Heloísa de Argenteuil

Heloísa de Argenteuil

(1090? – 1164)

 

por Roberta Miquelanti, professora 

da Universidade Federal da Bahia – Lattes

Heloísa de Argenteuil – PDF

 

 

Angélica Kaufmann, Abelardo e Heloísa surpreendidos pelo cônego Fulberto, óleo sobre tela, 1778. Burghley House, Lincolnshire.

Vida

 

Heloísa de Argenteuil é conhecida principalmente pelo seu relacionamento amoroso com Pedro Abelardo. Mas além de uma trágica história de amor, a história dos dois amantes é também a história de uma troca intelectual, um testemunho das tensões entre os ideais de vida filosófico e religioso na sociedade do século XII. Nas correspondências trocadas com Abelardo, podemos reconhecer na voz de Heloísa de Argenteuil o eco de uma reflexão sofisticada, que expressa com erudição, clareza e eloquência ideias acerca da vida filosófica, o amor, o casamento e a natureza da virtude.

Heloísa de Argenteuil nasceu na França, por volta de 1090. Filha de Hersende, pertencente a uma família nobre da região de Paris. Ela foi inicialmente educada no Convento de Argenteuil, onde recebeu uma formação padrão para sua época, baseada nas artes do Trivium e nas Sagradas Escrituras.  Ela continua sua instrução sob os cuidados do seu tio, Fulberto, cônego de Notre-Dame, que, encantado pelos talentos excepcionais e zelo ao estudo demonstrados pela sobrinha, incentiva a continuação dos seus estudos. Além de conhecer obras clássicas da filosofia, incluindo autores como Sêneca, Ovídio e Cícero, e da teologia, ela também conhecia latim, grego e hebraico, habilidades pouco comuns para mulheres naquela época. Aos dezesseis anos, já era conhecida como uma das mulheres mais eruditas da França. 

O desenrolar de sua história é ditado pelo seu encontro com Pedro Abelardo (1079-1142), um dos mestres de lógica mais célebres do período. Por volta de 1115, Fulberto contrata Abelardo para ser tutor particular de Heloísa de Argenteuil e eles passam a viver na mesma casa. Os estudos logo dão lugar à paixão e os dois amantes passam a manter um relacionamento secreto, que, ao ser descoberto por Fulberto, os leva a se separarem momentaneamente. A separação só torna a paixão mais forte, e os dois amantes continuam se encontrando furtivamente. Pouco tempo depois, ela descobre que está grávida. Em uma noite, Abelardo rapta Heloísa de Argenteuil da casa do tio e a envia, disfarçada de religiosa, à Bretanha, onde vive uma das irmãs de Abelardo. 

Após o nascimento do filho, Astrolábio, Abelardo retorna à Paris. Como forma de reparar a honra da família Heloísa de Argenteuil e aplacar a ira de Fulberto após o escândalo gerado pela história, ele decide se casar com ela. Ela não é favorável ao casamento, argumentando que este iria manchar o prestígio de Abelardo, mas acaba cedendo. Heloísa deixa o filho sob os cuidados da família de Abelardo e retorna à casa do tio, em Paris. Após celebrado o casamento, que é mantido em segredo, os dois esposos passam a levar vidas separadas e discretas. Fulberto, humilhado pela situação, torna o casamento público, e passa a maltratar a sobrinha, que continua negando o vínculo em diversas ocasiões.

Abelardo a envia então para o convento de Argenteuil, o mesmo no qual ela havia sido educada. Fulberto sente-se mais uma vez traído pelos amantes e, para se vingar, manda castrar Abelardo. Depois deste trágico acontecimento, Heloísa de Argenteuil, sob as ordens de Abelardo, toma o véu em Argenteuil, e Abelardo se recolhe ao convento de Saint-Denis, onde se torna monge. A partir do momento em que fazem os votos, por volta de 1118, Heloísa de Argenteuil e Abelardo passam a levar vidas separadas e dedicadas à religião, voltando a se comunicar mais de uma década após os acontecimentos, através de cartas. 

