Elisabeth da Bohemia

(1618 – 1680)

Por Katarina Ribeiro Peixoto, pesquisadora em História da Filosofia no Início do Período Moderno (Early Modern Philosophy), vinculada ao Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – Lattes

PDF – Elisabeth da Bohemia

Princesa do Palatinato. The British Museum. n.d.
Crispijn van Queborn

Variações no nome: Elisabeth von der Pfalz; Elisabeth von Herford; Princess of The Palatinate; Elisabeth Simmern Van Pallandt; Princesa do Palatinato e Abadessa de Herford. Nascida em Heidelberg, em 26 de dezembro de 1618 e falecida em Herford, em 08 de fevereiro de 1680.

Elisabeth da Bohemia é uma filósofa do início do Período Moderno. Nascida em família real e calvinista, afetada pelos conflitos religiosos e políticos que conflagram na Europa nesse período, Elisabeth compartilhou cartas com o círculo intelectual vinculado à sua família e ao ambiente de Haia, uma das cidades em que habitou. O traço filosófico de seu pensamento aparece na Correspondência que manteve com René Descartes. Ela passou a ser reconhecida como filósofa há poucos anos, graças ao trabalho de algumas filósofas e historiadoras contemporâneas da filosofia – especialmente Lisa Shapiro, Sabrina Ebbersmeyer e Lilli Alanen – que se dedicaram a estudar o legado de Elisabeth, bem como à tarefa de recuperação das mulheres na História da Filosofia. Elisabeth da Bohemia manteve com René Descartes uma correspondência longeva, entre 1643 e 1649, que foi chamada por Antonia Lolordo de Oitavas Objeções e Respostas (Lolordo, 2019, p. 69). Descartes dedica a Elisabeth sua obra de maturidade metafísica, Princípios da Filosofia Primeira (1644), e redige o Tratado das Paixões da Alma (1649) como resultado inconteste da busca por respostas consistentes às questões oferecidas por ela após sua leitura das Meditações Metafísicas (1641). Embora pudesse parecer, esta não é uma informação secundária, posto que Paixões da Alma não existiria sem a interlocução com Elisabeth – e, quanto a isso, não há discussão na literatura. A dedicatória ocupa a troca epistolar e marca a virada prática, de ordem conceitual, que lhe é constitutiva. Elisabeth da Bohemia é possivelmente a única expressão filosófica que realmente influencia Descartes, na troca epistolar.

Vida e Formação

Elisabeth recebeu formação característica da alta nobreza e se destacou, entre seus doze irmãos (sendo ela a terceira), como “a grega”, dado o seu interesse em ciências e na filosofia grega clássica. Assumiu funções de dirigente do legado familiar e de liderança política, defendendo minorias religiosas tomadas como alvo das intolerâncias clericais da época, como Quakers e Labadistas. Formou-se nos anos em que parte da família se exilou em Haia, e desenvolveu intensa interlocução com um ciclo intelectual ativo e dinâmico na Holanda. Sua expressão filosófica ocorre de maneira inconteste na interlocução com Descartes, após o estudo das Meditações Metafísicas (1641), e em função de um quadro de doença. Elisabeth e Descartes se conheceram em Haia e se encontraram regularmente entre os anos de 1643 e 1646, quando ela se viu obrigada a deixar a Holanda. Algumas de suas cartas foram perdidas; a extensão da correspondência disponível compreende 59 cartas, sendo 33 de Descartes para Elisabeth e 26 cartas da filósofa ao filósofo (Ebbersmeyer 2020, p. 4). Neste verbete, a interlocução filosófica de Elisabeth com Descartes foi priorizada. A discussão sobre o círculo de Haia ocupou ao menos 2 livros, sobre os quais se pode informar melhor no verbete de Ebbersmeyer.

O estudo das Cartas de Descartes a Elisabeth ocupou a literatura, ao passo que a fortuna da contribuição de Elisabeth foi soterrada pela historiografia. Essa negligência intelectual merece registro, visto que as cartas de Elisabeth foram descobertas no Século XIX e publicadas pela primeira vez em 1876 (Ebbersmeyer 2020, p. 4). O fato de que Elisabeth tenha sido ignorada pela historiografia explicita a precariedade a que o viés pode condenar uma narrativa, e torna o estudo sobre Elisabeth da Bohemia difícil. Como se sabe, de 1876 para cá a história do racionalismo moderno levou muito a sério as Respostas de Descartes a Elisabeth, sobretudo quando foram estudados os problemas da interação entre mente e corpo, da união substancial e as concepções de movimento. Assim, uma relevante literatura resultou do estudo de respostas a questões ignoradas.

