Violência Obstétrica

Violência Obstétrica

por Rosamaria Giatti Carneiro,

 docente Associada II da Universidade de Brasília – Lattes

Violência Obstétrica – PDF

Foto: Carla Raiter

Este verbete explora a ideia de violência obstétrica, procurando por suas historicidades e gramáticas sociais, destacando desde já, entretanto, a sua polissemia, pluralidade de significados e polivalência contextual. Como bem pontuam os trabalhos de Zanardo et al., (2017) e de Diniz et. al (2015), a violência obstétrica tem sido abordada em estudos científicos e acadêmicos; mas também por políticas públicas e de Estado; por movimentos sociais e ativismos feministas e ainda como um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ela é um tema candente nos estudos feministas, de gênero e de saúde pública, por conta de versar sobre os corpos que gestam e dão à luz; sobre os que não querem gestar; sobre violação de direitos humanos das mulheres; situações de violência; relações de gênero; assistência à saúde e práticas profissionais. Enquanto expressão, ela é relativamente recente, já que passou a circular pelo contexto latino-americano há pouco mais de dez anos, mas, se consideramos sua genealogia, tem sido assunto no Brasil desde os anos oitenta. 

O Brasil há décadas ocupa o lugar de um dos recordistas mundiais no número de cesarianas, em que pese a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendar que somente 15% dos partos/ano aconteçam mediante a incisão abdominal. A violência obstétrica, de outra parte, ainda é difícil de ser quantificada e comparada, haja vista ser uma categoria em construção. Estamos a debater em que a mesma consiste e a partir de que eventos podemos classificá-la. Entretanto, como as cesáreas per si configuram violência obstétrica, em virtude de não serem observadas as melhores práticas adotadas para a saúde da mulher e do bebê, podemos vislumbrar, ainda que a grosso modo, que o Brasil é um dos países que mais violenta obstetricamente as gestantes, parturientes e lactantes. 

Segundo dados divulgados em estudo do The Lancet (2023), o Brasil é o segundo país no mundo a apresentar o maior número de cesáreas, com 57,7%, e infelizmente esse número tem crescido nos últimos anos, a despeito de muitos esforços no Ministério da Saúde. Entre 2010 e 2015 experimentamos uma queda significativa no número de casos, mas de 2020 em diante assiste-se ao incremento das cirurgias abdominais. 

Neste texto, tomaremos as contribuições teórico-empíricas ofertadas pelos campos da Antropologia e da Saúde Pública, com significativo atravessamento do pensamento feminista e de teorias de gênero e sexualidade, sobretudo a partir dos anos 2000, quando o termo passou a circular com essa nomenclatura na sociedade brasileira.

Violência, gênero e instituições sociais

Para pensarmos sobre os seus sentidos sociais é preciso partir da premissa de que a violência obstétrica encontra-se na interface dos estudos sobre violência, violência de gênero e violência institucional. De início, ela precisa ser compreendida como uma agressão ou como uma violação, que pode ser tanto física quanto psíquica, emocional e/ou moral. De outra parte, precisa também ser analisada à luz dos estudos sobre violência de gênero e violência contra mulher, debatidos há anos pelos feminismos e que ganharam ainda mais notoriedade com a promulgação da Lei Maria da Penha no Brasil (11.340/2006), que estabeleceu a violência contra a mulher como crime, dando destaque à violência doméstica, aquela que acontece dentro de casa. 

Ocorre que a violência contra a mulher acontece também fora de casa, ou seja, nas ruas e, inclusive, no interior de instituições sociais, como escolas, fábricas e em hospitais. Ela acontece na cidade e no campo e fora das instituições sociais, quando profissionais de saúde as violentam no interior de suas casas, em situações de parto domiciliar e, inclusive, quando esses profissionais são terapeutas populares, como parteiras, por exemplo, pessoas que prestam assistência à saúde sem ter diplomação técnica ou universitária. 

