Querelle des Femmes: Mapeamento em Português

Por Luciana Calado Deplagne

Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba, coordenadora do Grupo Christine de Pizan(CNPq), membra do GT da ANPOLL “Mulher e Literatura” e da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM)- Lattes

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Imagem: British Library. Harley 4431, f.259v. (1413)

Introduzindo a questão

A querelle des femmes é um debate literário e político sobre a natureza feminina, a representação das mulheres nos discursos oficiais e a diferença entre os sexos, iniciado no limiar do século XV, na França, e que se estendeu por aproximadamente quatro séculos. Trata-se de uma querela literária, envolvendo vários escritores e escritoras que se ocuparam da elaboração de argumentos para defender ou para criticar o sexo feminino, registrados em manuscritos, livros, panfletos, epístolas etc. É designada “querela” pelo fato de as obras envolvidas atuarem em resposta a uma obra anterior cujo teor apresentava propósitos misóginos ou, ao contrário, apologia às mulheres.

O debate literário era também político, na medida em que atuava criticamente na divulgação de pensamentos avaliativos acerca da condição feminina e da política sexual em sua época. É possível identificar nestes debates discussões importantes na formação de uma consciência feminista[1] por parte de autoras e de alguns autores engajadas/os em denunciar as assimetrias hierárquicas entre os sexos, buscando identificar discursos fundantes da desigual estrutura societal no que diz respeito às relações de gênero. São diversos os temas abordados nesses debates, porém, as principais reflexões, que veremos posteriormente, podem ser identificadas em três eixos principais: a defesa do acesso feminino à educação; a releitura dos textos canônicos (incluindo a Bíblia e os mitos greco-latinos), a partir de uma perspectiva feminista; a busca pela construção de uma história das mulheres.  

A definição acima proposta ancora-se em contribuições multidisciplinares, formuladas a partir da história das mulheres, com os estudos das pesquisadoras Gerda Lerner (1993), Joan Kelly (1982), Maria Milagros Rivera-Garettas (1990), Nicole Pellegrin (2010); da Teologia feminista, com  Teresa Forcades (2011); da Crítica literária, com as pesquisas de Rosalind Brown-Grant (2003), Margarete Zimmermann (1999) e Éliane Viennot (2012), e da filosofia, com as reflexões da feminista Simone de Beauvoir (1949).

Sobre esse fenômeno, que se convencionou chamar querelle des femmes, é possível encontrar divergências entre especialistas em relação à periodização, às origens, aos limites espaciais, à terminologia e à própria formulação do seu significado. Dessa forma, a fim de apresentar um breve panorama sobre o fenômeno em questão, apontarei algumas das principais perspectivas sobre o assunto nos três tópicos a seguir: as origens da querelle des femmes, as filiações históricas e terminologias, e, por fim, algumas obras de autoras que participaram da “querela”.

  1. Origens

A Epístola ao Deus do Amor (1399), da escritora Christine de Pizan, pode ser considerada a obra impulsionadora da querelle des femmes. Trata-se de uma epístola de 860 versos dirigida ao Deus do Amor, na qual o eu-lírico descreve a mise-en-scène de um julgamento em uma “Cours d´Amour” (Tribunal para assuntos amorosos). O eu-lírico leva a julgamento queixas depositadas por várias mulheres de posições sociais diversas contra a misoginia de cavaleiros e de escudeiros que as difamam e desonram o sexo feminino. Cupido toma a palavra em defesa das mulheres, relembrando as regras do “Amor Cortês” e o comportamento de lealdade, respeito e cortesia que os homens deveriam ter para com as mulheres. Observa-se na maior parte da epístola que a recomendação das regras do amor, anunciada por Cupido, mais do que aos cavaleiros e escudeiros em questão, está direcionada sobretudo aos clérigos, filósofos e escritores por seus discursos difamatórios contra as mulheres.

 Após uma reflexão mais geral, o eu-lírico parte para exemplos diretos de escritores inseridos nessa tradição misógina. Ovídio é o primeiro a ser criticado, por seus tratados: Os Remédios de Amor e A Arte de Amar (versos 365 – 383). Prossegue, então, o julgamento a respeito do “também poeta de muito talento como Ovídio, que depois foi exilado, e de Jean de Meun, com o Roman de la Rose [Romance da Rosa](versos 388-389)”. A crítica a essa última obra, uma das mais lidas na Baixa Idade Média, causou uma forte reação por parte de intelectuais influentes, uns para defender o autor da obra misógina, outros para apoiar Christine de Pizan. Estava assim lançada a primeira querela da querelle des femmes.