Em 1129, o Abade de Saint-Denis, Suger, expulsa as freiras do convento de Argenteuil, alegando que o convento pertencia à Saint-Denis. Com a ajuda de Abelardo, as freiras se instalam no Paracleto, monastério fundado pelo próprio Abelardo perto de Troyes, e estabelecem ali uma nova comunidade. Heloísa de Argenteuil assume a direção do convento de Paracleto, do qual se torna abadessa, e o dirige até o final da sua vida. Registros da época indicam que ela obteve muito êxito no comando do Paracleto, obtendo a proteção e ajuda de autoridades importantes do período. Sob sua direção, o Paracleto torna-se um centro de aprendizado e cultura, onde as mulheres podiam se dedicar aos estudos e ao debate intelectual. Após sua morte, em 11 de maio de 1164, Heloísa é enterrada no Paracleto, juntamente ao túmulo de Abelardo, até a remoção dos restos mortais dos amantes, em 1817, para o cemitério Père-Lachaise, em Paris, onde encontram-se ainda hoje.

O que conhecemos dos escritos de Heloísa de Argenteuil é, basicamente, um conjunto de cinco correspondências, entre as quais quatro cartas trocadas com Pedro Abelardo, uma delas contendo o conjunto de questões conhecido como Problemata, e uma carta dirigida a Pedro, o Venerável. Todas as cartas datam do período monástico de sua vida. As duas primeiras cartas trocadas com Abelardo têm caráter pessoal e mostram não só a profundidade e a intensidade do amor de Heloísa, mas também seu lamento com a separação de Abelardo e a nova condição de vida que lhe foi imposta. Já as últimas cartas dirigidas a Abelardo indicam um redirecionamento temático, tratando principalmente de questões ligadas à vida monástica e religiosa. 

 

Contexto histórico-cultural

 

Heloísa de Argenteuil e Pedro Abelardo viveram no século XII, também conhecido como século do renascimento cultural, marcado pela renovação da vida urbana, do comércio, pelo ressurgimento de centros urbanos de ensino e nascimento das primeiras universidades. Nesse contexto, a educação formal é reservada aos homens. As mulheres têm pouco acesso à educação, limitada aos conventos femininos ou ao ensino privado. Heloísa é uma exceção para a época não só como uma mulher educada, mas pelo seu nível de erudição.  Segundo testemunhos da época, ela teria se demarcado não somente por suas habilidades intelectuais, mas pela sua vontade em perseguir os estudos, mesmo em Teologia, numa época em que as mulheres de sua idade eram destinadas a se casar. Após receber uma educação segundo os padrões da época no convento de Argenteuil, Heloísa continua seus estudos incentivada por Fulberto. Assim, antes mesmo de se tornar aluna de Abelardo, ela já seria versada em diversas línguas e obras filosóficas e teológicas, o que nos permite mesmo levantar a questão do seu papel como mera aluna de Abelardo, colocando em relevo sua contribuição ativa no desenvolvimento intelectual do seu mestre. 

Mas o século XII também é marcado por conflitos entre as autoridades eclesiásticas e as novas classes seculares. Estes elementos também são essenciais na compreensão do relacionamento de Heloísa de Argenteuil e Pedro Abelardo, no que diz respeito ao casamento. Num contexto de mudanças sociais e culturais, o celibato dos clérigos parece ter se tornando uma questão de debate, em um ambiente em que as autoridades eclesiásticas buscavam impor regras à comunidade clerical e ao comportamento de homens e mulheres. Ainda que nesse período não houvesse interdição formal do casamento aos clérigos, eles tinham entre as suas obrigações manter a castidade, o que tornaria a vida clerical incompatível com o matrimônio. Na época dos fatos, Abelardo ocupava a condição de clérigo, uma posição eclesiástica inferior na qual se encontrava grande parte dos mestres de filosofia que se dedicavam ao estudo e ao ensino. Assim, a vontade de Abelardo em manter o segredo do casamento precisa ser entendida nesse contexto. Uma das possíveis razões seria que o casamento levaria Abelardo a perder o seu prestígio enquanto mestre, ou mesmo sua posição, o que implicaria em perder o direito de ensinar. Mas como o casamento não parecia ser expressamente proibido para os clérigos da época, outra hipótese é que ele seria visto como um sinal de decadência moral, o clérigo sendo incapaz de manter sua continência (Gilson, 2007, pp. 36-47). Além disso, o casamento não é visto, nesse período, como o resultado de um laço de amor. O casamento é um contrato, que impõe obrigações mútuas entre marido e esposa. Nas Cartas, Heloísa de Argenteuil demonstra ciência dessas imposições, que aparecem como uma das razões que a levam a não querer contrair o matrimônio, já que este implicaria deveres de uma vida prática incompatíveis com as exigências da vida clerical e de estudos de Abelardo. 