Diante do que conforma a vida sexual e reprodutiva das mulheres, a violência obstétrica pode acontecer durante o pré-natal, a gestação, o parto e apoio à amamentação; mas também em situações de assistência ao aborto, que é permitido por lei no Brasil em algumas poucas situações. Nesse sentido, a violência obstétrica, já numa primeira aproximação, precisa ser compreendida como uma violência de gênero realizada por profissionais de saúde que geralmente acontece em instituições hospitalares, mas que pode acontecer também fora delas. 

Origens remotas do conceito: ativismos, pesquisas e leis 

Como mencionei acima, a violência obstétrica não surge repentinamente no começo do século. Como bem destacam Diniz et. al (2015), uma das primeiras investidas analíticas que pensou a violência no parto no Brasil foi uma pesquisa de 1980, Espelho de Vênus, realizada pelo Grupo Ceres, que fez uma das primeiras etnografias a identificar o parto como um evento violento:

Não é apenas na relação sexual que a violência aparece marcando a trajetória existencial da mulher. Também na relação médico- paciente, ainda uma vez o desconhecimento de sua fisiologia é acionado para explicar os sentimentos de desamparo e desalento com que a mulher assiste seu corpo ser manipulado quando recorre à medicina nos momentos mais significativos da sua vida: a contracepção, o parto, o aborto. (Diniz et. al, 2015, p. 2)

Em 1992, a Prefeitura Municipal de São Paulo realizou a pesquisa ”Por detrás da violência: um olhar sobre a cidade, violência nas ações de saúde” e nela as mulheres disseram que o parto poderia ser um ato violento e que os profissionais de saúde tinham lhes agredido. Também as políticas públicas passaram a reconhecer essa violência, pois o PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, 1984) nesse mesmo período já reconhecia que era preciso combater uma assistência à saúde desumanizada e tecnicista, mencionando que o atendimento às mulheres poderia ser impessoal e agressivo. Por isso, em 1993, conforme as autoras, o Coletivo Feminista de Sexualidade de São Paulo ofereceu cursos de capacitação para profissionais de saúde pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo. 

Desde a criação da Rede de Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa) de 1993, em Fortaleza, ativistas do parto humanizado, entre grupos feministas e de profissionais de saúde, têm pautado a importância de transformarmos o modelo de assistência ao parto brasileiro, considerado invasivo, excessivamente medicamentoso, desigual e violento. Sabe-se historicamente que o país carrega o posto de recordista mundial de cesáreas.

A Venezuela foi o primeiro país na América do Sul a tipificar e empregar o termo violência obstétrica, no ano de 2007, com a promulgação da “Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia”. Segundo suas linhas, a violência obstétrica consistia em: (a) não atender às emergências obstétricas; (b) obrigar a mulher a parir em posição de litotomia; (c) impedir o apego inicial da criança sem causa médica justificada; (d) alterar o processo natural do parto através do uso de técnicas de aceleração sem consentimento voluntário da mãe e (e) praticar o parto por via cesárea quando há condições para o parto natural (Venezuela, 2007). 

Logo depois foi a vez da Argentina que, em 2009, promulgou a Lei 26.485, “Ley de protección integral para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales”. Em sua definição, a violência obstétrica apareceu como “atos exercidos pelos profissionais de saúde sobre o corpo, envolvendo também os processos reprodutivos das mulheres, que podem ser expressos através do tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização de processos naturais no parto, nascimento e puerpério da mulher e do seu bebê” (Leite et al, 2020).

Enquanto isso, no Brasil, a Fundação Perseu Abramo realizava a importante pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados, cujos resultados foram divulgados em 2010. Foram escutadas 2400 mulheres e 25% delas, assustadoramente, disseram ter sofrido de “violência no parto”. Ela foi um marco para a consolidação da categoria violência no parto entre as ativistas, nas mídias e publicações científicas. Como tal, apareciam as seguintes situações: negativa de alívio da dor durante o parto, realização de exame de toque constantes e sem sua permissão, gritos com as mulheres, xingamentos e humilhações, a não informação sobre os procedimentos que lhe estavam sendo feitos e falta de consentimento para realização de muitos deles. Entre os principais xingamentos e agressões verbais, as mulheres destacaram ter escutado: “Na hora de fazer você não chorou, não chore agora!” ou “Pare de gritar, senão paro o que estou fazendo e lhe deixo sozinha!”. Em 2010 foram também publicados os resultados da pesquisa de doutorado de Janaína Aguiar junto ao Departamento de Medicina Preventiva da USP, Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero, que se tornou, posteriormente, uma referência no tema.