Durante os dois anos seguintes, houve uma troca de cartas entre Christine de Pizan e os defensores de Jean de Meun (1240 – 1305). De acordo com Roy (1891, p. IV), após uma discussão oral de Christine de Pizan com o humanista Jean de Montreuil, a respeito do Roman de la Rose, este lhe enviou, como provocação, a cópia de uma epístola elogiosa a Jean de Meun. Pizan, então, responde ao humanista com outra epístola, levando o filósofo e secretário do rei Gontier Col a entrar no debate, com duras críticas à escritora por sua ousadia em desafiar autores de tão alta reputação. Meses depois, a crítica à escritora é reforçada pelo clérigo Pierre Col, mas, como observa o editor da obra poética de Christine de Pizan, “ela não se deixou intimidar e soube enfrentar todos aqueles que a atacaram” (Roy: 1891, p.III). A favor de Christine de Pizan estiveram o poeta e chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson, o escritor Guillaume de Tignonville e o marechal Bouciquaut.

Importante observar que nesse exercício retórico para a elaboração das epístolas, Christine de Pizan desempenhou na querela o papel de crítica literária, trazendo às suas epístolas um diálogo crítico com obras já consagradas pela tradição literária. Ao mesmo tempo que tece críticas a Ovídio e Jean de Meun, na Epístola ao Deus do Amor, recomenda a leitura da Divina Comédia de Dante, em sua resposta a Pierre Col (Brown-Grant, 2003, p.36). Com significativa habilidade retórica, buscou argumentos convincentes para afirmar sua autoridade frente aos ataques misóginos de seus opositores, como se observa no trecho a seguir dirigido a Jean de Montreuil (Brown-Grant:2003, p.20):

“E que não me acusem de desatino, arrogância ou presunção, por eu, mulher, ousar, opor-me e replicar a um autor de tanta sutileza, nem tampouco de desvalorizar a sua obra, quando ele, um único homem, teve a ousadia de difamar e de acusar todo um sexo, sem exceção (linhas 353-7) ” [Tradução nossa]

O envolvimento de Christine de Pizan nesta polêmica, que ficou conhecida como querelle de la Rose, rendeu-lhe uma importante visibilidade e autoridade. O impacto da epístola primeira de Pizan foi tal que fez o marechal Bouciquautdecidir fundar, em 1400, uma ordem de cavalaria em defesa das mulheres (“Pâques fleuries 1399”) e, neste mesmo ano, fundou uma “Cour amoureuse” [Tribunal para assuntos amorosos], com o intuito de ser um espaço de defesa para as mulheres, e contou com a participação de 600 membros (Roy: 1891, p,VI). Em 1402, a autora reuniu as epístolas que compunham a polêmica e ofereceu o manuscrito à rainha Isabel de Bavière, em busca de conseguir seu apoio. A repercussão da escritora se estendeu para além do território francês, após a circulação da tradução inglesa da Epístola ao Deus do Amor, em 1402. 

Christine de Pizan continuará a defesa da mulher nas suas obras posteriores, buscando formular os problemas que estão na essência dessa insistente teoria da inferioridade do sexo feminino em sua época. No livro A Cidade das Damas(1405),Christine dePizan cria um espaço imaginário para proteger as mulheres, de todas as condições sociais, contra os ataques misóginos recorrentes em obras de autoria masculina. Esta cidade utópica se constrói metaforicamente com biografias de mulheres virtuosas ao longo dos séculos (personagens das Mitologias, das crônicas, da Bíblia e igualmente do círculo de conhecimento da autora). A obra se configura como um catálogo de biografias, inspirado provavelmente em Mulheres ilustres de Bocaccio, autor citado recorrentemente nessa obra de De Pizan. Porém, as narrativas da obra do autor italiano se apresentam sob uma nova perspectiva na Cidade das Damas, demarcando as duas obras pelo ponto de vista, bem como pela motivação dos autores. Se, para Pizan, os exemplos de mulheres talentosas e virtuosas são buscados para desconstruir a suposta inferioridade do sexo feminino, para Boccaccio, a motivação de sua obra, revelada no prólogo, reforça as teorias misóginas sobre a superioridade do sexo masculino:  

