Hipárquia de Maroneia

(330 a.C. – ?)

por Juliana Aggio,

professora associada do departamento de filosofia da Universidade Federal da Bahia – Lattes

PDF – Hipárquia de Maroneia

Pintura romana de primeiro século de nossa era retratando Hipárquia e Crates da Villa Farnesina, Museo delle Terme, Roma

A vida de Hipárquia

Nascida em 330 a.C., em Maroneia, na Trácia, como toda mulher, Hipárquia fora excluída do direito à voz e à cidadania em uma polis grega, mas soube fazer uso da parresia — coragem de falar o que se pensa em público — como uma arma filosófica e política. Seu nome, dizem alguns, por exemplo Irène Pereira (2015, p.12), significa “aquela que comanda [archô] o cavalo [hippos]”, o que nos remeteria, pela tradição grega, às Amazonas, mulheres guerreiras que andavam a cavalo e não temiam desafiar, em combate, os homens. O animal que lhe caberia, no entanto, não é a égua, mas sim a cadela, donde vem o termo kyôn/kynos que dá origem à terminologia filosófica cinismo (kynismos) e isso por conta não de sua atitude guerreira, mas por sua atitude filosófica canina ou cínica, que não deixa de ser também uma atitude guerreira por ter ela sido uma mulher que ousou filosofar. 

Hipárquia soube viver um modo de vida cínico, seguindo com austeridade os princípios de liberdade, desapego, autossuficiência (autarkeia) e contestação das normas e costumes, expondo seu próprio corpo sem pudor. Soube viver como uma cínica, isto é, uma cadela (kyôn/kynos), ressignificando um termo pejorativo quando atribuído a uma mulher. Uma cadela entre cachorros; e entre caninos não há hierarquia social nem inferiorização da fêmea. Talvez, por isso, tenha ousado viver como uma filósofa, e, por ter contestado as convenções de gênero, talvez tenha sido a primeira filósofa com atitudes feministas de que se tem conhecimento no ocidente. 

Hipárquia foi irmã de Metrocles, que foi aluno de Teofrasto, o peripatético. Envergonhado de ter soltado um peido durante as aulas com o peripatético, Metrocles decide por se deixar morrer de fome até que recebe uma visita de Crates, discípulo de Diógenes, o filósofo cínico. Crates come propositadamente um prato de tremoço antes da visita. Não lhe sendo possível convencer com as palavras de que é natural soltar e não reter os gases no ventre, Crates solta um peido e assim, cometendo da mesma “falta” que Metrocles, acaba por consolá-lo e convencê-lo com seu exemplo. A partir desse acontecimento, Metrocles adere à escola cínica e se torna um filósofo (DL, VI, 94). Será, então, através de seu irmão que Hipárquia conhece Crates, se apaixona, e resolve deixar a vida aristocrática e todos os seus pretendentes para viver com ele uma vida cínica. Tiveram, possivelmente, dois filhos: uma filha que não sabemos o nome e um filho de nome Pasicles. 

A obra de Hipárquia

São escassas as fontes sobre sua filosofia, raros testemunhos e quase nenhum comentário sobre o pouco do que se sabe de sua vida e pensamentos. Talvez não fosse assim se se tratasse de um homem filósofo, afinal, são inúmeros os testemunhos sobre pensadores que escreveram e mesmo sobre os que nada escreveram, como Sócrates ou, da própria filosofia cínica, como Diógenes de Sinope. 

A parca doxografia é a seguinte: Diógenes Laercio (VI, 80, 88-89 e 96-98 ), Suda, Iota, 517: verbete Hipparchia, e, kappa, 2341: verbete Crates; Poecile: pórtico no centro de Atenas. Cf. Clemente, Miscelâneas, IV, 19, 122; Musonio Rufo, 16, p. 70, 11-17 H (= Estobeo, iv, 22, 20); Epicteto, Diatribes, 3.22.76; Sexto Empírico, Esboços pirrônicos, 1.14.153 e 3.24.200; Simplicio, Comentário ao Manual de Epicteto, 32; Teodoreto, Cura das enfermidades gregas, XII, 49, 8-13; Clemente de Alexandria, Stromata, IV, XIX, 121, 6; Santo Agostinho, Réplica a Juliano (obra inacabada), IV, 43, e Cidade de Deus, XIV, 20; Antípatro de Sidon, Antologia Palatina, VII, 413; Apuleio, Floridas, 14; e Plutarco, Obras morais, Sobre a impossibilidade de viver aprazivelmente segundo Epicuro: 2, 1086f. 

