Mulheres, raça e classe

Por Laíssa Ferreira

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do Grupo de Pesquisa em Filosofia Política – CNPq – Lattes

PDF – Resenha “Mulheres, raça e classe”

Mulheres, raça e classe: DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani (1 Ed.). São Paulo: Boitempo, 2016, 248 pp. ISBN 978-85-7559-503-9 [Também disponível em versão eletrônica].

A filósofa e ativista pelos direitos civis Angela Davis (1944-) é autora da obra Mulheres, raça e classe, publicada em 1981 nos Estados Unidos e no Brasil em 2016 pela Editora Boitempo, em tradução de Heci Regina Candiani. Nascida no Estado do Alabama, Estados Unidos, durante o período de segregação racial das leis Jim Crow, Davis cresceu em um bairro apelidado de Colina Dinamite (Dynamite Hill) devido aos constantes bombardeios às casas de famílias negras. Não foi, então, inesperado seu envolvimento na luta pelos direitos civis, sua trajetória acadêmica sempre esteve relacionada ao envolvimento com o ativismo e alimentado pelo seu estudo sobre o socialismo a partir de sua adolescência durante as aulas de história que frequentou em Nova York (1958). Segundo Davis,

Talvez tenha sido o traço romântico dentro de mim que me aproximou do socialismo utópico. […] O Manifesto Comunista me atingiu como um raio. Li-o com avidez, encontrando nele respostas a muitos dos dilemas aparentemente irrespondíveis que me atormentavam. […] Comecei a ver os problemas do povo negro dentro do contexto de um amplo movimento da classe trabalhadora. (DAVIS, 2019, p. 275)

E foi com essa visão que Davis graduou-se em Literatura Francesa na Universidade de Brandeis – Massachusetts no ano de 1965. Logo depois iniciou a pós-graduação em filosofia na Universidade de Goethe em Frankfurt, na Alemanha, sob a orientação de T. Adorno. Durante esse período, o movimento pelos Direitos Civis ganhava força nos Estados Unidos, o que foi determinante para que Davis interrompesse seus estudos e retornasse ao seu país de origem em 1967.

Declarando-se abertamente comunista, Angela Davis se envolveu em ações do movimento pela Libertação Negra e, consequentemente, sofreu perseguições. Ao mesmo tempo em que militava pelos Direitos Civis, Davis trabalhava no projeto de sua tese de doutorado sob orientação de Hebert Marcuse na Universidade da Califórnia (UCLA) em San Diego. Como um dos requisitos para adquirir o título, ela tornou-se professora assistente no Departamento de Filosofia na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Ao ocupar este cargo, foi perseguida até ser demitida em 1969. Em seguida, foi acusada de assassinato, sequestro e conspiração e, consequentemente, Davis foi colocada na lista das pessoas mais procuradas pelo FBI. No ano de 1970, Angela Davis permaneceu cativa por 18 meses e durante esse período uma grande campanha foi realizada pela sua libertação: “Libertem Angela Davis e todos os prisioneiros políticos.” Em 1972, Angela Davis recebeu o título honorário de doutorado pela Universidade de Lênin (International Lenin School – ILS), ela não defendeu sua tese de doutorado na UCLA devido ao fato de não ter conseguido recuperar sua pesquisa, apreendida pelo FBI após a comprovação de sua inocência. Angela Davis atualmente é professora emérita do Departamento de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia. Autora de Uma autobiografia (1974 – 2019), Mulheres, raça e classe (1981 – 2016), Mulheres, cultura e política (1989 – 2016), Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rayne, Bessie Smith, and Billie Holiday (1999), Estarão as prisões obsoletas? (2003 – 2018), A Democracia da Abolição: para além do império das prisões e da tortura (2005 – 2009) e A liberdade é uma luta constante (2015 – 2018).

A história de vida de Angela Davis a levou a escrever Mulheres, raça e classe em 1981. Embora esta obra tenha sido publicada há mais de 35 anos, seu conteúdo permanece atual, o tema da opressão e seu sistema interligado (raça, gênero e classe) percebido pelo olhar marginal das mulheres negras, e exposto por Davis nesta obra, ainda gera grandes discussões. Além de ser uma rica fonte para a compreensão da história da mulher negra estadunidense, a obra proporciona perspicazes análises e reflexões aprofundadas de temas relacionados ao que posteriormente será denominado como interseccionalidade pela teórica Kimberlé Crenshaw (1989).