E se os  homens  são  dignos  de  serem  louvados  por  terem realizado grandes façanhas pela força que receberam, quanto não serão as  mulheres,  as  quais  são  dotadas  pela  natureza  (quase  todas)  de  um  corpo  frágil,  debilitado,  e  de  uma  mente  sórdida,  quando  se  atrevem  a  realizar  empreitadas  de grandes dificuldades, inclusive para os homens, com um ânimo viril, gênio brilhante e uma virtude notável? (Tradução nossa) (BOCCACCIO, Giovanni. Mujeres preclaras. Tradução e apresentação de Violeta Díaz-Corralejo. Madri: Cátedra letras Universales, 2010, p.60)

Dessa forma, Pizan reabre a querelle des femmes, trazendo avaliações críticas a outras obras de teor misógino, como As lamentações de Mateolo, a Metafísica e a Política de Aristóteles, Mulheres ilustres de Boccaccio etc. A autora não se limita a criticar a misoginia dessa tradição androcêntrica, mas reescreve mitos e crônicas sobre figuras femininas, a partir de uma perspectiva feminista[2]. É também na obra A Cidade das Damas onde a escritora aponta para a questão central da querelle des femmes: o não acesso das mulheres à educação:

Se fosse hábito mandar as meninas à escola e ensinar-lhes as ciências, como o fazem com os meninos, elas aprenderiam e compreenderiam tão perfeitamente as sutilezas de todas as artes e de todas as ciências quanto eles. (Pizan, Cidade das Damas, parte I cap. XXVII).

 A escritura de De Pizan inaugura, assim, uma espécie de gênero literário que traz as mulheres para o centro do debate, sob uma nova perspectiva, e estabelece como diretrizes centrais da argumentação a construção de uma história das mulheres, a reescrita dos mitos, a crítica feminista da Bíblia e a discussão sobre educação feminina.

2. Terminologias, periodizações e filiações históricas

A expressão querelle des femmes é uma denominação do século XX. Outros termos são igualmente utilizados para nomear esse fenômeno: “querela dos sexos”, “querela do feminismo”, “questão das mulheres”, “polêmica das mulheres”. Neste tópico, proponho um percurso acerca das terminologias empregadas para designar essa discussão política e literária,  buscando, sobretudo, trazer algumas obras que participaram da “querelle des femmes”, e suas principais temáticas, a fim de mostrar a continuidade de uma tradição iniciada por Christine de Pizan, do século XV.

O termo “querela” foi retomado de alguns autores do século XV, que assim se referiram, em suas obras, às queixas e reivindicações das mulheres no final da Idade Média, como Bouciquaut no Livre des fais du bon messire Jehan le Maingre, dit Bouciquaut (1409) e Martin Le Franc, em e Le champion des dames (1451). Naquele momento, a expressão “querela” faz referência ao sentido empregado no século XII, o de “queixa jurídica”, “causa”, “contradição”, “lamentação”, como atesta a medievalista Margarete Zimmermann (1999), no artigo “Querelle des femmes, querelles des livres”, no qual ela traça o percurso histórico do termo na França.

A partir do século XVI, outras designações substituem o uso do termo querela:  “apologia”, “defesa”, “queixa”, “disputa”, “combate”, “controvérsia”. Embora tais expressões estejam presentes em alguns títulos das obras em debate, como Controverses du sexe masculin et femenin (1536) deGratien du Pont, Jane Anger Her Protection For Women (1589) de Jane Anger, Grief des dames (1626) de Marie de Gournay, são mais recorrentes títulos que põem em evidência a motivação central da obra, ressaltando, de forma mais específica, as qualidades, o heroísmo das mulheres, ou, ao contrário, os defeitos das mesmas. Seguem alguns títulos desse período : Il merito delle donne [O mérito das mulhers] (1600), obra póstuma de Moderata Fonte, I donneschi difetti  [Os defeitos das mulheres] (1599) de Giuseppe Passi, La nobiltà, et l’eccellenza delle donne, co’diffetti, et mancamenti de gli huomini [A nobreza, e excelência das mulheres, com fefeitos e falta dos homens] (1600) de Lucrezia Marinella, Alphabet de l´imperfection et malice des femmes [O alfabeto e a imperfeição e malícia das mulheres] (1619), de Jacques Olivier, La femme héroïque (1645) de Jacques du Bosc, Les dames illustres (1645) de Jacquette Guillaume, La galerie des femmes fortes (1647) de Pierre Le Moyne.