 

As Cartas 

 

Heloísa de Argenteuil e Pedro Abelardo trocaram uma série de cartas que se tornaram parte da história literária e cuja autenticidade foi intensamente questionada, tornando a questão, nas palavras de Marenbon, uma das maiores controvérsias nos estudos medievais (2000, p. 19). Alguns estudiosos consideram que o conjunto de cartas não é autêntico, e teria sido forjado como uma obra ficcional por algum autor do século XIII, tendo como base a história real dos dois amantes. Jean de Meun, autor de uma das principais obras literárias do século XIII, O Romance de Rosa, e primeiro tradutor das cartas para o francês, é apontado como o verdadeiro autor da correspondência. Outros consideram que as cartas são autênticas, mesmo admitindo que tenham sido reunidas, organizadas e modificadas por algum autor posterior. Ainda entre aqueles que consideram que as cartas são autênticas, alguns levantam a hipótese de que elas teriam sido compostas apenas por Abelardo (Dronke,1992; Marenbon, 2000). Atualmente, a interpretação que prevalece é a de que as cartas são autênticas, e ainda que tenham sido reunidas e organizadas por um autor posterior, as obras possuem uma forte coerência interna, indicando que foram escritas por dois autores diferentes: Heloísa de Argenteuil e Pedro Abelardo. 

Além disso, muitos questionamentos sobre a autenticidade também levam em consideração o conteúdo das cartas. Deve-se notar que o gênero epistolar era um gênero literário comum na época e que, de maneira geral, as cartas tinham caráter público. Assim, eram meios pelos quais se fazia a comunicação de sentenças, exposição de ideias, mas elas também podiam ser usadas para apresentar a visão subjetiva do autor sobre determinado assunto. Esse caráter público das cartas também deve ser considerado ao se avaliar a intenção do autor no relato dos fatos. Por exemplo, A História das Minhas Calamidades, é muitas vezes lida como a apresentação de uma autodefesa de Abelardo face aos acontecimentos trágicos de sua vida. Já as cartas, tomadas em seu conjunto, visariam apresentar um modelo de conversão à vida religiosa.

A correspondência entre Heloísa de Argenteuil e Pedro Abelardo foi trocada por volta dos anos 1132-1137 (?) e é composta pelas seguintes cartas (com relação à numeração das Cartas, seguimos a numeração da edição latina da obra de Pedro de Abelardo de Migne, PL 178):

 

-Carta I: de Abelardo a um amigo (História das minhas Calamidades);

-Carta II: de Heloísa a Abelardo;

-Carta III: de Abelardo a Heloísa;

-Carta IV: de Heloísa a Abelardo;

-Carta V: de Abelardo a Heloísa;

-Carta VI: de Heloísa a Abelardo;

-Carta VII: de Abelardo a Heloísa – Sobre a origem da vida religiosa;

-Carta VIII: de Abelardo a Heloísa – Regras.

 

O conjunto de cartas não forma uma unidade temática. As primeiras cartas envolvem relatos mais subjetivos, enquanto as duas últimas cartas de Abelardo, compostas a pedido de Heloísa, têm caráter impessoal e dizem respeito a questões sobre a vida religiosa e a administração do Paracleto: a Carta VII trata da origem da vida religiosa das freiras, enquanto a Carta VIII, conhecida como Regra (Regula), constitui uma regra para a vida das religiosas do Paracleto. 