Em 2012 a Rede Parto do Princípio, uma articulação virtual de mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde, elaborou o Dossiê Parirás com Dor para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que tratava Violência contra as Mulheres. No documento há um marcado esforço de conceitualizar e tipificar a violência obstétrica a partir de um percurso histórico de ativismo social e pleito pela transformação do sistema obstétrico brasileiro, considerado intervencionista, desumano e tecnicista. 

A violência obstétrica contra a mulher, forma ainda pouco conhecida e debatida, que é perpetrada por profissionais que deveriam proteger e cuidar da saúde física e mental das parturientes: médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. Caracterizada por ocorrer num dos momentos de maior vulnerabilidade da vida de qualquer mulher, essa violência se materializa como negligência, violência verbal (grosserias, ameaças e humilhações intencionais), violência física (incluindo a não utilização de analgesia quando necessário e a realização de cirurgias desnecessárias e indesejadas), além do abuso sexual (Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra as Mulheres do Senado Federal, 2013). 

Ainda em 2012 foi lançado, no Seminário Internacional Fazendo Gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina, o documentário Violência Obstétrica: a voz das brasileiras, dirigido por Bianca Zorzan, Ligia Moreiras Sena, Kalu Brum e Ana Carolina Arruda Frazon. Por meio dele muitas mulheres narraram as violências sofridas no parto, dando contornos assim ao que devemos entender por violência obstétrica. O filme logo atingiu as redes sociais e circulou com bastante intensidade entre grupos feministas, ativistas do parto humanizado e profissionais de saúde, como lugar de fala das usuárias do sistema de saúde brasileiro.

No mesmo evento, a antropóloga Mariana Pulhez apresentou um trecho de sua pesquisa sobre a violência no parto e nomeação da violência obstétrica, logo publicado na Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, “Parem a violência obstétrica: a construção das noções de violência e de vítima no parto” (2013). A autora argumenta, a partir de sua análise da fala de mulheres ativistas do parto humanizado em grupos de internet, que a violência obstétrica é construída a partir do discurso dos direitos humanos e da ideia de que “é preciso falar sobre os traumas vividos” (p.546). Para isso, inspira-se no trabalho da antropóloga sul-africana Fiona Ross (2001), que escreveu sobre a importância de atentarmos para aquilo que não é vocalizado, mas é falado por mulheres que experimentaram situações de violência em seus corpos. Para Pulhez, a fala das mulheres sobre os atos violentos no parto questionam o que, até então, era percebido como prática, rotina e modelo de atenção ao parto. 

Olhar para esse movimento como um esforço de alteração de ideias tidas como hegemônicas sobre o parto possibilita afirmar que a noção de que o parir pode ser “amenizado”, de modo a não causar sofrimento às mulheres, é certamente algo sob disputa. Pois não ser anestesiada ou ser levada a realizar um parto normal, quando o que se quer é uma cesariana, também poderia ser encarado como um ato violento. Ou seja, a própria acepção do que constitua uma violência também deve ser posta em contexto, e a experiência da dor no parto, ou a experiência da maternidade em si podem não ser vistas como processos pelos quais uma mulher necessariamente deve ou quer passar (Pulhez, 2013, p.560)  

Em 2015, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou os resultados do inquérito nacional “Nascer no Brasil”, em que foram ouvidas quase 25 mil mulheres brasileiras, de diferentes regiões e realidades. Segundo os seus principais achados, a assistência médica ao parto, como vem sendo praticada, possui grande potencial iatrogênico, ou seja, a capacidade para gerar mais danos do que benefícios para as mulheres. Entre as ativistas e profissionais da humanização do parto a iatrogenia é chamada de “efeito cascata” (Leal et al., 2017). 