A partir do século XVII, tem lugar um terceiro momento na história da querelle des femmes, período em que as publicações adquirem um caráter mais de tratado político, como se observa nos títulos: Traité de la morale et de la politique ( 1693) de Gabrielle Souchon, A Serious Proposal to the Ladies (1694) de Mary Astell, De l´égalité des deux sexes (1673) de François Poulain de la Barre, Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791) de Olympe de Gouges, entre outros.

De acordo com Zimmermann (1999), é no contexto do feminismo francês das primeiras décadas do século XX que surge a denominação querelle des femmes, cunhada pelos pesquisadores franceses Abel Lefranc, em Le Tiers Livre de Pantagruel et la querelle des Femmes (1904) e Émile Telle, na publicação L’oeuvre de Marguerite d’Angoulême, reine de Navarre, et la querelle des femmes (1937), referindo-se aos debates de gênero durante o Renascimento.

A pesquisadora Éliane Viennot (2011), no entanto, identifica a presença do termo já no final do século XIX, em 1880, nas pesquisas do historiador da Literatura Arthur Piaget. Viennot assinala também a contribuição das teses e estudos publicados sobre Christine de Pizan nas primeiras décadas do século XX e sua importância para se identificar a participação de várias obras da autora na querelle des femmes.

Embora, como vimos no tópico anterior, a primeira obra de Pizan apresente uma mensagem clara em defesa das mulheres e tenha desencadeado um debate público acerca do tema nos anos que seguem, alguns autores, como Sylvie Lefèvre, por exemplo, no Dicionário das Letras francesas da Idade Média (1964, p.281-282), não consideram ter sido essa a intenção da autora na Epístola ao Deus do Amor. Segundo a medievalista:

A essas peças líricas independentes […] sucede a Epístre au Dieu d´Amors (maio de 1399), considerada erroneamente como o ponto de partida do Débat sur le Roman de la Rose, enquanto que se tratava da tradicional veia cortês de defesa das mulheres e não de uma polêmica; o mesmo para o Dit de la Rose. (fevereiro de 1402)[3]

Observa-se, porém, que para a grande maioria de medievalistas e especialistas da querelle des femmes, como Maureen Curnow, Simone de Beauvoir, Margarete Zimmermann, Maurice Roy, essa epístola representa a obra charneira na carreira de Christine de Pizan, e a desencadeadora desta tradição. No primeiro volume de O segundo sexo, a feminista Simone de Beauvoir assim se refere ao assunto:

Pela primeira vez, vê-se uma mulher pegar da pena para defender o seu sexo; Christine de Pisan (sic) ataca vivamente os clérigos em L’Épistre au Dieu d’amour. Alguns clérigos, imediatamente, se levantam para defender Jean de Meung (sic); mas Gerson, guarda-selos da Universidade de Paris, apoia Christine; redige, em francês, seu tratado a fim de alcançar um público mais amplo. […] E Christine intervém de novo. […] (BEAUVOIR, 1970, p.132)

Se pode-se considerar consenso o reconhecimento do pioneirismo da autora na querelle por parte de medievalistas, alguns pesquisadores atribuem não à Epístola ao Deus do Amor, mas à obra A Cidade das Damas, o início dos debates sobre a “questão da mulher”, em especial por nela estar mais centrada a discussão sobre a capacidade intelectual feminina e o direito das mulheres à educação. No projeto “Querelle”, disponível online no site “querelle.ca”, sob a coordenação da canadense Marguerite Deslauriers, A Cidade das Damas situa-se no primeiro ponto da linha do tempo das obras pertencentes à Querelle.