Davis apresenta neste livro uma perspectiva interseccional a partir das experiências comuns das mulheres negras, de forma subversiva com relação aos padrões da intelectualidade acadêmica. Seu livro não possui uma introdução e uma conclusão, o que não significa que a obra não possua começo, meio e fim. Talvez este formato seja uma provocação, uma reivindicação para que a academia reconheça saberes oriundos de outros contextos e com outras estruturas, e neste caso, trata-se de um conhecimento específico oriundo da experiência comum da mulher negra. Mulheres, raça e classe é composto por 13 capítulos que posicionam as mulheres negras como protagonistas de suas histórias, assim como revelam que elas contribuíram significativamente para a formação da história do povo negro estadunidense. Nestes capítulos as opressões de raça, gênero e classe vivenciadas simultaneamente pelas mulheres negras revelam a dificuldade que é, para nós, mulheres negras, eleger uma opressão específica como a mais importante. Nossas realidades revelam que as opressões que vivenciamos são simultâneas, híbridas e, por isso, não podem ser analisadas ou combatidas individualmente. Davis demonstra, pela reconstrução de acontecimentos históricos, como o racismo contribui para a construção do sexismo e da exploração de classe; como o sexismo contribui para a perpetuação do racismo e da exploração de classe; e, finalmente, como a exploração de classe é mantida pelo racismo e pelo sexismo.

Sendo assim, Angela Davis constrói uma narrativa que desloca as mulheres negras para o centro da análise em relação à posição marginal que ocupamos nas discussões sobre racismo, sexismo e exploração de classe. Este deslocamento nos convida à redefinição da construção das relações raciais, sociais e econômicas a partir da perspectiva das mulheres negras estadunidenses e revela como esse saber marginal possui um potencial real de transformação. A experiência interseccional das mulheres negras auxilia na construção de uma visão mais ampla sobre o modo como essas opressões operam e, consequentemente, auxilia na criação de estratégias mais efetivas de luta e na criação de uma teoria da opressão mais complexa e realista. Esta obra também deve ser vista como um convite para que a sua leitora e o seu leitor ampliem seu olhar, ou seja, que a intersecção de opressões seja admitida como um meio para a compreensão da busca por emancipação e libertação. É essa uma das riquezas da obra: ser um auxílio na compreensão dos problemas enfrentados na atualidade.

A ênfase dada à experiência das mulheres negras deve-se não apenas às suas vivências, mas também à ausência de análises realistas sobre a situação específica dessas mulheres nos Estados Unidos desde o período da escravidão. “A situação específica das mulheres escravas permanecia incompreendida” (p. 15), não havia nada específico sobre o tema, muito menos algo que explorasse “o papel multidimensional das mulheres negras no interior da família e da comunidade escrava como um todo” (p.17).Para a filósofa, um estudo historiográfico sobre a mulher negra era urgente e necessário. De acordo com Davis,

Se, e quando alguém conseguir acabar, do ponto de vista histórico, com os mal-entendidos sobre as experiências das mulheres negras escravizadas, ela (ou ele) terá prestado um serviço inestimável. Não é apenas pela precisão histórica que um estudo desses deve ser realizado; as lições que ele pode reunir sobre a era escravista trarão esclarecimentos sobre a luta atual das mulheres negras e de todas as mulheres em busca de emancipação. (grifo meu) (DAVIS, 2016, p. 17)

É sem a pretensão de afirmar certezas que Davis se coloca no papel inovador de reescrever a história das mulheres negras, ao mesmo tempo em que introduz uma percepção do papel ocupado por essas mulheres na luta por igualdade e justiça social. Além desta visão historiográfica necessária sobre a mulher negra, a obra também oferece uma crítica ao feminismo hegemônico e à categoria mulher. O movimento feminista se iniciou como uma organização de mulheres que se colocava como representante de todas as mulheres. Entretanto, na prática, ele acabava por estabelecer um modelo ideal limitado e excludente, uma vez que considerava a realidade e as demandas de apenas um tipo de mulher: branca e de classe média. Davis problematiza esse modelo que exclui as mulheres negras e questiona os requisitos que esta categoria mulher exige, atravessados pelo ideal de feminilidade. Por fim, Davis denuncia como estas condições revelavam o racismo endógeno de um movimento que se dizia universal e representante de toda a categoria. A autora mostra que o ideal universal não funcionava na prática, principalmente quando as mulheres negras se deparavam com o racismo e o cinismo das suas companheiras de luta quanto às suas experiências híbridas em relação à opressão.