As cartas II, IV e VI, escritas por Heloísa, encontram-se preservadas em sete dos nove manuscritos que conservam a correspondência, além de constar na tradução francesa feita por Jean de Meun, no século XIII (cf. Dronke, 1984, p. 108). Muito se debateu sobre a atribuição da autoria dessas cartas a Heloísa de Argenteuil. Em parte, essa suspeita fundamenta-se no preconceito que coloca em xeque a possibilidade de que um relato com tal nível de erudição possa ter sido escrito por uma mulher. No entanto, como apontam diversos testemunhos da época, tal escrita condiz com as aptidões atribuídas a Heloísa.

Além do debate estabelecido nas cartas, também conhecemos uma série de questões propostas por Heloísa a Abelardo acerca de passagens problemáticas das Sagradas Escrituras na obra que ficou conhecida como Problemata Heloissae [Os Problemas de Heloísa]. Essa obra foi conservada em um único manuscrito copiado por volta de 1400, e é composta por quarenta e duas questões colocadas por por ela, seguidas pelas respostas de Abelardo. A obra é precedida por uma carta introdutória em que ela apresenta uma analogia entre as questões que propõe a Abelardo e as cartas trocadas entre Marcela e São Jerônimo, que dirigiu Marcela no estudo das Escrituras. Assim, ela cobra a dívida que Abelardo tem com ela e as freiras sob sua direção, às quais deve o direcionamento espiritual.

De Heloísa de Argenteuil temos ainda uma carta dirigida a Pedro, o Venerável, abade de Cluny (1092-1156), em que ela pede que ele lhe envie uma carta selada contendo a absolvição de Abelardo, que provavelmente seria colocada em seu túmulo, além da ajuda para conseguir uma prebenda para seu filho, Astrolábio. Essa carta é seguida por uma nova resposta do abade de Cluny, que promete ajudá-la como possível com o filho, que posteriormente parece ter obtido uma posição como Cônego de Nantes, e é complementada com a carta selada de absolvição de Abelardo.

 Acrescenta-se a esse corpus um outro conjunto de cartas anônimas que teriam sido trocadas entre dois amantes no século XII, na França. Um dos interlocutores é um homem, descrito como o mestre mais brilhante da França e, o outro, uma mulher, jovem aluna. Tratar-se-ia das cartas de amor perdidas de Pedro Abelardo e Heloísa de Argenteuil, trocadas durante a juventude, às quais os amantes fazem alusão nas Cartas. O texto foi encontrado em apenas um manuscrito copiado por Johannes de Vepria, bibliotecário da Abadia de Claraval, no final do século XV, que deu ao conjunto o título de Ex epistolis duorum amantium [Cartas de Dois Amantes]. Os dois autores não se identificam pelo nome, e o bibliotecário indica à margem do texto a intervenção da mulher pela inicial M (mulier) e do homem pela inicial V (vir). O texto foi editado e publicado apenas em 1974, por Ewald Könsgen. Tais cartas se distinguiriam de outras correspondências da época pelo caráter íntimo da correspondência, em que o homem se engaja explicitamente na conquista da jovem mulher e na exposição de suas exigências afetivas, face à jovem que opõe inicialmente resistência. Os amantes ainda discutem questões sobre a natureza do amor, problemática que encontramos nos escritos posteriores de Heloísa. A controvérsia com relação à autenticidade desse conjunto de cartas continua em aberto, ainda que estudos importantes, como de Mews (1999), defendam sua atribuição a Heloísa de Argenteuil e Abelardo. 

 

Temas filosóficos nas Cartas

As cartas de Heloísa de Argenteuil demonstram originalidade na maneira de abordar questões filosóficas do ponto de vista feminino. Além disso, a escrita da filósofa exprime habilidade com a linguagem e desenvoltura na utilização das fontes antigas, as quais são constantemente mobilizadas nos seus argumentos.

A primeira carta escrita por Heloísa é motivada pela leitura da carta de Abelardo ao amigo anônimo (Carta I, mais conhecida como História das minhas calamidades). A carta se inicia com uma série de súplicas de Heloísa para que Abelardo também se dirija a ela, ao mesmo tempo que expõe a sua própria versão dos fatos. Ela desafia a narrativa feita por Abelardo, mostrando que os dois tinham posturas diferentes em relação ao amor. Enquanto Abelardo fala do amor como uma paixão avassaladora, ela parte de um ideal ciceroniano de amor como dilectio, um amor livre e desinteressado. Ela ressalta em diversos momentos que seu amor por Abelardo não tem como objeto sua fama ou fortuna, mas que ela ama Abelardo por si mesmo. Esse ideal de amor desinteressado também impulsiona sua posição contrária ao casamento. 