Os resultados da pesquisa “Nascer no Brasil” indicam a urgência em reformar o modelo de atenção ao parto e ao nascimento no país, tendo em vista que muitos dos desfechos adversos identificados apresentam associação com problemas na qualidade da assistência. Para isso, é fundamental o envolvimento de gestores, profissionais de saúde, pesquisadores, sociedade civil, particularmente as mulheres, para mudar a forma de nascer no país (Sumário Executivo Nascer no Brasil, 2017, p.6)

No âmbito legislativo brasileiro, existem algumas propostas de lei que têm tentado tipificar especificamente a violência obstétrica. Temos o Projeto de Lei 8/2013 que propõe a alteração na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências para incluir a obrigatoriedade de obediência às diretrizes e orientações técnicas e o oferecimento de condições que possibilitem a ocorrência do parto humanizado nos estabelecimentos de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Em seguida, também o PL 2589/2015, que considera violência obstétrica o conjunto de condutas condenáveis por parte de profissionais responsáveis pelo bem estar da gestante e do bebê, sendo elas: o desrespeito; o abuso de poder da profissão; o constrangimento; a privação do direito a esclarecer dúvidas da parturiente, mesmo sem que haja emergência; a negligência, que poderá ser considerada também quando profissionais de saúde atuam com irresponsabilidade, imprudência ou adotam procedimentos superados ou não recomendados ao lidar com a paciente ou o bebê. 

Em 2022 foi proposto o PL 2082 que busca alterar o Código Penal e assim criminalizar a violência obstétrica e estabelecer procedimentos para sua prevenção. Na justificativa do projeto de lei, argumenta-se que países na América Latina já apresentaram leis, a exemplo da Venezuela e da Argentina, enquanto países na Europa estão debatendo o tema. Por fim, define violência obstétrica enquanto “qualquer conduta direcionada à mulher durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário, praticada sem o seu consentimento ou em desrespeito pela sua autonomia ou, ainda, em desacordo a procedimentos estabelecidos no âmbito do Ministério da Saúde, constituindo assim uma clara limitação do poder de escolha e de decisão da mulher.” 

Vale ressaltar que até o momento nenhum desses projetos de lei teve finalização, muitos encontram-se sem andamentos recentes. Por isso, em que pese a ideia de violência no parto existir há décadas, o Brasil ainda não possui uma tipificação legal a respeito da violência obstétrica. 

O que seria então a violência obstétrica no contexto brasileiro? 

Ainda que não tenhamos um documento legal que a conceitue expressamente, diante do proposto por ativistas e usuárias do Sistema Único de Saúde, artigos científicos oriundos de pesquisas qualitativas e quantitativas e de projetos de lei em tramitação, pode-se dizer que a violência obstétrica pode acontecer dentro ou fora das instituições de saúde, mas que é perpetrada por profissionais de saúde, diplomados ou não. Ela pode ser física, mas também verbal. Pode envolver a ausência de um procedimento médico, mas também a realização de outro sem o consentimento da mulher. Pode envolver o não acesso aos serviços de saúde, a quebra do sigilo e a demora em oferecer determinado procedimento necessário para a parturiente e o bebê. Negar informação, não informar a mulher do que lhe está sendo ofertado e dos riscos de determinadas práticas, bem como abandoná-la ou oferecer informações distorcidas também configuram violência obstétrica. Assim como também discriminar, coagir, chantagear a parturiente. Segundo Tesser, Knobel, Andrezzo e Diniz (2015), ela resulta da:

[…] apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e da patologização de processos naturais, resultando na perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (Tesser et al., 2015, 30).

