Sônia Viegas

(1945 – 1989)

Por Miriam Campolina Diniz Peixoto

Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Lattes 

PDF – Sônia Viegas

Arquivo: foto de família

Sônia Maria Viegas de Andrade, ou simplesmente Sônia Viegas, como era mais conhecida, nasceu em Belo Horizonte, em 7 de agosto do ano de 1944. Quarta filha de uma família de 7 filhos, seu pai, Geraldo Viegas, era dentista, e sua mãe, Maria da Conceição Viegas, dividia seu tempo entre os afazeres domésticos e a costura. Desde muito pequena, ela já demonstrava os traços de uma personalidade ao mesmo tempo reflexiva e perspicaz, como testemunha um episódio ocorrido nos seus primeiros anos de escola, quando tinha seis anos de idade. Quando foi solicitado aos alunos que ilustrassem um milagre de Jesus ainda menino, sem se deixar intimidar perante o desafio, Sônia Viegas contentou-se em desenhar uma ‘trouxinha’ de gente enfaixada e colorida de azul e amarelo num pequeno círculo que disse ser a cama do menino Jesus. E sob o desenho escreveu: ‘É muito pequeno. Ainda não pode fazer milagres’.” (VIEGAS, 2009a, p. 185). Leitora voraz de Monteiro Lobato, Sônia venceu um concurso promovido pela TV Itacolomi, ao responder ao vivo a uma série de perguntas sobre o autor e sua obra. Esses são alguns flashes de sua infância.

Em 1963, aos dezoito anos de idade, ela ingressou no curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, e no ano de 1966 obteve concluiu o bacharelado e a licenciatura em Filosofia. Neste período conheceu Luís Aureliano Gama de Andrade, seu colega, com quem se casou em 1966 e viveu até 1974, quando se separaram. Com ele teve duas filhas gêmeas, Ângela e Mônica.

Ao longo de sua formação acadêmica, Sônia Viegas teve contato com o pensamento de grandes filósofos e com as principais tradições da história da filosofia. Neste período, a jovem estudante pôde assentar a sólida base que deu suporte às investidas da intelectual perspicaz que a singularizou entre seus pares. Estes anos de formação vieram a incrementar a sensibilidade ímpar e grande capacidade de compreensão que lhe eram próprias, conformando a refinada intérprete e desenvolvendo sua competência argumentativa, que a qualificaram a ocupar o lugar de destaque que foi o seu nos meios acadêmico e cultural da cidade. 

Dois professores exerceram sobre ela uma forte influência. Henrique Cláudio de Lima Vaz, o Padre Vaz, que veio a se tornar um grande amigo e um fiel interlocutor durante toda a sua vida, despertou o seu interesse pela Fenomenologia e orientou seu pensamento na direção  dos horizontes descortinados pelas suas reflexões no campo da filosofia da cultura e da antropologia. Moacyr Laterza, professor que viria a orientar sua dissertação de mestrado e a tornar-se seu companheiro, proporcionou a Sônia Viegas o contato com a estética, com a filosofia da arte e com o pensamento dos filósofos existencialistas. Essas duas figuras, de personalidades tão diferentes, forneceram a Sônia Viegas os ingredientes fundamentais que engendraram o seu pensamento, concorreram para que ela definisse o seu campo de investigação e reflexão e elaborasse uma concepção pessoal do exercício e do ensino da filosofia. Ela acreditava na potência e no alcance da interrogação e da reflexão filosóficas como experiências capazes de fomentar a vida humana e a cultura em geral. 

Ao longo de sua trajetória acadêmica, Sônia Viegas percorreu as veredas abertas por mais de 2500 anos de história da filosofia, experimentando-se como pensadora e se deixando interpelar por obras e tradições. Ela recolheu tudo aquilo que lhe pareceu útil para ampliar a sua percepção e compreensão do mundo e desenvolver as competências e habilidades necessárias ao exercício da filosofia e da docência. Empreendeu um diálogo vivo e radical com a cultura de todos os tempos e as suas mais variadas expressões, aliando sempre à lucidez e rigor, a intuição e a criatividade, na abordagem das grandes e recorrentes questões que povoam o universo da experiência e da existência humanas.

Em 1977, ela defendeu sua dissertação de mestrado: A palavra poética e a palavra filosófica no Grande Sertão: Veredas. Sua dissertação recebeu em 1984, em um Concurso Nacional de Literatura promovido pela prefeitura de Belo Horizonte, o prêmio “Cidade de Belo Horizonte” na categoria “Ensaio”. Em 1985, após um lento e intenso período de “fermentação” que resultou no aprimoramento possibilitado pela permanente reflexão sobre o tema, ela foi publicada com o título: A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas (Edições Loyola). 