Gerna Lerner (1993/2019, p.298-299), em um relevante estudo sobre o percurso da consciência feminina, enfatiza a importância do tema da Educação para a “Querelle des femmes”, reconhecendo Pizan como a precursora, a partir de sua análise sobre a A Cidade das Damas: “O debate conhecido como querelle des femmes, que Christine iniciou e que continuou em todas as grandes cidades da Europa e na Inglaterra durante quatro séculos, era centrado em questões concernentes à educação feminina”.

No entanto, observamos que, de modo geral, especialistas, cujos estudos se voltam mais para a época moderna, geralmente atribuem ao século XVI o surgimento desses debates polêmicos. De acordo com a teóloga feminista Teresa Forcades (2010, p.43-45), por exemplo, as discussões da querelle se proliferaram a partir do século XVI e, apesar da autora  identificar a participação de algumas autoras italianas como Moderata Fonte e Lucrezia Marinella em tais debates, ela descreve o fenômeno como um gênero literário por meio do qual os autores exercitavam suas artes retóricas e construíam, assim, a identidade masculina do sujeito moderno.

Tal opinião, consideramos equivocada ao considerarmos a relevância da atuação das mulheres neste debate. O agenciamento feminino teve muito mais impacto do que a participação masculina na querelle des femmes. As obras com conotações misóginas reafirmavam a ideologia vigente de herança patriarcal, portanto, não faziam avançar as discussões, contrariamente, às obras em defesa às mulheres, que souberam utilizar a arte retórica para fazer mudar a mentalidade vigente em cada século.

Outras periodizações também são propostas entre especialistas para indicar o início da querelle. Víñez Sánchez e Durán (2019), por exemplo, consideram os textos poéticos das trobairitz nos séculos XII e XIII, como precursores dos debates sobre as relações de gênero, uma vez que neles é possível observar denúncias contra a violência dos maridos, contra o casamento forçado e reivindicações das trobairitz por uma maior liberdade. Para o filósofo Maxime Rovère (2019:10), a “polêmica das mulheres” situou-se entre os séculos XII e XVI, tendo como obra inaugural Le Roman de la Rose. A partir do século XVI, desse debate inicial surgiria o “arqueofeminismo”[4]. Segundo o pesquisador: 

O Romance da Rosa (século XIII) nos oferece o exemplo perfeito: a primeira parte, escrita por Guillaume de Loris, nos dá uma imagem positiva das mulheres; a segunda, escrita por Jean de Meung, uma imagem negativa. Deste ponto de vista, a “polêmica das mulheres” nasceu, portanto, na forma de uma contenda filosófico-literária. (Rovere:2019, p.11)

De fato, a obra oferece um exemplo de debates contrários, tendo a mulher como objeto de discussão. No entanto, se a participação das mulheres nos debates for considerada um dos critérios essenciais da querelle des femmes, como acredito que seja, não seria possível identificar a obra desses dois autores como precursora de um movimento literário inaugural das questões feministas.

Outro desacordo entre os/as pesquisadore/as refere-se ao término da querelle e ao seu alcance. Éliane Viennot identifica duas perspectivas a respeito do término do fenômeno. A primeira é uma tendência “minimalista”, própria aos estudos que consideram a atuação dos debates em um período muito curto de circulação (Séculos XVI e XVII, por exemplo) ou em um escopo muito reduzido de obras envolvidas. Dentro de uma abordagem mais abrangente, situam-se os estudos a partir dos anos 70, em geral de perspectiva feminista, que buscam evidenciar a participação das mulheres no processo longo de reflexões e de críticas sobre as políticas sexuais da sociedade patriarcal ao longo dos séculos. Nesta perspectiva, destaco o artigo clássico de Joan Kelly, Early feminist theory and the « Querelle des femmes », 1400-1789, de 1982; e o livro The creation of feminist consciousness. From the Middle Ages to Eighteen-seventy (1993), no qual a historiadora Gerna Lerner analisa vários aspectos da querelle na Europa, estendendo as reflexões sobre o fenômeno para o contexto estadunidense.