O casamento proposto por Abelardo é ancorado em uma convenção social e é uma maneira de restabelecer a honra da família de Heloísa de Argenteuil frente ao escândalo que o relacionamento causou na sociedade da época. Já a visão de Heloísa está ancorada na oposição entre o modo de vida clerical e filosófico e o modo de vida conjugal. Do último, decorre uma série de inconvenientes da vida prática, como cuidar da casa e dos filhos, e que são incompatíveis com as exigências do estudo. A autora recorre a uma série de exemplos retirados de autoridades eclesiásticas, como São Jerônimo e filósofos antigos, para justificar o celibato como modo de vida ideal do clérigo que, em sua época, representava o ideal do filósofo antigo. Ela prefere que Abelardo mantenha sua glória enquanto clérigo do que vê-lo desonrado pelo casamento, que representaria, aos olhos dela “uma verdadeira ignomínia e uma carga onerosa” (2008, p. 117). Ela diz que preferiria, assim, o título de amante ao de esposa, preferindo manter um vínculo de amor desinteressado com Abelardo do que vê-lo preso a ela por um laço matrimonial. Ainda assim, ela acaba consentindo com o casamento. Mas uma vez contraído o vínculo, que, por sua vez, é seguido pela castração de Abelardo, o que vemos na sequência das cartas é a denúncia de Heloísa de que Abelardo não a amava da mesma forma que ela o amava. Ela se mostra triste com a mudança de atitude e negligência de Abelardo após sua entrada na vida religiosa, se comparada à intensidade de amor descritas pelo amante no passado, e opõe a esse quadro o seu amor desinteressado. Nesse ponto, Heloísa de Argenteuil toca em um dos conceitos centrais pelos quais é conhecida a ética de Abelardo: a noção de intenção (intentio), segundo a qual o que conta na qualificação de uma ação moral não é o ato em si, mas a intenção do agente. Não sabemos se Heloísa teve acesso à respectiva obra de Abelardo, mas seu relato contém noções desenvolvidas nessa obra. Se o que conta é a intenção na determinação da ação, então tudo o que Heloísa fez foi com boa intenção, ainda que envolvendo ações pecaminosas. Por isso, ainda que culpada, ela se considera inocente. Ela acusa, no entanto, Abelardo, que visaria na relação apenas os prazeres carnais. No restante da carta, ao cobrar de Abelardo que se dirija a ela com mais frequência, Heloísa quer não só resgatar o ideal de amor enquanto dilectio, mas, principalmente, estabelecer a coerência no comportamento moral de Abelardo.

A segunda carta escrita por Heloísa de Argenteuil começa demonstrando preocupação pela vida de Abelardo que, durante o período como abade no Convento de Saint-Gildas, sofre diversas tentativas de assassinato pelos monges locais. Mas logo a narrativa ganha um caráter mais psicológico e o relato ganha forma de autoanálise. Inicialmente, ela se coloca como a fonte dos infortúnios de Abelardo, e se inscreve numa série de referências a mulheres das Sagradas Escrituras que também causaram a queda de homens. Como na primeira carta, ela deixa claro que, se ela é a causa dos sofrimentos de Abelardo, não é com intenção: ela é inocente. 

Por um lado, ela considera que a punição de Deus aos amantes é justa, pois pune, na sua visão, os pecados cometidos visando o prazer, mas também o vínculo instituído com o casamento:

“Com efeito, enquanto gozávamos dos prazeres de um amor inquieto e, para usar um termo mais vergonhoso, mas mais expressivo, nos entregávamos à fornicação, a severidade divina perdoou-nos. Mas logo que legitimamos esses amores ilegítimos e cobrimos com a dignidade conjugal a ignomínia da fornicação, a ira do Senhor abateu pesadamente a sua mão sobre nós e o nosso leito imaculado não encontrou favor diante daquele que outrora tinha tolerado um leito manchado” (Argenteuil, 2008, p. 241).