Somente a partir da década de noventa do Século XX, historiadoras da filosofia começaram a levar a sério que Descartes não estava em um solilóquio diante de Elisabeth. Em um período de intensa troca epistolar, no qual as cartas veicularam larga medida a nova filosofia (tanto do racionalismo como do empirismo), não era comum, estranhamente, a mudança de posições. Este não foi o caso do impacto que as questões de Elisabeth causaram em Descartes e, por isso, a literatura sobre as Respostas de Descartes à filósofa configura um caso paradigmático do viés misógino que contaminou a história da filosofia, desafiando a sua seriedade e rigor. Isto ficará demonstrado a seguir.

Temas e Conceitos

1. Explorando o que não está dado: a filosofia de Elisabeth

Elisabeth não desenvolveu conceitos nem escreveu livros ou poemas. O seu legado intelectual está nas cartas que trocou e na história do círculo intelectual de Haia. Entretanto, o olhar atencioso para a troca epistolar entre ela e René Descartes reconhece nela uma expressão filosófica própria. E o fato de Elisabeth da Bohemia ter sido a única interlocutora que levou Descartes a, sinceramente, dedicar-lhe uma obra, Princípios da Filosofia, trabalho de maturidade metafísica (e não como recurso irônico semelhante àquele da apresentação das Meditações Metafísicas ou nos comentários sardônicos da abertura do Discurso do Método), bem como a fazer um texto no qual busca enfrentar a descoberta e as interpelações da Princesa às implicações de seu método, não é apenas o que nos deve chamar a atenção. Elisabeth da Bohemia é uma filósofa com envergadura própria embora não represente uma escola de pensamento nem seja uma cientista. A sua questão, porém, revela um achado: uma dificuldade de natureza conceitual das implicações práticas do cartesianismo. Ao longo da troca epistolar, na medida em que o diálogo se torna uma conversa entre pares – e não um aconselhamento de mestre a discípula ou aluna –, os temas fundamentais do pensamento de Elisabeth tornam-se mais claros: a origem da ação voluntária, a natureza ambivalente das paixões da alma e o exercício da liberdade como generosidade.

1.1 O “achado” de Elisabeth da Bohemia: qual a natureza das ações voluntárias nas Meditações?

O primeiro tema a ser explorado é o “achado” de Elisabeth de uma dificuldade nas implicações práticas do método cartesiano. Isso se torna claro já na primeira carta que origina a troca epistolar. Há ao menos duas etapas, até o momento identificadas, na Correspondência: a primeira se inicia em 6 de maio de 1643 e a segunda etapa se inicia em agosto de 1645, quando a dedicatória dos Princípios começa a ser discutida. Elisabeth expressa uma posição cartesiana, na medida em que oferece a Descartes duas questões derivadas do seu projeto fundacionalista (Lennon 2011, p. 456) tal como apresentado nas Meditações. Por um lado, não é falso dizer que Elisabeth oferece duas questões que podem ser traduzidas assim: “Qual a origem da vontade?” e “Qual o critério moral para as minhas ações?”. Por outro lado, proceder assim pode acarretar um empobrecimento analítico, quando não uma perda conceitual, dada a ausência de um contexto em que a participação dos interlocutores é considerada. E, se a história da filosofia não pode ser reduzida ao que os filósofos disseram, tampouco se pode pretender fazê-la recorrendo a uma única tecnologia argumentativa. O primeiro tema que Elisabeth da Bohemia introduz é o do modo como podemos entender a origem das ações voluntárias sob o dualismo substancial (Ebbersmeyer 2020, p. 5):