Ao mesmo tempo em que isso acontecia, as mulheres negras precisavam enfrentar outro movimento estabelecido como universal: o movimento pela libertação negra, cuja imagem representativa era a do homem negro. Este movimento não se diferenciou no fundamental do movimento de mulheres e também negligenciou a experiência híbrida das mulheres negras, pois da sua perspectiva, as questões de raça, em detrimento das de sexo e classe, eram as mais importantes na luta contra a opressão. Outro grupo que também não reconhecia as necessidades híbridas das mulheres negras era o movimento de mulheres trabalhadoras, que com muito esforço conseguiu formar uma força consolidada entre os movimentos operários majoritariamente masculino. Embora as mulheres trabalhadoras reconhecessem que elas mesmas vivenciavam uma dupla opressão (cap. 9), elas tinham dificuldade em compreender a realidade híbrida das mulheres negras. Para elas, o objetivo principal que se deveria ter na busca por emancipação eram as questões de classe. Pois pensavam, resolvidos os problemas em relação ao trabalho, consequentemente, as questões de raça e gênero seriam resolvidas.

A questão da negligência do movimento de mulheres, do movimento pela libertação negra e do movimento de mulheres trabalhadoras quanto às demandas híbridas das mulheres negras, apontada por Davis, é a formalização histórica e conceitual de uma demanda das mulheres negras desde o nascimento desses movimentos. Para eles, os movimentos e a composição de opressões significavam uma desarticulação de demandas exclusivas. Eles não compreendiam realidades outras que não a própria o que, consequentemente, levava a uma negligência generalizada das opressões específicas que as mulheres negras experimentavam.

A negligência quanto às vivências das mulheres negras é um traço marcante dos movimentos sociais citados. No entanto, há momentos em que alianças podem surgir entre mulheres negras e os movimentos organizados. Algumas dessas alianças se mostraram superficiais e logo foram dissolvidas, por exemplo, quando o sufrágio negro surge como uma pauta a ser discutida antes do sufrágio feminino. Esse acontecimento revelou o racismo como uma barreira intransponível dentro do movimento organizado de mulheres (cap. 4). De acordo com Davis: “na defesa dos próprios interesses enquanto mulheres brancas de classe média, elas explicitavam frequentemente de modo egoísta e elitista – seu relacionamento fraco e superficial com a campanha pela igualdade negra do pós-guerra” (p.84). Contudo, houve situações específicas de alianças notavelmente potentes, como aqueles que envolvem os acontecimentos que circundaram a busca por educação para a população negra durante o período de Reconstrução (cap. 6). Neste período, mulheres brancas e mulheres negras formaram uma aliança concreta e com potencial efetivo de luta contra a opressão, unindo-se para findar com o alto número de analfabetismo da população negra logo após a emancipação do povo negro. Segundo Davis, “a sororidade entre mulheres negras e brancas é de fato possível […], desde que erguida sobre uma base firme” (p.112).

Da mesma forma que é possível criar uma aliança forte contra a opressão, Davis revela que as próprias opressões também formam alianças e se mostram intimamente interconectadas, de modo a se retroalimentarem. As opressões se revelam conectadas e são constantemente afetadas por componentes ideológicos que se ressignificam de acordo com cada período histórico como forma de consolidar as hierarquias vigentes. Nas palavras de Davis existe um “profundo vínculo ideológico entre racismo, viés de classe e supremacia masculina” (p.81), embora os movimentos organizados da época tivessem dificuldades em reconhecer esta ligação. Mas, graças às nossas experiências interseccionais, nós, mulheres negras, identificamos esse vínculo ideológico entre as opressões e, assim, reivindicamos esse reconhecimento através de nossas lutas por emancipação e libertação.

Tendo isso em vista, os capítulos de Mulheres, raça e classe revelam marcas e cicatrizes deixadas como um legado da escravidão. Este legado pode ser visto na estrutura das relações de trabalho, nas relações sociais e nas relações raciais. Este legado pode ser visto na ausência de bibliografias que narram a história real do povo negro. Este legado pode ser visto nos lugares que o povo negro e outros grupos oprimidos ocupam no imaginário de uma sociedade que se revela racista, machista e classista. Este legado pode ser visto na abordagem que Davis faz ao narrar acontecimentos históricos que envolvem não só as mulheres negras, mas os movimentos sociais e as lutas que representam repletas de contradições.

Para construir esta narrativa crítica dos principais movimentos de sua época, assim como revelar o que as mulheres negras estavam discutindo, Davis recorre a um extenso número de fontes bibliográficas, dentre os quais obras como as do historiador Hebert Aptheker, do sociólogo W. E. B. Du Bois, do abolicionista Frederick Douglass e das feministas Elizabeth Candy Stanton, Susan B. Anthony e Ida B. Wells, as quais não lidavam diretamente com a condição específica da mulher negra e não necessariamente analisavam a condição concreta do povo negro estadunidense. Angela Davis recorre a estas fontes para tornar visível, para construir a narrativa de um fenômeno a ser analisado com a sua interpretação interseccional das opressões, sem romantizações ou camuflagens da realidade concreta da vida das mulheres negras.