Em 1986 foi diagnosticada com um câncer. Os últimos anos de sua vida foram marcados pela luta contra essa doença que, embora tenha debilitado o seu vigor físico, não reduziu a energia e a vitalidade com que se entregava ao trabalho intelectual. A sua sensibilidade, lucidez e perspicácia intelectuais eram a cada dia mais notáveis. Após mais de um ano de tratamento, veio a recidiva da doença. Nesta ocasião ela compartilhou em carta a um amigo o seu sentimento e as suas resoluções diante da doença.

Vou aprender a selecionar as coisas essenciais, os momentos essenciais, os prazeres essenciais, as ocupações essenciais. Vou fazer dessa difícil caminhada que começo agora uma aprendizagem de melhoria de qualidade de vida e de depuração do sentimento em verdade. […] As perspectivas são de muito sofrimento – quimioterapia pesada –, mas há possibilidade de sucesso. Estou muito saudável fisicamente e num momento de plenitude, em que pensar na morte, ou na doença, significa, para mim, trilhar um caminho mais estreito e mais sutil – e, por isto, mais precioso – de depuração da vida. Não estou com medo, apesar de saber que vou sentir medo, desânimo e raiva muitas vezes. Não me importo em pensar quantitativamente em meu tempo, mas qualitativamente, para que eu e todos que me cercam possam usufruir do que se passa comigo. (Viegas, 2009a, p. 104-105).

Os seus escritos foram reunidos e publicados em três volumes no ano de 2009 pelo seu ex-aluno e colega, o professor Marcelo Pimenta Marques: Vida filosófica; Filosofia Viva; e Filosofia e Arte. Entre outras coisas, encontram-se aí reunidas muitas cartas escritas aos seus próximos, nas quais suas reflexões demonstram a mesma densidade filosófica que o conjunto dos seus escritos. Em uma destas cartas, quando a doença já se encontrava em estado bastante avançado, ela escrevia a um amigo:

Minha doença não me tira a liberdade nem o desejo de viver. É, de princípio, uma forma de me submeter à fatalidade, à necessidade, melhor dizendo, e tento filtrar, através dela e com o seu suporte, o meu desejo. Eu não pedi nem escolhi esse limite, mas tenho de reconhecer que ele é um firme e sólido limite; é uma plataforma de pedra em que me assento, e abro as asas do meu desejo. (Viegas, 2009a, p. 117).

A morte sobreveio para ela aos 45 anos de idade, em 22 de outubro de 1989, no auge de sua vida pessoal, profissional e intelectual. O seu pouco tempo de vida foi vivido intensamente e radicalmente. Diante de sua extensa e densa obra filosófica, é difícil crer que tenha sido produzida em tão pouco tempo. Além disso, vale notar que isso se deu sem que ela se privasse em sua vida de seus papéis de filha, companheira, mãe, amiga e professora. A filosofia lhe infundia vida, e a vida nutria a sua atividade filosófica. De cada um dos segmentos de sua existência, ela soube extrair a matéria-prima, se inspirou em suas diversas atividades e plasmou o seu pensamento e sua vida. Não fosse a sua precoce morte, quem sabe o que ela ainda não teria feito. Através de seus escritos ela continua instigando e convocando a todos ao exercício da filosofia. 

A professora

A sua atividade docente se iniciou no ensino médio em 1965 no Colégio Universitário da UFMG, quando era aluna do último ano do curso de Filosofia. Essa etapa foi marcada por experiências que fomentaram suas reflexões posteriores sobre a educação e, mais especialmente, sobre o ensino da Filosofia. Aos seus olhos, o contato de adolescentes e jovens com a filosofia poderia proporcionar uma rica experiência nesta importante fase da vida. Suas reflexões neste âmbito se encontram registradas nos seguintes artigos: “Ensino e desenvolvimento rural” (1977); “Reflexões sobre a educação” (1979); “Filosofia Já” (1987); “A necessidade da Filosofia” (1988); “Sócrates, a espontaneidade do saber” (1989).

Em 1967, Sônia Viegas se tornou professora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, onde exerceu suas atividades de professora e pesquisadora. Entre os seus colegas e alunos deixou sua marca distintiva: uma intelectual de grande envergadura, capaz de abordar com erudição e criatividade os mais variados temas, nos mais diferentes campos da investigação filosófica e períodos de sua história. 