“O Senhor poderia por favor me responder como a alma de um ser humano (sendo apenas uma substância pensante) pode determinar os espíritos corpóreos a fim de levar a cabo ações voluntárias. Pois parece que toda determinação do movimento é feita ou pelo impulso sobre a coisa movida ou [o movimento] é impulsionado por aquilo que a move ou, ainda, por qualidades particulares e formas de superfícies da última. O contato físico é requerido para as primeiras duas condições, a extensão, para a terceira. Você exclui inteiramente uma da noção que tem da alma, e as outras parecem incompatíveis com uma coisa imaterial”. (16 de maio de 1643, ATIII, 661, p. 62)

Na literatura do século passado, o sentido dessa questão foi, quando mencionado, posto a serviço do esclarecimento do programa de Descartes. Quem teve a oportunidade de entrar em contato com a filosofia cartesiana e com a literatura sabe que as Respostas de Descartes a Elisabeth alimentaram discussões, livros, dissertações e teses, sobre “noções primitivas”, interação entre mente e corpo e dualismo substancial. É como se a pergunta de Elisabeth não apenas fosse irrelevante (ao ponto de não merecer atenção), como alheia ao que Descartes respondeu. De fato, o que se passou é que, na primeira etapa da correspondência, Descartes revelou-se alheio a essa questão e Elisabeth dedicou-se a aproveitar todas as respostas que o filósofo deu, mesmo quando não respondeu à dificuldade por ela apresentada. Para Lisa Shapiro, a primeira filósofa a investigar o pensamento da própria Elisabeth, a questão da filósofa está voltada ao problema da união entre mente e corpo. A partir da primeira carta, a Princesa da Bohemia teria deixado claro que o que está em jogo é como alguma coisa imaterial e não extensa pode mover algo material e extenso. Shapiro identifica a posição filosófica própria de Elisabeth como nem materialista nem dualista, mas voltada a “encontrar um caminho de respeito da autonomia do pensamento sem negar que essa faculdade da razão é em algum modo especialmente dependente de nossa condição corporificada (Shapiro 1999, p. 504)”. Para Sabrina Ebbersmeyer, a questão feita por Elisabeth é esta: “como se pode abordar o problema da interação sob as condições do dualismo substancial cartesiano?” (Ebbersmeyer 2020, p. 5). O problema seria o da interação, e não o da inteligibilidade da relação entre corpo e mente, visto que Elisabeth alinha os pressupostos de sua primeira questão ao mecanicismo cartesiano, que admite o movimento dos corpos por impulso e pela qualidade ou forma ou superfície da coisa material.

Daniel Garber, na sua proposta de leitura da interação, reformula a questão de Elisabeth como um inquérito sobre a conceptibilidade da relação motriz entre alma e corpo, a partir da noção de movimento na metafísica cartesiana, especialmente no Tratado do Mundo. Antes de apresentar o seu ponto, entretanto, ele formula a questão assim: “Como é possível que uma substância imaterial, como a mente, possa concebivelmente agir sobre uma substância extensa como o corpo humano?” (Garber 2001, p. 170). O tratamento de Garber fornece uma perspectiva para Descartes responder de maneira consistente à questão de Elisabeth que, segundo ele, é uma questão sobre a inteligibilidade da interação; o fato de que Elisabeth não menciona a teoria cartesiana das ideias parece irrelevante nesta análise. Para Thomas Lennon, de maneira mais próxima ao que Elisabeth parece ter dito, a questão é a de como, por meio da volição, a mente é capaz de mover o corpo (Lennon 2011, p. 456). Seja como for, o que Elisabeth entendeu e o que ela pensa ser a questão da interação entre mente e corpo – e se e como esta é o caso – são questões que estão começando a ser investigadas na literatura.

O fato de, em mais de cem anos de descoberta das cartas, ter-se quatro leituras distintas da primeira questão de Elisabeth parece sugerir que a questão não é óbvia. De fato, a perspectiva de Elisabeth desempenha um papel importante no esclarecimento e na interpretação da sua pergunta. Pois ela não inaugura uma discussão doutrinária, ou um inquérito ontológico comum, ou de mesmo tipo daquele levado a cabo nas demais Objeções e Respostas. A dificuldade de Elisabeth é compreender, no domínio em que a explicação mecanicista não se aplica – visto que não há uma relação de impacto entre corpos em jogo –, o que explica a origem da ação voluntária. Esta é uma questão em acepção própria e não uma dúvida ou uma interpelação doutrinária, digamos, sobre a materialidade da mente ou das ideias (como Gassendi e Hobbes questionam, nas Segundas e Terceiras Objeções, por exemplo). Há algumas dificuldades suplementares que comprometem a pacificação da literatura quanto ao significado da questão oferecida a Descartes por Elisabeth. A origem das ações voluntárias, no modo como Elisabeth parece dirigir sua investigação, parece requerer uma teoria das ideias ou uma representação do objeto da vontade. Entretanto, ela não convoca uma teoria das ideias para questionar a origem da ação voluntária, nem na primeira carta, nem ao longo da correspondência. O seu “achado” é a identificação de um problema que Descartes levará mais de dois anos para reconhecer como tal: qual a relação entre minha consciência e as minhas ações voluntárias?