Para Éliane Viennot (2012), coordenadora do projeto Revisiter la “querelle des femmes”, « do final da Idade Média às primeiras décadas do século XX, primeiramente a Europa, em seguida o mundo influenciado por ela, foram palco de uma gigantesca polêmica sobre o lugar e o papel das mulheres na sociedade.” Essa longa polêmica, segundo a pesquisadora, teria nascido no século XIII, do desigual acesso ao saber, imposto pelo clero cristão masculino a partir da criação das universidades e dos diplomas por ela fornecidos. Da resistência de alguns grupos excluídos, como as mulheres, teriam surgido as primeiras querelas. Na página web do projeto, um robusto corpus de títulos de obras que circularam durante esses séculos movimentando a querelle vem sendo alimentado regularmente com a contribuição de associados/as da SIEFAR (Sociedade Internacional para o Estudo das Mulheres do Antigo Regime). De meados do século XIII a 1900, centenas de obras já estão listadas, em aberto apenas o século XX. O site do projeto fornece igualmente várias referências de estudo sobre a querelle des femmes, notadamente os quatro volumes intitulados “Revisiter la “querelle des femmes. Discours sur l´égalité/inegalité des femmes et des hommes », publicados de 2012 a 2015.

Para finalizar essa breve exposição acerca da querelle des femmes, proponho no último tópico, que segue, um percurso por algumas obras relevantes e os temas nelas tratados no contexto da querelle de femmes.

3. A querela das obras

Desde a primeira querela, foi um tema central a enumeração das qualidades das mulheres em paralelo com a denúncia dos defeitos dos quais são acusadas.

Muitos escritores e escritoras elaboravam listas de mulheres famosas, santas, guerreiras, divindades, artistas, fundando seus argumentos através de exemplos, como modelos a seguir. A historiadora Lerner (2019, p.396) interpreta essa prática como um esforço reiterado de reagir ao silenciamento acerca da participação das mulheres na sociedade e de buscar construir uma História das mulheres.

 No século XV, assim como Christine de Pizan, que elabora um catálogo de mais de cem biografias de mulheres, em debate crítico com a obra Mulheres ilustres do escritor Boccaccio, Laura Cereta (1469-1499), uma das primeiras humanistas italianas, também se inspirou nas biografias catalogadas pelo autor para elaborar uma lista de mulheres ilustradas da Antiguidade, acrescentando, de forma original, contemporâneas suas, como Isolta Nogarola, Cassadra Fedele, Nicolosa Sanuto de Bolonia.  

Ainda no século XV, merece ser lembrada a obra Vita Christi, escrita por sor Isabel de Villena (1430-1490), abadessa catalã, de Valencia. Trata-se de uma versão da vida de Jesus contada a partir da relação dele com as mulheres da Bíblia, como Maria, Madalena, Marta. Segundo Cláudia Brochado (1999, p.14), possivelmente a obra foi escrita como resposta aos comentários misóginos de Jaume Roig, na obra Llibre de les Dones, o Spill.

Nos séculos seguintes, os catálogos de mulheres se multiplicam, e cada vez mais observa-se a inclusão de mulheres escritoras. Destaco aqui a obra da italiana Lucrezia Marinella (1571 – 1653) La nobiltà et l’eccellenza delle donne, co’ difetti et mancamenti de gli uomini (1600).  Gerna Lerner (2019, p.394) ressalta da autora sua erudição e seu conhecimento sobre mulheres governantes e religiosas medievais, dentre elas “Isabel de Schonau, Hroswitha de Ganderscheim, Hildegarde de Bingen e numerosas ilustradas do Renascimento. No entanto, seu maior interesse é a autoridade dos homens pró-feministas”. Em Portugal, a Primeira carta apologética, em favor e defesa das mulheres, escrita por Dona Gertrudes Margarida de Jesus (1761)é um interessante documento em língua portuguesa que ilustra bem essa “querela de livros”. A epístola é uma resposta à obra Espelho crítico no qual claramente se vem alguns defeitos das mulheres, escrita pelo Irmão Amador do Desengano, que trata dos defeitos das mulheres, frisando a ignorância, a inconstância e a formosura. A carta apologética de Margarida de Jesus revela um significativo domínio da Arte Retórica na elaboração argumentativa em defesa das mulheres. Além de fornecer uma lista extensa de exemplos de mulheres exitosas da História, incluindo ilustradas portuguesas, a autora enumera as fontes bibliográficas das informações: Dicionários e Enciclopédias disponíveis na época. Outro ponto importante da epístola é a denúncia das desiguais oportunidades entre os sexos ao acesso à educação, como vê-se no trecho a seguir:

Não quero (Caríssimo irmão) lembrar a V. C. a nenhuma frequência que as mulheres têm das  Cortes,  das  Aulas  e  das  Universidades,  que  é  aonde  se avultam  as  letras  e  apuram  os  engenhos,  cousa  que  sendo  aos  homens  tão frequente, é raríssimo aquele que admira. De mil que frequentam as Aulas e as Universidades apenas se encontra um, ou  outro  que  faça  admiração  aos mais;  quando  certamente  me  persuado  que,  se  às  mulheres  fosse  permitida esta  liberdade,  seria  a  maior  parte  delas  sapientíssimas  [sic];  pois  vemos terem  havido  muitas  de  tão  alta  compreensão  e  engenho  que,  ainda  sem Mestres  e  sem  exercício,  têm  feito  admiráveis  progressos,  assim  nas  letras, como  nas  manufacturas. E para que se não duvide deste acerto, eu exponho algumas, entre as muitas que podem abonar  esta verdade.  Ora vá ouvindo. (JESUS, 1761, p. 07)

O debate sobre educação feminina, inaugurado por Christine de Pizan, como foi visto no primeiro tópico do verbete, se intensifica nos séculos seguintes da querelle, em especial no século XVIII. Na dramaturgia setecentista, peças e prefácios foram palco de debates envolvendo a defesa e acusações sobre as capacidades femininas. Na introdução da antologia Théâtre de femmes de l´Ancien Régime (XVII-XVIIIe siècle), o pesquisador Perry Gethner analisa a efervescência do teatro de autoria feminina e comenta algumas contendas envolvendo escritores e escritoras desse período. A multiplicação de edições e encenações de dramas produzidos por mulheres leva alguns autores misóginos a escreverem acusações infundadas sobre a autoria da obra delas. Como estratégias, muitas dramaturgas aproveitaram o espaço dos prólogos para enumerar uma série de obras de autoria feminina e, dessa forma, inserirem-se em uma legítima tradição de mulheres autoras de talento. Voltaire foi um dos escritores que questionaram a autoria das dramaturgas Catherine Bernard e Marie-Anne Barbier. As obras das duas foram atribuídas pelo iluminista ao escritor Fontenelle. Em História geral do teatro francês, desde sua origem até o presente (1734-1749), os irmãos Parfaict atribuíram as peças da dramaturga Barbier ao bispo Pellegrin.  Tais acusações levaram a dramaturga Marie-Anne Barbier a buscar publicar sozinha sua obra teatral completa e ela mesma redigiu a apresentação da edição. (Gethner:2011, p.21)

No segundo semestre do século XVIII, a dramaturga e ativista política Olympe de Gouges foi uma das figuras mais atuantes nas lutas pela emancipação feminina no período da Revolução Francesa. Militante em várias frentes, nas lutas antiescravagistas e nas manifestações da Revolução Francesa, De Gouges se envolveu em várias polêmicas com políticos, jornalistas, comediantes. O debate, embora por vezes oral, se manisfestava sobretudo por meio de panfletos, artigos de jornais, cartas e tratados. As suas maiores polêmicas envolveram a encenação da peça A escravidão dos negros (1789), cujas protagonistas são homens e mulheres escravizados que se rebelam contra o feitor e suas condições subumanas. A outra maior polêmica foi a apresentação na Assembleia Nacional da Declaração do direto da mulher e da cidadã (1791), como uma resposta irônica à Declaração do direito do homem e do cidadão, na qual a mulher estaria excluída de direitos pelo falso universalismo do termo homem. Em 1793, a escritora militante foi guilhotinada.

La querelle des femmes e as sementes da consciência feminista

O breve percurso por algumas obras que participaram da querelle des femmes revela uma história de resistência das mulheres escritoras, com apoio de alguns escritores, e de enfrentamento à misoginia, à difamação e desvalorização de sua condição social por meio de debates públicos.