Com isso em mente, pode-se dizer que a compreensão da história das mulheres negras estadunidenses desde o início da escravização e seu histórico de sobrevivência e resistência são o ponto de partida para remontar a histórica luta por emancipação dos grupos oprimidos. A filósofa Angela Davis executa uma análise da opressão a partir do modo como os movimentos sociais se organizam e como acolhem (ou não) as diferentes experiências. Foram as experiências das mulheres negras como mulheres (gênero), negras (raça) e trabalhadoras (classe), simultaneamente, e suas relações com os movimentos que buscavam libertação, que pavimentou o caminho para a formação do entendimento concreto de como as opressões de raça, classe e gênero operam simultaneamente. Como dito acima, o trabalho realizado por Davis foge completamente aos padrões da academia, ele é o resultado de um processo vivenciado por ela mesma, assim como por outras mulheres que até então se viram incapacitadas de falar para serem ouvidas.

Através do seu profundo compromisso com a justiça social e a libertação, Angela Davis mostra como as vidas das mulheres negras podem ser fontes inestimáveis de conhecimento sobre a pluralidade de mulheres, ações coletivas e sobre como o próprio coletivo pode ser um meio eficiente de resistência. “”Quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política social se movimenta na sociedade”, exatamente porque, estando na base, o movimento das mulheres negras desestrutura e desestabiliza as rígidas e consolidadas relações desiguais de poder no sistema capitalista” (Davis apud Figueiredo, 2018). A crítica social trazida pela filósofa possibilita engendrar uma mudança real da sociedade, uma mudança que une movimentos sociais, ao mesmo tempo em que mostra para os intelectuais da academia que esse saber das mulheres negras oriundo das suas próprias experiências é uma forma legítima de conhecimento. Por fim, ao trazer a mulher negra da margem para o centro das análises, Davis ilumina a estrutura e as relações do sistema interligado, múltiplo e simultâneo das opressões de raça, gênero e classe.

Esta proposta de Davis e de outras mulheres negras e não negras, de olhar para as experiências das mulheres negras, criou um novo campo de investigação com novas teorias, que “ilustrou as maneiras pelas quais raça, gênero e classe se cruzam tanto nas experiências cotidianas dos indivíduos quanto na estrutura social da sociedade e de todas as suas instituições” (Bernett, p.17). Esse novo campo auxilia na compreensão de questões referentes não somente ao passado, mas ao presente. Assim, o reconhecimento de um sistema interligado de opressão, o que nomeamos de interseccionalidade, promove uma busca concreta por liberdade, que é, antes de tudo, uma busca concreta por libertação e pelo fim da opressão como um todo.

A obra Mulheres, raça e classe foi um dos primeiros livros que articulou teoria, análise da simultaneidade e interrelação dos sistemas de poder e opressão de raça, gênero e classe. Segundo a filósofa, esta obra é “o reflexo não de uma análise individual, e sim de uma percepção, no interior de movimentos e coletivos” (DAVIS, 2018, p.33) que consegue de forma efetiva mostrar os caminhos de uma luta concreta por libertação. Sendo assim, Mulheres, raça e classe é leitura obrigatória para aquelas e aqueles que desejam compreender a partir de uma perspectiva não tradicional conceitos como: liberdade, emancipação, libertação e opressão. Perspectiva esta, oriunda da experiência coletiva das mulheres negras. Além disso, esta obra por conter um grande referencial histórico, e que é utilizado por Davis como uma eficiente metodologia para escapar das romantizações e camuflagens, contribui para o seu objetivo inicial: construir uma narrativa concreta da história do povo negro que auxilie a compreensão de problemas de opressão enfrentados na atualidade.

Bibliografia:

BARNETT, Bernice McNair. Angela Davis and Women, Race & Class: A Pioneer in Integrative RGC Studies.” In: Race, Gender & Class, Vol. 10, N. 3, Interdisciplinary Topics in Race, Gender, and Class (2003), p. 9 – 22.

DAVIS, Angela Yvonne. A liberdade é uma luta constante. Organização de Frank Barat. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo, SP: Boitempo, 2018.

DAVIS, Angela Y. Uma autobiografia. Tradução de Heci Regina Candiani. Prefácio de Raquel Goulart Barreto. São Paulo, SP: Boitempo, 2019.

Yanci, George. African-American Philosophers: 17 conversations. New York, NY: Routledge, 1998