Das fontes, utilizarei sobretudo a mais confiável: Vida e doutrina dos filósofos ilustres, de Diógenes Laércio (DL), que diz que Hipárquia teria escrito alguns ensaios e tratados filosóficos, tais quais: Hipóteses filosóficas (Philosophon hypotheseis), Epiqueremas (Epicheiremata, i.e., silogismos construídos a partir de definições explícitas): Silogismos incompletos ou de probabilidades, e Questões (Protaseis) para Teodoro de Cirene, o Ateu (DL, IV, 52; VI, 97) embora nenhum tenha sido preservado. Como disse Blondeau, “essas obras, infelizmente perdidas, possuem títulos clássicos que poderiam figurar no repertório de um lógico como Teofrasto ou o próprio Aristóteles” (2015, p. 76). É preciso, todavia, assinalar que as fontes são poucas também pelo fato de os cínicos, em geral, não terem cultivado a arte de escrever suas doutrinas, pois concebiam a filosofia como modo de vida cuja transmissão se fazia antes pela ação e pelo exemplo em agir filosoficamente do que pela escrita, leitura e memorização de preceitos. 

A filosofia canina

A filosofia cínica poderia ser denominada canina por aqueles que a seguem ousarem, como cães altivos e mordazes que não devem nada a ninguém, subverter a ordem social estabelecida como natural e desafiarem toda norma e moralidade. Os cínicos cultivavam a coragem, como uma de suas principais virtudes, por meio de uma disciplina (askêsis) austera que livrava a mente da servidão do dogmatismo, de perturbações morais e mesmo confusões filosóficas, bem como fortalecia o corpo para enfrentar as dores e adversidades da vida. Ao contrário de uma sociedade como a nossa, que aposta no adormecimento da dor e no hedonismo excessivo, os cínicos preconizavam nem evitar, nem aplacar as dores com medicamentos, mas enfrentá-las corajosamente, pois acreditavam que o enfrentamento da dor nos fortalece. Uma filosofia própria de quem vive como um animal, um cão mais propriamente, em matilha ou solitário, com o mínimo para sobreviver e assim exercer a maior liberdade que se poderia, bastar-se com o que se tem ao alcance das mãos e assim ser o mais autossuficiente possível e não estar submetido a padrões de comportamento restritivos ou repressivos, além de cultivar a coragem de falar em público, a parresia. 

Mesmo diante da autoridade de Alexandre, o Grande, Diógenes, o cão, lhe disse: “És poderoso demais para precisares de mim, e eu autossuficiente demais para precisar de ti”. Quando Alexandre se aproximou e lhe indagou o que, porventura, precisaria dele, Diógenes lhe respondeu com a franqueza mordaz que lhe convém: “saia da frente do sol” (DL, 6.38). Diógenes fala como um cão que morde, e a parresia é antes a palavra que morde do que a palavra que seduz e que se esforça por persuadir. O mote não é convencer, mas provocar, chocar, sacolejar, deslocar, deixar o outro não num lugar confortável da crença, mas no desconforto do desamparo. Não se trata de uma busca pela verdade que, depois de ser alcançada, deve ser demonstrada ou adornada com belas palavras para seduzir e convencer o discípulo, mas da desconstrução no corpo das verdades assumidas e naturalizadas, das convenções banalizadas, da tentativa de seguir uma moral que não faz sentido ou que antes é hipócrita e nos adoece. 

