meloni, C. (2012). Las fronteras del feminismo: Teorías nómadas, mestizas y postmodernas. Madrid, Espanha: Editora fundamentos.  

 

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