Ela não fazia distinção entre os alunos regulares da Faculdade de Filosofia e aqueles vindos de fora. Às suas aulas acorriam alunos de diferentes cursos e áreas de conhecimento da Universidade, além de pessoas de diferentes formações e setores da sociedade, todos atraídos pela experiência do exercício filosófico proporcionado pelas suas exposições e reflexões e, principalmente, pelo espírito de diálogo que as animava. Este diálogo era para ela a via por excelência para o desenvolvimento do pensamento e para o aprendizado da interpretação dos textos clássicos. Ela encarava, sem evasivas ou saídas fáceis, o desafio de equacionar de modo radical toda sorte de questões, das mais simples às mais complexas, que acompanham o desenrolar da história humana. Experimentava caminhos e impelia os seus ouvintes a percorrê-los ao seu lado. Em seus cursos, se experimentava uma dinâmica de interfecundação (o termo é de E. Morin no artigo “Sociologie du présent”, in Sociologie, Paris, Fayard, 1984, p. 157-337) entre universidade e sociedade. Através de seus alunos, os saberes e reflexões produzidos no espaço da universidade se difundiam nos mais variados espaços da cidade, ao mesmo tempo que as questões e os impasses recolhidos do cotidiano das pessoas e da cidade vinham a nutrir, provocar e incrementar a investigação e a reflexão desenvolvidas na universidade.

Com o passar do tempo, a experiência luminosa que se desenrolava em suas aulas e cativava seus alunos começou a transbordar para fora da Universidade. Ela era cada vez mais solicitada fora meio acadêmico. Foi assim que, em 1985, ela criou com colegas e amigos o  Núcleo de Filosofia: um espaço que tinha por objetivo oferecer a um público externo à universidade um contato com a filosofia e o acesso à experiência filosófica, seja através de cursos de introdução e de filosofia da arte, seja através de cursos que abordavam um ou outro de seus grandes temas.

Filosofia e cultura

As indagações que pulsavam na cidade e se materializavam nas mais variadas expressões da cultura estimulavam o pensamento de Sônia e lhe enredavam pelas vias da interrogação e da especulação filosóficas. Seu nome era comumente associado às mais variadas manifestações das artes plásticas e cênicas de Belo Horizonte, que receberam dela um número significativo de comentários e análises de cunho filosófico. Os seus cursos de história e filosofia da arte eram concorridíssimos, assim como as visitas guiadas que ela organizava a exposições de arte. 

Um de seus projetos, o “Cinema Comentado”, foi um marco das artes visuais em Belo Horizonte no final da década de 1980. Para cada sessão, ela escolhia um filme que era exibido e dava ensejo a um comentário e a uma reflexão, imbuídos de filosofia. Ao que se seguia um animado diálogo com o auditório. Entre os filmes contemplados destacamos: Gritos e sussurros (I. Bergman, 1972), Esse obscuro objeto do desejo (L. Buñuel, 1977), São Bernardo e Imagens do inconsciente (L. Hirszman, 1972 e 1983-86), A queda (R. Guerra e N. Xavier, 1975), Lição de amor (E. Escorel, 1975), Os visitantes da noite (M. Carné, 1942), O eclipse (M. Antonioni, 1962), A rosa púrpura do Cairo (W. Allen, 1985), Ran (A. Kurosawa, 1985), O sacrifício (A. Tarkovski, 1986), A hora da estrela (S. Amaral, 1985), A festa de Babette (G. Axel, 1987), Um dia muito especial e Casanova e a revolução (E. Scola, 1977 e 1982), O selvagem da motocicleta (F.F. Coppola, 1983), Alice nas cidades  e Asas do desejo (W. Wenders, 1974 e 1987) e A balada de Narayama (S. Imamura, 1983). Boa parte de seus comentários deram origem a ensaios que foram postumamente reunidos e publicados no volume intitulado Cinema Comentado (e também em Marques, 2009a, 2009b e 2009c).

Obra: temas e conceitos 

Em três âmbitos de investigação se desenvolveu de modo mais significativo o pensamento de Sônia Viegas: (1) o da reflexão antropológica, (2) o do diálogo com a literatura e com as demais manifestações artísticas e, enfim, (3) o da via de acesso à experiência filosófica. 

No campo de sua reflexão antropológica, a tese principal consiste na identificação do papel das experiências da alteridade, da linguagem, das afecções e no reconhecimento da dimensão trágica da existência como motores de toda ação e de toda atividade humanas, fonte e matéria-prima de toda atividade criadora. 