Diante da brevidade da vida, é preciso se livrar do apego ao passado e ao futuro, vivendo cada momento presente como se fosse único e cada dia como se fosse o último. Diógenes era chamado de efêmero (ephêmerios) por sua capacidade de viver apenas o aqui agora. A felicidade (eudaimonia), objetivo da filosofia canina, está na liberdade de depender minimamente de bens e de outrem: quanto menos eu tenho e quanto mais desapegado eu sou, mais tempo terei para me dedicar a mim mesmo e menos sofrerei se tiver menos a perder. Como disse Sêneca: “É preciso considerar [segundo Diógenes] quão menos doloroso é não ter nada a perder e é preciso compreender que o pobre terá menos a sofrer se tiver menos a perder” (Da tranquilidade da alma, VII, 2). Esse mundo, dizia Diógenes, é como um mercado em que o viajante sensato só compra o pouco que irá lhe suster em sua jornada. O verdadeiro poder está em ser autossuficiente e livre, e não em colecionar títulos, honrarias e bens. É simples ser feliz. É na simplicidade que está a felicidade. Mas para ser feliz é preciso remar contra a correnteza, distanciando-se da trajetória da maioria das pessoas. Esse despojamento como cerne da vida canina significava não ser escravo de seus desejos e prazeres; enfrentar com austeridade e determinação as dores físicas e psíquicas; não se submeter ao poder para cumprir demandas; não se inibir diante de poderosos; colocar a própria vida em risco para exprimir o que pensa, enfim, preceitos que norteiam o modo de vida filosófico de quem é capaz de viver como um cão. 

Viver de tal modo significava viver livre das imposições normativas e moralizantes demasiadamente humanas. Viver como um cão é viver em conformidade com a natureza, o que não significa viver uma vida bestial ou animal — no sentido pejorativo comumente atribuído a esses termos —, mas viver como um animal e como um ser que possui razão, sem dissociar a animalidade da racionalidade e colocar, como fez praticamente toda a tradição filosófica, a razão acima do que é dito animal: o corpo e suas necessidades elementares. Viver como um cão é viver de forma indistinta animalidade e racionalidade. Como diz Navia:

Os cães, ao menos os selvagens e os de rua, vivem em completo acordo com a natureza. Para eles, nem convenções, nem normas complicadas, nem etiquetas, nem costumes, nem o jeito mais decoroso de fazer as coisas, nem a distinção entre o certo e o errado têm significado algum. Pertencem a país nenhum, nunca selaram aliança a nenhuma bandeira, nem estão sujeitos a título ou propriedade alguma”. (2009, p. 167)

Diógenes dizia que aprendeu a viver bem observando um camundongo e, deveras, vivia como um cão (definição que ele mesmo se atribuía): satisfazia suas necessidades em público, comia carne crua, desafiava qualquer autoridade e mordia com a palavra. Sem casa (aoikos) e sem cidade (apolis), dizia ser um “cidadão do mundo” (DL 6.66), um cosmopolita (kosmopolitês) — termo possivelmente cunhado por Diógenes segundo Navia (2009, p.179) —, que habitava as ruas ou, feito um caracol, carregava sua casa, isto é, seu tonel. 

O resultado dessa prática filosófica canina é poder viver uma vida simples, despojada de bens, autossuficiente, e, portanto, livre. Filosofar como um cão ou fazer uma filosofia canina significava retirar a filosofia do Olimpo e vivê-la como ações que falam por si e não como discursos que se pretendem verdadeiros e capazes de conduzirem ações. O logos não é o protagonista que conduz a práxis e instaura um modo de ser (ethos), mas um auxiliar ou coadjuvante da práxis que, por sua vez, instaura um modo de ser filosófico. Dissociado de uma ação ou incoerente a um modo de conduta o logos era desprezado como erudição vazia. Assim, a filosofia cínica não encontrava assento na produção de discursos, mas se fazia vívida e presente no modo de agir e viver. Diógenes, como observa Luis Navia, “relutava em usar a linguagem discursiva para dar expressão a seu pensamento. Preferia mostrá-lo e exemplificá-lo através da ação e de gestos a dar um apanhado linguístico dele” (2009, p. 159).