 

Por outro lado, ela não demonstra arrependimento com relação aos prazeres experimentados e, ainda que tenha cedido ao pedido de Abelardo, e muitas vezes mesmo em relação aos prazeres sexuais, ela não consentiu com o casamento. Ela também deixa claro, como na primeira carta, que sua entrada na vida religiosa foi apenas para obedecer à ordem de Abelardo, e não por devoção a Deus. No que se segue, ela expõe seu conflito interior, denunciando a hipocrisia da sua situação: apesar de ser vista como piedosa pelo mundo exterior e pelo próprio Abelardo, ela é, interiormente, incapaz de esquecer as volúpias do passado, e continua as desejando novamente nos mais diferentes momentos, mesmo durante o sono ou a celebração da missa:

“Quanto aos prazeres dos amantes a que ambos nos entregávamos, devo confessar que foram para mim tão doces que nem me desagradam, nem da minha memória há meio de se varrerem. Para onde quer que me vire, saltam-me sempre aos olhos com seus desejos. Nem durante o sono essas fantasias me deixam em paz. Mesmo durante as solenidades da missa, precisamente quando a oração deve ser mais pura, as obscenas imagens dessas volúpias assaltam tão profundamente a minha pobre alma que estou mais ocupada com essas torpezas do que com a oração. Devia gemer com as faltas cometidas, suspiro antes pelas que não pude cometer. […] Proclamam a minha castidade aqueles que não conhecem a minha hipocrisia. Consideram uma virtude a pureza da carne, quando a virtude não é uma questão do corpo, mas do espírito” (Argenteuil, 2008, pp. 247-249). 

 

Ela recusa, assim, o rótulo de piedade atribuído a ela por Abelardo, expondo, de maneira exemplar, o conflito entre interior e exterior, e mostrando que as condições para a virtude devem ser buscadas na intenção do sujeito, apontando, assim, para uma interiorização da moral. 

A partir da terceira carta, ela muda o tom de escrita. Tal movimento é resultado da frieza da última resposta de Abelardo. Ele reforça a ligação com Heloísa em termos espirituais, referindo-se a ela como a esposa de Cristo. Abelardo também se refere à sua castração como um bem, que o livrou das tentações da carne, expressando seu contentamento com a vida monástica. E a despeito das confissões de Heloísa, Abelardo a toma como suficientemente sábia e virtuosa para resistir às tentações. Ela parece atender ao pedido de Abelardo. Cessa os seus lamentos e pede a Abelardo conselho espiritual, de forma que sua escrita ganha um caráter instrumental. Os temas discutidos a partir daí tratam dos problemas encontrados na vida monástica e na leitura das Escrituras, e a preocupação de Heloísa de Argenteuil se volta então às necessidades da comunidade feminina que está sob sua direção. Assim, ela pede que Abelardo a instrua sobre questões como a origem e natureza da vida monástica de freiras e que escreva uma regra adaptada às mulheres, o que Abelardo atende nas duas cartas seguintes. As regras monásticas do período prescreviam práticas que levavam em consideração apenas as necessidades masculinas, e continham preceitos muitas vezes inadequados para mulheres. Ela pede que Abelardo leve em consideração as especificidades da vida das mulheres nos conventos, como a questão das vestimentas, inadaptadas para o período menstrual, da dieta, dos trabalhos e funções que as mulheres podem exercer, da hospitalidade a homens, etc. Heloísa é, assim, uma das primeiras mulheres a chamar a atenção sobre a especificidade da natureza feminina e de suas funções sociais nas ordens monásticas.