Portanto, o surgimento da querelle des femmes pode ser identificado como expressão de uma tomada de consciência e desejo de mudança social, face a um contexto de opressão de gênero intensificada no início da “Modernidade”, após desmoronar um período de importante agenciamento das mulheres em diversos campos de atuação. Não se pode negar a influência de algumas mulheres, como a abadessa Hildegarde de Bingen, a médica Trotula, a rainha mecenas dos trovadores Eleonor d´Aquitaine, no contexto dos séculos XI e XII; nem tampouco o relevante papel social de alguns movimentos femininos, como é o caso das beguinas, nos séculos XIII a XIV, até a chegada do Renascimento.

O percurso apresentado revela ainda a existência de um elevado número de obras escritas por mulheres ao longo do período medieval, o que torna inexplicável no século XXI o silenciamento da Historiografia das várias disciplinas – Literatura, História, Filosofia, Medicina, Arte, Educação, em relação a essas obras de autoria feminina. Se, enquanto gênero literário, é possível estabelecer um término para a querelle des femmes, em termos políticos, os debates públicos sobre o papel das mulheres e as relações de gênero permanecem na contemporaneidade, com novas pautas, novas batalhas.

Referências

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LINKS:

http://querelle.ca/

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[1] Estou designando « feminista », a percepção crítica em relação às desigualdades de gênero e o agenciamento feminino frente às opressões do patriarcado. Desta forma, alinho-me aos Feminismos Decoloniais, no questionamento do “Feminismo hegemônico” que, ao construir uma única narrativa sobre o feminismo e suas pautas, mascararam diversas vias de movimentos de mulheres ao longo da História, e  que, segundo Françoise Vergès(2020, 28) contribue “para o apagamento do longo trabalho subterrâneo que permite às tradições esquecidas renascerem e ocultam o próprio fato de que elas foram soterradas”. Além das teóricas do feminismo decolonial, algumas pesquisadoras também empregam o termo “feminista” referindo-se a séculos anteriores ao XX, como é o caso de Nicole Pellegrin(2010), no livro “Écrits féministes de Christine de Pizan à Simone de Beauvoir”, Teresa Forcades (2007), em “La teologia feminista en la Història”, Gerda Lerner(1993), em “The creation of feminist consciousness. From the Middle Ages to Eighteen-seventy”. 

[2] O termo “perspectiva feminista” é aqui utilizado a partir do sentido empregado pela pesquisadora Gerna Lerner acerca da ideia de “Consciência feminista”. A autora considera 5 elementos definidores desta noção: “ 1) a percepção das mulheres de que pertencem a um grupo subordinado e que, como membros deste grupo, têm sofrido injustiças, 2) o reconhecimento de que sua condição de subordinação não está determinada naturalmente, mas socialmente; 3) o desenvolvimento do sentido de sororidade; 4) as definições autônomas das mulheres de seus objetivos e estratégias a fim de mudar sua condição; 5) o desenvolvimento de uma visão alternativa do futuro.” (Lerner, 2019, p.411)

[3]«  À ces pièces lyriques indépendantes, […] sucede o Epîstre au Dieu d´Amors (mai 1399), considérée à tort comme le point de départ du Débat sur le Roman de la Rose, alors qu´elle ressortit à la traditionelle veine courtoise de défense des femmes et non à une polémique ; de même pour le Dit de la Rose (février 1402)».

[4]  Esse neologismo, cunhado pelo filósofo Maxime Rovère apresenta três funções: “primeiramente, marcar de forma clara a diferença entre o arqueofeminismo e o “feminismo” propriamente dito (mulheres e homens que empregam esse termo para designarem a si próprios desde o século XIX); em segundo lugar, para evitar o termo “proto-feminismo”, por vezes empregado pelos(as) historiadores(as), que tem o inconveniente de dar um fim à história e de ignorar as especificidades do movimento compreendido entre os séculos XVI e XIX. Por fim, para enfatizar que o arqueofeminismo não é só uma forma antiga do feminismo, que diz respeito às sociedades diferentes da nossa (não industrializadas, não capitalistas), mas também que os textos desses(as) autores(as) estão em processo de exumação, sendo lentamente retirados do fundo das bibliotecas, por numerosos(as) pesquisadores(as), em um trabalho similar ao de arqueólogos(as), e que a maneira pela qual se desenvolve esse terreno de estudos está diretamente ligada aos métodos que empregamos para analisar esse tipo de feminismo. (Rovere: 2019, p.10).