Um casal canino: Hipárquia e Crates

A ousadia de abandonar uma família rica para viver com Crates, homem desprovido de dotes, rendeu a Hipárquia, de um lado, o exílio de uma vida sem posses, dotes, poder, mas, por outro, a libertou do que lhe fora destinado: cuidar da casa, dos filhos e do marido. Crates tenta dissuadir Hipárquia que, contrariando sua família, resolve partir e viver como uma cadela ao lado de seu companheiro cão. Um casal que rompe uma tradição de classe quando uma aristocrata resolve se casar com um homem desprovido de bens, e que subverte os costumes ao praticarem sexo em praça pública, segundo testemunhos do Apuleio e escritos do Cristianismo tardio (para tanto, indico o texto de Goulet-Caze (2005): Le cynisme ancien et la sexualité), tal qual os cães o fazem, seguindo os passos do mestre Diógenes que se masturbava em plena praça do mercado e dizia: “seria bom se, esfregando também o estômago, a fome passasse!” (DL 6.2.46). Ora, se podemos comer em público, por que não poderíamos nos masturbar em público? Afinal, a distinção público-privado serviria para quê? Por detrás desse questionamento nada trivial encontra-se o seguinte raciocínio: o privado não deveria existir, pois aquilo de que não há o que se envergonhar poderia ser feito, espontânea e naturalmente, em público. O ser humano deveria se comportar como é de sua natureza: um animal não domesticado, mas livre como os cães que habitam o mundo e fazem tudo às claras. Trata-se de uma filosofia que coloca em prática o preceito de Diógenes segundo o qual “tudo se deve fazer em público” (DL 6.2.69), ou seja, tudo deveria ser público, nada privado. Não há do que se envergonhar, esconder, dissimular. As quatro paredes servem para proteger e manter uma moral hipócrita. Como pontuado por Blondeau: “o pudor não faz parte da moral cínica, ele é uma emanação da hipocrisia social, que não resiste ao raciocínio de Diógenes como este aqui: aquilo que não é vergonhoso no privado não muda de natureza quando se torna público”. (2015, p. 82).

Ora, as convenções não servem senão para enfraquecer o espírito e distorcer o comportamento, pois que docilizam, domesticam e alimentam temores próprios aos pudores. A falta de pudor e a brutalidade do falar franco dos cínicos são mais libertadores do que o poder insidioso das convenções e das ideologias dominantes que se renova com a covardia. Franqueza e transparência são atitudes corajosas coerentes com uma vida em que não há nada a se temer e a se esconder. Tudo pode ser falado. Tudo pode ser mostrado. Tudo pode ser visto. O vergonhoso encoberta a fraqueza, a covardia, a debilidade, a vilania, o erro, o abominável. Ao contrário, a vida canina é uma vida crua e nua, vivida às claras e reluzente como a luz do dia.

Ademais, a separação público-privado se funda na diferenciação normativa e hierarquizada entre os sexos que ela contribuiu para manter, reproduzir e institucionalizar. Assim, a feminilidade se faz como antinomia ao espaço público destinado, por sua vez, à definição da cidadania e da masculinidade a ela atrelada, ver Eleni Varikas (2006). Como diz Roland Pfefferkorn (2015, pp. 22-3): “os papéis sociais de mãe e de esposa se justapõem a fim de legitimar o não acesso das mulheres ao espaço público que se torna, ao mesmo tempo, o espaço da cidadania e o espaço masculino por excelência […]. A transgressão de Hipárquia é radical”. Ora, Hipárquia desafia as normas vigentes com a exposição de sua sexualidade e sua coragem de tomar a palavra e argumentar em público. Ela escandaliza duplamente por ser uma mulher que não se submete ao desejo e decisões dos homens e por exercer a parresia cínica. Somente uma mulher filósofa, na Grécia antiga, poderia borrar radicalmente as fronteiras entre o privado, enquanto lugar destinado à mulher, e o público, enquanto lugar endereçado ao exercício masculino do poder de falar, pensar e comandar.

A despeito de sua capacidade de ousar, escandalizar e provocar fissuras na malha normativa, é impressionante a facilidade e a frequência com que atribuem sua existência filosófica à sua paixão por Crates. Infelizmente, ainda hoje a mulher continua sendo reconhecida sobretudo como mãe, irmã ou esposa de um homem. Com Hipárquia não foi diferente. Alguns dizem que sua nova existência filosófica foi determinada a partir da relação amorosa com Crates (Lethierry, 2015, p. 139), outros que ela abandonou a riqueza e optou pela liberdade que apenas Crates poderia lhe oferecer (idem, p. 159).

Casaram-se, é verdade, mas viveram uma vida distante dos padrões normativos que regiam o matrimônio grego. Eram, como denominou Crates, um casal canino (kynogamia) (Suda, Kappa, 2341). Trata-se de um casamento que rompe duas tradições: (i) o ato sexual é feito em público, desfazendo a distinção público-privado; e (ii) a mulher não cumpre sua função de esposa-mãe-governante da casa. Hipárquia definitivamente não cumpriu o lugar esperado de mulher recatada e do lar. 