De acordo com o Portal de Boas Práticas à Saúde da Mulher e da Criança da Fundação Oswaldo Cruz, é também violência obstétrica: o monitoramento contínuo do bebê durante o trabalho de parto; a lavagem intestinal e raspagem dos pelos pubianos da mulher; tentativas de aceleração do trabalho de parto, restrição alimentar, restrição de movimentos da parturiente durante o trabalho de parto; recusa de técnicas de alívio da dor; cerceamento do acompanhante no trabalho de parto e cesárea sem indicação fundamentada. O bebê tem direito de contato pele a pele na primeira hora de vida e de alojamento conjunto com sua mãe, aspectos que, se inobservados, também configuram violência obstétrica. Por isso, D’Oliveira, Diniz e Schraiber (2002) entendem que a violência obstétrica pode acontecer mediante: negligência (omissão do atendimento), violência psicológica (tratamento hostil, ameaças, gritos e humilhação intencional), violência física (negar o alívio da dor quando há indicação técnica) e violência sexual (assédio sexual e estupro).

Sena e Tesser (2017) analisaram os resultados do “Teste da Violência Obstétrica”, divulgado em 8 de março de 2012 em uma ampla rede de blogs acessados por usuárias do Sistema de Saúde, feministas e mulheres interessadas no tema do parto. Foram avaliados, por meio de questões fechadas, 1966 nascimentos, durante 38 dias. Entre os seus resultados, 52% dos nascimentos foram por cesariana; mais de 40% das mulheres se sentiram desrespeitadas pela equipe; 7% não puderam caminhar durante o parto; 50% não tiveram acompanhante e 50% disseram ter sofrido no pós-parto por conta do modo como seus partos foram realizados. 

De acordo com Sena, violência obstétrica abrange: tratamento infantilizador, paternalista, omisso, manipulador ou agressivo; impedimento da presença de acompanhante (direito assegurado pela lei federal no 11.108/2005 [Brasil, 2005]); ausência de acolhimento empático e de escuta qualificada; negativa de prestação de esclarecimentos adequados; imposição da cesariana; separação por longos períodos entre mãe e recém-nascido, associada à ausência de incentivo à amamentação; internação prolongada sem a apresentação de justificativas; uso arbitrário da anestesia, desconsiderando-se os pedidos da mulher; realizações de procedimentos médicos sem consulta à mulher ou sem o seu consentimento expresso, ou ainda como forma de retaliação explícita; além de abuso sexual (Tempesta, França; 2021, pp. 260-261)

Para Patrícia Quattrocchi (2020), em Violencia obstétrica en América Latina: conceptualización, experiencias, medición y estratégias, as principais características da violência obstétrica seriam: ser uma violência estrutural no interior de uma ordem social que naturaliza a opressão e que abrange violência de gênero; ser uma violência contra o recém-nascido; ser uma violação de direitos humanos e do direito à saúde reprodutiva; bem como ser uma violência institucional e laboral. Já para D’Gregorio, a violência obstétrica consistiria em: proibir a mulher de ser acompanhada por seu parceiro ou outra pessoa de sua família ou círculo social; realizar qualquer procedimento sem prévia explicação do que é ou do motivo de estar sendo realizado; realizar qualquer procedimento sem anuência da mulher; realizar procedimentos dolorosos ou constrangedores sem real necessidade, tais como: enema, tricotomia, permanência na posição litotômica, impedimento de movimentação, ausência de privacidade; tratar a mulher em trabalho de parto de maneira agressiva, rude, sem empatia, ou como alvo de piadas; separar o bebê saudável de sua mãe após o nascimento sem qualquer necessidade clínica justificável.

Tempesta e França (2021) salientam a importância de refletirmos sobre violência obstétrica de modo interseccionado, demarcado sobretudo pelas diferenças de raça/cor e de classe social. As mulheres negras sofrem muito mais de violência obstétrica, haja vista terem negado o direito à analgesia em virtude da alegação de “serem mais fortes para a dor”, bem como não serem tocadas durante o pré-natal por preconceito e sofrerem muito mais de violência institucional dado o racismo institucional. Segundo as autoras, as feministas negras brasileiras e americanas têm pautado como a maternidade e os direitos reprodutivos de mulheres negras têm sido vilipendiados, motivos pelos quais ressaltam a importância de pensarmos e praticarmos a “justiça reprodutiva”, como vem apregoando Dana-Ain Davis (2019). Um argumento que vai no mesmo sentido do que sustentam Diniz et. al (2015) ao dizerem que: “quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento [médico] oferecido a ela” (p.264).