1.2 A natureza ambivalente das paixões da alma

A resposta de Descartes não satisfaz a Elisabeth, embora tenha alimentado a indústria de comentários internos ao Cartesianismo. É possível traduzir a questão de Elisabeth de várias maneiras. Em fins de maio de 1643, Descartes responde à filósofa com uma teoria das “noções primitivas”: haveria duas coisas a respeito da mente humana das quais todo o conhecimento que podemos ter de sua natureza dependeria: 1) ela pensa e 2) o fato de estar unida ao corpo faz com que possa agir sobre ele e vice-versa. A resposta de Descartes não satisfaz a Elisabeth, embora tenha alimentado a indústria de comentários internos ao Cartesianismo. É possível traduzir a questão de Elisabeth de várias maneiras. A ação do corpo sobre a mente não parece ser o problema que mobiliza Elisabeth, aos olhos de Descartes, mas como a mente tem o poder de mover o corpo. Então, a resposta se encaminha para o estabelecimento de distinções entre padrões a partir dos quais formamos o nosso conhecimento (AT, III, 665, p. 65). Cada padrão lastreia uma noção primitiva.

“Há apenas muito poucas dessas noções”, afirma Descartes. “Pois, depois das mais gerais – aquelas de ser, número, duração, etc. – as quais se aplicam a tudo o que podemos conceber, nós temos, para o corpo em particular, unicamente, a noção de extensão, da qual se seguem as noções de forma e movimento, e para a alma somente, temos unicamente a noção de pensamento, na qual estão incluídas as de percepções do entendimento e as inclinações da vontade, e, finalmente, para a alma e o corpo juntos, temos apenas a de sua união, da qual depende aquela que o poder da alma tem de mover o corpo e o corpo de agir sobre a alma, causando suas sensações e paixões”. (AT, III, 665, p. 65)

Salvo melhor juízo, aí está a primeira menção explícita de Descartes às paixões como de alguma maneira correlacionadas ou pertencentes ao mesmo domínio que as sensações. Ao fazê-lo, porém, Descartes define a paixão como o resultado de uma ação do corpo sobre a alma, demarcando, assim, um domínio do que Elisabeth deveria questionar e do que ela não teria entendido. É como se a filósofa tivesse, ao usar a expressão “espíritos corpóreos”, confundido os “padrões a partir dos quais se forma o conhecimento”, ao atribuir um modo – corpóreo – a um atributo – imaterial –, sugerindo uma interação não autorizada nas Meditações. A questão da razão pela qual Descartes não foi consistente com o próprio método ao responder a Elisabeth resta, entretanto, em aberto (para Garber, Descartes não teria sido condescendente, ao passo que para Shapiro, sim). Ele poderia ter respondido seguindo o caminho do sentido do movimento da ação sobre o corpo como originário e não lançar mão de “noções primitivas”, um expediente de aparência ad hoc.

A literatura secundária costuma passar da carta sobre as noções primitivas para a abordagem do “problema dos três círculos”. Este problema, que, na época, ocupava os filósofos e geômetras, foi enfrentado por Elisabeth. Aqui, a menção a esta resposta mal endereçada deve ser feita porque Elisabeth, em que pese Descartes tenha julgado que exigiu demais dela, ofereceu uma solução algébrica para o problema (Ebbersmeyer 2020, p. 6; Verbeek et.al. 2003, pp. 206-211). A). A solução, reconstruída por Verbeek, é levada a cabo indiretamente, visto que sua fonte originária foi perdida e o autor conta com a informação relativa à formação matemática da Princesa (Ebbersmeyer 220, p. 6). Com efeito, se ela respondeu e ofereceu uma solução algébrica para o problema da intersecção que faria as vezes da união como noção primitiva (o que, de resto, aniquilaria as dificuldades do dualismo substancial, no que concerne à possibilidade de interação, em um inquérito ontológico), isso é irrelevante diante do fato de que a sua questão não versa sobre a interação per se, mas sobre as paixões da alma.