Ademais, é de se presumir que o casamento não poderia ser sacramentado pelos cínicos, que desprezavam as regras morais tradicionais e prezavam a autossuficiência acima de tudo. Estimar a humanidade na perpetuação da espécie é tão pífio que mereceria uma gargalhada cínica. Como diz Diógenes na carta 47: “Quem confiar em nós [os cínicos] permanecerá solteiro; aqueles que não confiarem em nós criarão filhos. E se a espécie humana um dia deixar de existir, deve haver tantos motivos de arrependimento quanto poderia haver se moscas e vespas acabassem”. Como nos lembra Epicteto (Diatribes 3.22.67-76), uma vida casada pode nos desviar da vida filosófica, tornando-nos apegados a quem se ama e sem domínio de si, de seus prazeres e desejos, sobretudo com a chegada de filhos. Seguindo essa concepção, Crates, numa última tentativa de dissuadi-la a ser sua companheira, se posta diante de Hipárquia desprovido de posses e desnudo e diz: “Este é o noivo, aqui estão seus pertences; faça sua escolha conforme me vê; pois você não será minha ajudante, a menos que você compartilhe de minhas buscas” (DL 6.96). Também teria dito, segundo outro testemunho: “Ali está todo o meu material! E seus olhos podem julgar a minha beleza. Tome um bom conselho, para que mais tarde eu não a encontre reclamando de seu lote” (Apuleio, 1909, posição 160 no E-book kindle). A determinação de Hipárquia, por sua vez, de deixar o conforto da vida aristocrática para viver uma vida de austeridade canina, bem como usar roupas masculinas ou as mesmas que as dos filósofos cínicos (descalça, com um manto e um cajado), também é testemunhada por Antípatro, segundo o qual ela teria dito: 

Eu, Hipárquia, não seguirei os hábitos de seu sexo, mas com coragem viril, os de cães fortes. Não me agradam a jóia sobre o manto nem as amarras para os meus pés, nem lenços de cabeça perfumados; antes com um cajado, descalça e quaisquer coberturas sobre meus membros, e solo duro em vez de uma cama, o meu nome será maior do que Atalanta: pois a sabedoria é melhor do que a corrida de montanha”. (Antípatro, 2016, posição 795 no E-book kindle)

A escolha de Hipárquia

De acordo com Diógenes Laercio, num banquete de Lisímaco, com atitude filosófica e feminista, Hipárquia refuta o ateísta Teodoro com as seguintes palavras: 

Qualquer ação que não seja considerada errada se feita por Teodoro, tampouco seria considerada errada se feita por Hipárquia. Teodoro não faz nada de errado quando se ataca; logo, Hipárquia não faz nada de errado quando ataca Teodoro. Este não teve reposta para argumentar, mas procurou tirar-lhe a roupa; Hipárquia não demonstrou o menor espanto ou perturbação, como haveria feito outra mulher. E quando Teodoro lhe disse: ‘É esta quem abandonou a lançadeira junto ao tear?’ Hipárquia respondeu: ‘Fui eu, Teodoro, mas acreditas que tomei uma decisão errada se dediquei à minha educação o tempo que teria dedicado ao tear?’“. (DL 6.7.97-98).

O que vemos acima é a afirmação de uma mulher como filósofa diante de um homem que não consegue contra-argumentar, mas que preferiu tentar humilhá-la ao procurar lhe despir em público. Embora seja moralmente humilhante ser despida em público, para quem pratica a falta de vergonha (anaideia) e faz sexo em praça pública, ser despida ou se despir em público não seria exatamente uma humilhação: eis a liberdade diante da prisão dos costumes e da moral. O ato agressivo não teve o efeito que Teodoro desejava e a reação de Hipárquia foi seu exemplo: um gesto corporal de permanecer intacta e sóbria diante da provocação. A filosofia canina fala, sobretudo, pelos exemplos e ações corporais. 