Por fim, ficam em aberto as razões da mudança temática da última carta. Heloísa de Argenteuil estaria apenas obedecendo ao pedido de Abelardo, ou teria realmente passado por um processo total de conversão que levaria a se dedicar completamente à vida espiritual? No final da Carta V, ela parece dizer que ainda não foi capaz de atingir tal ponto, mesmo que o queira. Apesar de não termos mais cartas que contenham elementos para responder à questão, podemos vislumbrar um retorno de Heloísa a esse ponto nos Problemata. Na última questão dessa obra, ela questiona se alguém pode pecar fazendo aquilo que o Senhor permitiu ou mesmo ordenou. A questão remete tanto à ética da intenção como à sua entrada na vida religiosa, ambas resultantes do seu consentimento às ordens dadas por Abelardo. Na Carta II, a primeira carta dela a Abelardo, ela diz claramente que foi apenas o amor a Abelardo, e não a escolha ou o amor a Deus, que a levou a tomar o véu. O fato de que ela retorne a essa questão pode ser lido como um indício de que ela jamais se converteu completamente, ou, simplesmente, sinal de uma mágoa em relação à decisão de Abelardo. Se a questão da verdadeira intenção de conversão de Heloísa fica em aberto, por trás dos seus questionamentos podemos certamente vislumbrar uma reflexão acerca da liberdade e da responsabilidade, consideradas da perspectiva de uma mulher que, mais de uma vez, adotou um modo de vida que não foi aquele que escolheu. Além disso, Heloísa de Argenteuil parece dar grande relevo ao aspecto moral, indicando que a confluência entre vida interior e exterior também deve guiar as práticas e regras da vida monástica.

 

O legado de Heloísa de Argenteuil

 

Além da visão de Heloísa de Argenteuil durante a história ter sido extremamente marcada pela perspectiva de Pedro Abelardo, sua descrição também oscilou entre a de uma heroína trágica que sucumbe a uma paixão que causa sua ruína, e um exemplo de vida virtuosa e piedosa, como indicam as últimas cartas e a descrição de Heloísa feita por Pedro, o Venerável em uma das cartas dirigidas a ela: 

“Eu não havia ainda passado os limites da adolescência, eu ainda não havia entrado nos anos da juventude, quando o teu nome chegou aos meus ouvidos; não era ainda a tua profissão religiosa, mas o teu tão honrado e tão louvável gosto pelo estudo que fazia tua fama. Ouvi falar então que uma mulher, ainda não liberta dos laços mundanos, estava se dedicando ao estudo das letras e, coisa rara, à busca da sabedoria; e que os prazeres do mundo, suas frivolidades e seus desejos, não poderiam afastá-la do propósito de aprender as artes. E numa época em que a mais deplorável apatia por esses dois estudos torna o mundo entorpecido, e a sabedoria não tem onde subsistir, não diria entre o sexo feminino, do qual é totalmente descartada, mas dificilmente se encontra entre as mentes dos homens, você, através do seu zelo, superou todas as mulheres, e há poucos homens que você não superou” (Pedro, o Venerável, 1967, pp. 303304, tradução nossa).

A figura de Heloísa de Argenteuil também serviu de inspiração constante em obras posteriores, como em O Romance da Rosa, de Jean de Meun, nos versos de François Villon, em Júlia ou a nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, ou ainda no poema Eloisa to Abelard, de Alexander Poper, que contribuíram para uma visão romantizada a seu respeito. A leitura das cartas, no entanto, nos apresenta uma outra Heloísa, marcada pelos conflitos internos e as exigências sociais do seu tempo. Ainda que seus escritos não sejam extensos, são originais na maneira como elabora temas como o amor, a natureza feminina e o modo de vida de mulheres em ordens religiosas, sendo uma fonte importante para a compreensão do desenvolvimento do pensamento feminino no período medieval.

 

Referências Bibliográficas

 

Escritos de Heloísa de Argenteuil

 

Cartas

 

Texto latino:

Argenteuil, H. (1953) Heloisae suae ad ipsum deprecatoria. [Carta II] In: The Personal Letters Between Abelard and Heloise. Ed. J. T. Muckle. Mediaeval Studies, v. 15, pp. 68-73

 

________. (1953) Rescriptum ipsius ad ipsum. [Carta IV] In: The Personal Letters Between Abelard and Heloise. Edição de J. T. Muckle. Mediaeval Studies, v. 15, pp. 77-82.

 

________. (1955) Item eadem ad eundem. [Carta VI] In: The Letter of Heloise on Religious Life and Abelard’s First Reply. Edição de J. T. Muckle. Mediaeval Studies, v. 17, pp. 241-253.