Elisabeth introduz um adjetivo: ela menciona “espíritos corpóreos”. Se o uso deste adjetivo está, ou não, mal situado, é um problema que restou em aberto e que ainda ocupa a literatura; afinal, esta discussão se inscreve no programa metafísico racionalista e requer uma leitura do argumento da distinção real (AT, VII, 78) na Sexta Meditação. O argumento da distinção real é este: “Eu sei que tudo aquilo que concebo clara e distintamente é capaz de ser criado por Deus de maneira que corresponda exatamente ao meu entendimento disso. Portanto, o fato de que eu posso clara e distintamente entender uma coisa apartada da outra é o suficiente para me tornar certo de que as duas coisas são distintas, na medida em que ambas podem ser separadas, ao menos por Deus”. Este raciocínio abre caminhos de interpretação. A distinção entre mente e corpo é uma distinção entre o modo como os concebemos ou é uma distinção real, quer dizer, entre coisas distintas fora e independentemente do pensamento? Qual o sentido de “real”, aí empregado? O que é distinção? Essas são questões técnicas que a questão de Elisabeth suscita, e ainda está para ser feita uma reconstrução desse argumento de acordo com a sua perspectiva. O que parece ser relevante é que a questão de Elisabeth revela, ao menos até agosto de 1645, que há um grau de incomensurabilidade operando entre os interlocutores nesta primeira etapa da troca epistolar, o qual, não sem razão, levanta a suspeita da existência mesma de um diálogo filosófico em curso (Alanen 2004).

Na carta de 10 de junho de 1643, após ponderar sobre a teoria cartesiana das três noções e também sobre em que teria fracassado, ela insiste ao dizer que aguarda que ele lhe responda qual a “natureza de uma substância imaterial e dos modos de suas ações e paixões no corpo” (AT, III, 685, p. 8). E, em 01 de julho do mesmo ano, Elisabeth parece reformular, com ênfase epistêmica, a sua primeira questão, considerando e tirando proveito das noções primitivas:

“Eu também penso que os sentidos me mostram que a alma move o corpo, mas eles não me ensinam nada (não mais do que o entendimento e a imaginação) a respeito do modo como o fazem. Por esta razão, eu penso que há algumas propriedades da mente, as quais são desconhecidas por nós, que poderiam talvez inverter o que as suas Meditações Metafísicas me persuadiram por esta boa razão: a não-extensionalidade da mente. Esta dúvida parece ser encontrada na regra que você fornece lá, ao falar do verdadeiro e do falso, de que todo erro nos ocorre ao formar juízos a respeito daquilo que não percebemos bem o suficiente”. (AT, IV, 2-3, p. 72, minha ênfase)

A afirmação acima abre o caminho para o tratamento da natureza das paixões como uma questão mental e prática. Na carta de julho de 1644, Descartes envia a Elisabeth a dedicatória dos Princípios, a ela endereçada. E, em sua resposta, mais do que um gesto de gratidão, pode-se apreender a natureza prática de seu pensamento:

“Os pedantes vão dizer que você foi forçado a construir uma nova moralidade a fim de me tornar digna dela. Mas eu tomo esta moralidade como uma regra de minha vida, sentindo-me apenas no primeiro estágio do que você aprova lá, a vontade de informar meu entendimento e de seguir o bem que ele conhece. (…)” (AT, IV, 132, p. 83, minha ênfase)