Em seguida, outra estratégia opressiva é utilizada pelo homem ferido: ele lança uma pergunta indireta, para que todos do banquete ouçam, também procurando humilhar Hipárquia porque esta não teria, enquanto mulher, cumprido a sua função social de se dedicar ao tear. Esta aqui, diz Teodoro em alto e bom som apontando a Hipárquia, é quem abandonou o tear, portanto, uma mulher desgarrada, depravada, rebelde e que deveria, pelos bons costumes, ser punida e não estar aqui num banquete de homens atacando um conviva respeitado como ele. Nesse momento em que Teodoro insiste em retirar o direito à palavra e à argumentação de Hipárquia, está operando, como bem observou Blondeau (2015, p. 77), o que Bárbara Cassin chamou de “exclusão transcendental”, ou seja, a acusação de non-sense que desqualifica o outro que difere da lógica clássica e, portanto, do masculino operante. 

A resposta de Hipárquia foi exemplar: ao invés de responder procurando se defender, ela, primeiramente, contra-argumentou na forma silogística, em seguida, fez uso do exemplo corporal de não reação à provocação como contra-argumento para, enfim, na forma de uma pergunta, afirmar sua liberdade de escolha em dedicar seu tempo à filosofia apesar das interdições sexistas de sua época. Foram três as maneiras de argumentar utilizadas pela filósofa: a forma do silogismo, a forma do exemplo físico, e a forma do questionamento. Apesar de sofrer as opressões sexistas de sua época por ser mulher, ela soube reivindicar seu lugar de filósofa formulando um exemplo clássico da retórica cínica: um silogismo deliberadamente cômico que trata de um assunto sério (spoudogeloion). A primeira premissa do silogismo é “Nenhuma ação seria considerada errada se feita por Teodoro ou por Hipárquia”; a segunda premissa é “Teodoro não faz nada de errado quando se ataca”; conclusão: “logo, Hipárquia não faz nada de errado quando ataca Teodoro”. Silogisticamente, ela prepara o terreno para mais um ataque filosófico.

Em seguida, Hipárquia lança o seu xeque-mate com sua resposta-pergunta a Teodoro: “acreditas que tomei uma decisão errada se dediquei à minha educação o tempo que teria dedicado ao tear?” Em outras palavras, ela se afirmou como filósofa ao dizer: eu dediquei ao estudo todo o tempo que, por conta de meu sexo, eu deveria ter dedicado ao tear. Todavia, o cinismo se caracteriza por uma filosofia que valoriza a potência de agir em oposição às normas e aos deveres. No lugar do você pode fazer o que deve fazer, trata-se de dizer: você pode mais do que não te permitem fazer. No caso das mulheres, caberia bem dizer como que palavras emitidas por Hipárquia: eu posso me autorizar a estudar e desafiar intelectualmente os homens.

Como interpretou Michèle Le Dœuff (2008), a metodologia argumentativa de Hipárquia foi genial, porque ao invés de procurar mostrar que a mulher é oprimida e que deveria ter a liberdade de cumprir outra função do que a que lhe fora socialmente designada, ela coloca uma questão filosófica: a escolha sobre o uso do tempo de vida. A pergunta não é se ela poderia ou não ter escolhido se dedicar ao estudo, mas se foi uma escolha acertada ou não ter se dedicado ao estudo, e, no frigir dos ovos, se ela não seria livre para escolher como usar seu tempo de vida, a despeito das determinações sexistas. Aliás, o belo título da obra de Le Dœuff, L’Étude et le Rouet. Des femmes, de la philosophie, etc [O Estudo e o Tear. As mulheres, a filosofia, etc] (2008), faz referência a esse episódio. Desde a disputa de Atena e Aracne, uma jovem lídia com habilidade extraordinária na arte de bordar, em que a deusa, invejosa de sua fama e vendo que perderia a competição, a transforma em aranha, donde se deriva o termo aracnídeo, até a conhecida espera de Penélope pelo regresso de seu amado Odisseu, que bordava e desfazia seu bordado durante a noite para despistar os pretendentes que aguardavam a sua decisão a ser tomada ao fim do bordado pela escolha de um novo marido, o tear era uma arte ao encargo das mulheres na Grécia Antiga. Hipárquia, costureira de ideias e palavras, soube fazer do tear o seu estudo, da lançadeira os seus pensamentos filosóficos, e assim teceu sua filosofia, a despeito de toda opressão sexista de seu tempo e não obstante o apagamento sofrido por conta de uma história que não soube lhe narrar.

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