 

Abelardo, P., Argenteuil, H. (1855) Petri Abaelardi Opera Omnia. Patrologia Latina, v. 178. Paris Garnier. Reimpressão: Turnholt: Brepols, 1995. 

 

Traduções em língua portuguesa:

Abelardo, P., Argenteuil, H. (2008) Historia Calamitatum. Cartas. Prefácio, tradução e notas de Abel Nascimento Pena. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

 

________. (2002) Correspondência de Abelardo e Heloísa. Texto Apresentado por Paul Zumthor. Tradução de Letícia Santana Martins. São Paulo: Martins Fontes. 

 

________. (1997) Cartas. As cinco primeiras cartas traduzidas do original por Zeferino Rocha, Recife: Editora Universitária da UFPE.

 

Traduções em outras línguas:

Abelardo, P., Argenteuil, H. (1859) Lettres complètes d’Abélard et Héloïse. Tradução de O. Gréard. Paris: Garnier Frères, 1859.

 

________. (1974) The Letters of Abelard and Heloise. Tradução de Betty Radice. Londres: Penguin Classics. 

 

________. (1992) Lamentations, Histoire des mes malheurs, Correspondance avec Héloïse. Tradução do latim e apresentação de Paul Zumthor. Arles: Actes Sud.

 

________. (1996) Héloïse et Abélard. Lettres et vies. Introdução, tradução, notas, bibliografia e cronologia por Yves Ferroul. Paris: Flammarion.

 

________. (2004) Epistolario di Abelardo ed Eloisa. Edição e tradução de Ileana Pagani. Turin: Unione Tipografico-Editrice Torinese. 

 

________. (2007) Abelard and Heloise: The Letters and Other Writings. Tradução de William Levitan. Indianapolis – Cambridge: Hackett.

 

________. (2009) The letters of Abelard and Heloise: A Translation of Their Collected Correspondance and Related Wrintings. Edição e tradução de McLaughlin, Mary; Wheeler, Bonnie. New York: Palgrave Macmillan.

 

Tradução em francês de Jean de Meun:

Jean de Meun (1934) Traduction de la première épitre de Pierre Abélard (Historia Calamitatum). Edição de C. Charrier. Paris: Champion.

 

Cartas de Heloísa e Pedro, o Venerável

Argenteuil, H. (1859) Lettres complètes d’Abélard et d’Héloïse. Tradução de O. Gréard. Paris: Garnier Frères, pp. 562-563.

Pedro, Venerável; Argenteuil, H. (1967) The Letters of Peter the Venerable. Edição de Giles Constable. Cambridge: Harvard University Press. V. 1, pp. 400401. 

 

Cartas de Dois Amantes

Anônimo. (1974) Epistolae duorum amantium: Brief Abaelards und Heloises? Edição e estudo de Ewald Könsgen. Leyde: Brill.

 

________. (2005) Lettres de deux amants attribuées à Héloïse et Abélard. Tradução e apresentação de Sylvan Piron. Paris: Gallimard.

 

Problemata Heloissae

Argenteuil, H. (1885) Heloissae Problemata cum Petri Abaelardi solutionibus. In: Petri Abaelardi Opera Omnia, Edição de J. P. Migne. Patrologia Latina, 178. Paris, Garnier.

 

________. (1991) MacNamer, E. M. The Education of Heloise. Lewinston: Mellen, pp. 111-183.



Bibliografia secundária

 

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Dronke, P. (1984) Women writers of the Middle Ages. A critical study of texts form Perpetua (203) to Marguerite Porete (1310). Cambridge: Cambridge University Press.

 

________.(1992) Intellectuals and Poets in Medieval Europe. Rome: Edizioni di Storia e Letteratura.

 

Duby, G.  (1995) Dames du XII siècle. I. Héloïsse, Aliénor, Iseut et quelques outres. Paris: Gallimard.

 

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Findley, B. H.  (2006) Does the Habit Make the Num? A Case Study of Heloise´s Influence on Abelard´s Ethical Philosophy. Vivarium, v. 44, pp. 248-275, n. 2/3. 

 

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