Este agradecimento articula as duas etapas da troca epistolar. A primeira é aquela que Elisabeth chama de “regra de vida”, informar o entendimento, e a segunda, seguir o bem que ele conhece. É preciso, todavia, prestar atenção ao papel que a perspectiva de Elisabeth tem na articulação dessas duas etapas, para que o modo como ela concebe as paixões não se confunda com uma sensação. O fato é que somente após dois anos de troca epistolar Descartes leva a sério um dado que lhe foi informado pela filósofa já na primeira carta. Na carta de maio de 1645, Descartes diz que recebeu com surpresa as cartas de Pollot, na qual constava a informação, já explícita no fim da primeira carta, de Elisabeth estava doente há bastante tempo. A filósofa se despede assim, após elaborar a sua primeira questão: “Sabendo que você é o melhor médico para a minha alma, eu lhe exponho com bastante liberdade a fraqueza das especulações dela, e espero que, em observância ao juramento hipocrático, você venha a me suprir com remédios sem torná-las públicas, de modo que lhe peço discrição e que as guarde para si.” (AT, III, 662, p. 62, minhas ênfases)

Em junho de 1645 Descartes menciona que o principal contentamento depende apenas da própria pessoa (AT, IV, 224, p. 93). A discussão se segue com digressões sobre o estado de saúde de Elisabeth, até que Descartes, em 21 de julho de 1645, recomenda a leitura de A Vida Beata, de Sêneca. A presença do estoicismo latino (ou do neoestoicismo) no início do período moderno é incontroversa (Schliesser 2017; Sellars 2020) e, como o programa filosófico de Descartes não é prima facie de natureza moral, o filósofo pode ter considerado este um caminho possível de ajuda a sua amiga. Isso quer dizer que Descartes não estava, durante mais de dois anos de troca epistolar, atento ao escopo das implicações conceituais práticas de seu método, até ser convocado a fazê-lo, por Elisabeth. Pois, em 16 de agosto de 1645, a filosofia de Elisabeth começa a se manifestar em toda a sua clareza, quando ela responde à sugestão de Descartes:

“Ao examinar o livro que você me recomendou, encontrei algumas partes boas e sentenças bem concebidas para me dar um tema para uma meditação agradável, mas não para me instruir a respeito daquilo que pretende tratar. Pois elas são escritas sem método, e o autor faz outra coisa que aquela com a qual se compromete. Em vez de demonstrar o caminho mais curto para a verdadeira felicidade, ele se contenta em revelar que sua riqueza e luxúria não o impedem de alcançá-la. Isso sou obrigada a escrever para você, assim você não achará que tenho esta opinião por preguiça ou preconceito. Eu não peço senão que você continue a corrigir Sêneca. Eu o faço, não porque a sua maneira de raciocinar é a mais extraordinária, mas porque é a mais natural que encontrei e parece ensinar-me nada de novo, mas, em vez disso, permite-me tirar de minha mente os pedaços de conhecimento que ainda não apreendi”, (AT, IV, 269, minhas ênfases)

Após contrapor o seu tratamento das paixões àquele que atribui a Sêneca, recorrendo à moral provisória da Terceira Parte do Discurso do Método, Descartes introduz uma distinção. A busca da felicidade, segundo o filósofo, depende de uma certa indiferença dos eventos externos e dos pensamentos negativos. Livrar-se das paixões e dos apetites seria condição do exercício da racionalidade. Em 13 de setembro de 1645, Elisabeth pondera sobre o vínculo entre o conhecimento racional que teria de ser suficiente para a ação virtuosa e a perfectibilidade dessa ação. Se o que é requerido é um conhecimento ou um uso refletido da razão, quando não seria necessário ter uma “ciência infinita” para agir virtuosamente? Essa busca por um critério prático está na raiz da busca por uma definição de paixão, a partir da ponderação sobre o seu estatuto ambivalente, que Elisabeth faz ao final desta carta:

“Eu também gostaria de ver você definir as paixões, a fim de conhecê-las melhor. Pois aqueles que chamam as paixões perturbações da mente persuadiriam a mim que a força das paixões consiste apenas em sobrepujar e sujeitar a razão, caso a experiência não me mostrasse que há paixões que nos levam a ações racionais. Mas estou segura que o senhor lançará mais luz a esse respeito, quando explicar como a força das paixões as torna mais útil quando elas estão sujeitas à razão” (AT, IV, 290, minha ênfase).