Do mesmo modo, também homens trans podem sofrer violência obstétrica ao gestarem ou darem à luz. Nesses casos, podem acontecer a partir do rol de violências já citadas para as mulheres cis quanto às práticas e procedimentos médicos, mas sobremaneira a partir da discriminação experimentada no interior das instituições hospitalares. O Brasil ainda não oferece uma assistência à saúde reprodutiva específica e particularizada para homens trans. Por isso, homens trans grávidos realizam pré-natal e dão à luz no mesmo sistema das mulheres cis, o que contribui para que corpos grávidos com barbas e outras características masculinas sejam estigmatizados, para que seus nomes sociais não sejam preservados, para a falta de apoio aleitamento aos seios mastectomizados e para ausência de comunicação respeitosa que lhes informe sobre seus direitos. Nesses casos, a violência obstétrica pode decorrer, antes de mais nada, da premissa social de que homens não podem gestar e dar à luz, já que é exatamente isso que homens trans têm reivindicado.

Considerações Finais

É importante reconhecer que a ideia de violência obstétrica tem uma genealogia e atualmente um sólido campo de práticas e de saberes que a conformam. Ela é uma questão estrutural, haja vista remeter às relações de gênero, relações raciais e de classe social, junto de ideias sociais de corpo feminino na sociedade brasileira. Mas é também, pelas mesmas razões, eminentemente relacional. Por isso, o que para as mulheres, ativistas e profissionais do parto humanizado é considerado violento, para outros profissionais de saúde consiste em rotina, protocolos e regras a serem seguidos, como bem destacam os trabalhos de Simone Diniz (2023) e da antropóloga Emily Martin (2006). Para Martin, como no sistema capitalista as mulheres são vistas a partir de uma lógica fabril, seus corpos funcionam como fábricas, seus úteros como máquinas e os bebês como mercadoria confeccionada, tudo no tempo certo e conforme padrões pré-determinados que não devem falhar e tampouco atrasar. Por isso a violência nem sempre é compreendida como tal, já que é vista como o padrão a ser seguido em busca da garantia de bons resultados. Nesse sentido, em que pese ter um campo robusto de interlocução e de práticas, não se pode dizer que é uma ideia livre de questionamento. Há quem sustente que a violência obstétrica não existe e que o termo é descabido.

Por último, gostaria de salientar que a violência obstétrica alia dois grandes campos de estudos, que se enriquecem e carecem um do outro. Ela é objeto das Ciências da Saúde, quando procuramos compreender como acontece no corpo, na lógica hospitalar, a partir das boas evidências, da tecnologia e do que se entende como procedimentos médicos, bem como de suas consequências a médio e longo prazo para a saúde de mulheres e bebês. Mas, por esse viés, pode terminar reduzida, diminuta e pobre em termos de complexidade e em como lhe significam aquelas que a vivem. É nesse campo que as Ciências Sociais, sobretudo a Antropologia e a Sociologia lhe acrescentam muito em contextualidade e profundidade. Esse é o universo analítico que nos permite pensá-la à luz do racismo, da desigualdade social e dos discursos que a informam como violência. Para tanto, as teorias feministas são mais do que bem-vindas, no sentido de desconstruir e desnaturalizar práticas de controle notadamente violentas que há muito tempo assolam as vidas das mulheres no decorrer de sua vida sexual e reprodutiva.

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Zanardo, G. L. de P., Uribe, M. C., Nadal, A. H. R. D., & Habigzang, L. F. (2017). Violência obstétrica no Brasil: uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade, 29. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29155043