1.3 Liberdade como generosidade

A descoberta de um eventual traço construtivo nas Paixões da Alma leva Elisabeth e Descartes ao diálogo sobre a relação entre vontade, paixão e liberdade. Agora, com as posições e perspectivas entre ambos demarcadas e reconhecidas, é possível e filosoficamente promissor olhar de volta para a primeira questão e encontrar o elo entre a natureza da vontade e a relação desta com as paixões e com o conhecimento e, com mais força, a eventual presença, no cartesianismo, de uma teoria da prudência, derivada ou incitada por Elisabeth. Além do lamento e da tristeza com os destinos de sua família, a filósofa da Bohemia está presa a afazeres que a impedem de exercer livremente os preceitos de aparência neoestoicas que requerem uma indiferença em relação ao mundo exterior. Elisabeth parece considerar que não é prático dissociar-se dos sentidos e da imaginação, porque em momento algum, apesar da envergadura de suas reflexões filosóficas, desloca-se de sua posição social e política. (AT, IV, 233). A discussão sobre a vontade é, além de uma discussão sobre a ação voluntária, um debate de fundo sobre a natureza e o horizonte da liberdade.

Nas Paixões da Alma, Descartes aborda de maneira consistente a relação entre paixão e razão, na linha aberta por Elisabeth. Ele o faz por meio da noção de generosidade. A generosidade é definida como o sentimento apaixonado de autoestima que deriva de nosso conhecimento de nossa vontade sob o controle de nossa vontade livre, quando decidimos agir de acordo com a razão (AT, XI, 446). A formulação de Descartes é ambígua e pede reflexão e pesquisa. A generosidade é originária ou é derivada da liberdade? Não há acordo algum na literatura a esse respeito (Shapiro 2011), esta é uma questão em aberto. Elisabeth lega esta questão, qua questão, do problema da objetividade moral no racionalismo do período moderno inicial.

2. Horizontes de pesquisa

Elisabeth da Bohemia abriu uma via de tratamento do projeto cartesiano no domínio prático, epistêmico e psicológico, sem precedentes.

2.1. Na filosofia do início do período moderno, que vai de Justus Lipsius (1547–1606) a Immanuel Kant (1724–1804) (Sellars 2020), a Correspondência de Elisabeth da Bohemia com René Descartes (1643-1649) oferece um manancial de temas e conceitos a serem pesquisados. Entre eles estão: a relação entre entendimento e vontade; a relação entre vontade e liberdade, na Quarta Meditação, a partir da leitura de Elisabeth; a relação entre mente e corpo e a constituição de um conceito de autoconsciência, no Racionalismo; a origem de uma concepção fenomenológica de consciência, no pensamento de Elisabeth; a intencionalidade em Elisabeth da Bohemia; a relação entre generosidade e liberdade; o conflito entre liberdade como indiferença e deliberação; a extensão da mente e as paixões, no Cartesianismo; a origem ou o nascimento da psicologia como terapêutica, no Cartesianismo; a relação entre o neoestoicismo ou o epicurismo, em Elisabeth da Bohemia. Também merece atenção a discussão sobre luxúria e moralidade na riqueza, um tema que contribui para a recusa de Elisabeth do programa ético de Sêneca. A concepção contextualista de moralidade e a teoria da prudência que a Princesa da Bohemia parece advogar.

2.2 Na filosofia do feminismo a Correspondência de Elisabeth e Descartes é um caso paradigmático de investigação. É incontornável o ceticismo diante de uma literatura voltada a analisar respostas a questões ignoradas, como a literatura cartesiana do Século XX. O ceticismo, neste caso, é uma posição feminista em acepção rigorosa.

2.3 No ativismo feminista, vale considerar o esforço que intelectuais mulheres ou intelectuais que não caem sob os critérios de ser homem, branco, cis e europeu, tiveram de empreender, na história, para serem levadaos a sério. E não apenas quando vivem sob condições materiais precárias. Como se pôde ler acima, Elisabeth da Bohemia, mesmo sob intensas privações, nunca foi pobre e não lhe faltou acesso ao que o seu intelecto buscou. Ainda assim, ela levou mais de dois anos respondendo, analisando, resolvendo problemas, sem que Descartes tenha se dado conta da perspectiva dela. E foi preciso um outro homem, Pollot, comunicar a Descartes acerca da condição de saúde de Elisabeth, que ela comunicara dois anos antes, para o diálogo de fato se tornar uma conversa entre pares.

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