Ela experimentava no diálogo com a literatura e com as artes um enorme potencial reflexivo nos confrontos dos grandes temas da experiência humana. A arte, em seu pensamento, não era apenas o lugar de um objeto da história da arte, da filosofia da arte ou da estética, mas se apresentava antes como um caudal de questões existenciais, e, mais do que isso, atuava como um coadjuvante no exercício do pensar. Ela se deixava interpelar pela literatura, pelas artes plásticas e visuais, pela música e pelo teatro, e encontrava nessas expressões da cultura um ponto de partida para abordar aquelas questões que em sua radicalidade mobilizam a especulação e a reflexão humanas desde a noite dos tempos. 

Uma outra faceta do pensamento de Sônia Viegas residia na sua compreensão do potencial presente nas experiências existenciais e na esfera das afecções para o engendramento da interrogação filosófica. Tal compreensão serviu de base para que ela traçasse um caminho e desenvolvesse um programa específico para os cursos de “Introdução a Filosofia” que ministrava tanto no âmbito da Universidade quanto fora dela. Afecções como a admiração, a dúvida, o desejo, a angústia, o amor e a alegria eram por ela consideradas “portas de ingresso” ao filosofar. 

A travessia das veredas trágicas do Grande sertão

Um marco fundamental e fundante do pensamento de Sônia Viegas foi a leitura de Grande Sertão: Veredas (a partir de agora, « GSV »),  obra do grande escritor mineiro João Guimarães Rosa, a partir da qual ela elaborou um pensamento de grande fecundidade e consistência filosófica, cujos reflexos podem ser notados em todos os seus escritos. Nos confrontos desta obra foram se delineando os contornos de uma tese antropológica que desemboca numa reflexão sobre a natureza da linguagem e de seu papel fundador na constituição do sujeito e no caráter trágico da condição humana. Ao percorrer o itinerário de Riobaldo Tatarana, figura central da obra de Rosa, protagonista e aedo de sua própria epopeia, Em sua dissertação ela evidencia a trama na qual se entrelaçam, na narrativa do personagem, sua travessia interior e exterior do sertão. Em uma travessia em que se confundem o tempo do vivido e o tempo da narrativa, ela mostra como ao longo das andanças e das metamorfoses de Riobaldo vai se manifestando o dilema que é, ao mesmo tempo, singular a cada sujeito e universal, porque comum a toda experiência humana. A leitura de Sônia Viegas se desenrola em dois eixos principais: de um lado, a compreensão do quão fundamental é para o homem sua relação com o outro para o conhecer a si mesmo e na determinação de sua abertura para o mundo. A seu ver, há uma conexão direta entre o modo como nos posicionamos diante do mundo e como nos relacionamos com o outro: “homem, sujeito e mundo, sujeito e outros sujeitos são coisas que acontecem juntas” (Viegas, 2009b, p. 57). A figura de Riobaldo revela esta identidade. O seu amor por Diadorim, observa Sônia, “permite a Riobaldo abrir-se para o mundo, descobrir o mundo”, experiência que ela denomina “a grande criação”:

A grande criação não é incorporar alguma coisa; é simplesmente tirar algo, que está encoberto, da sua letargia, e revelá-lo. E Riobaldo tem uma consciência muito clara disso, pois ele mesmo diz que Diadorim foi quem o ensinou a ver as “quisquilhas” da natureza, quer dizer, as coisas que a natureza revela, tudo aquilo que é bonito no mundo. (Viegas, 2009b, p. 57-58).

Nessa abertura para o outro e para o mundo instaura-se a ruptura com a esfera estreita de uma existência individual e particular, e emerge a consciência do universal, condição de possibilidade para uma efetiva realização humana. E neste processo a linguagem atua como instância de manifestação do sujeito em sua relação com o outro e com o mundo. 

Sônia Viegas evidencia a refinada reflexão sobre a linguagem e sobre a intrincada relação linguagem-mundo na constituição do sujeito. Riobaldo somente compreende a si mesmo e se dá conta do vivido quando ele se torna, ele mesmo, objeto da narrativa.  Na trama que entrelaça a narrativa e o vivido a experiência humana ganha sentido. A linguagem deixa de ser apenas um movimento de aproximação ou descrição do vivido. É ao contar a sua história que, de fato, o vivido se efetiva para Riobaldo: o vivido é “domínio instaurado na e pela palavra humana” (Viegas, 2009b). Para ela, a palavra poética exerce uma função mediadora “entre a singularidade das ocorrências e sua universalização através da memória” (Andrade, 1985a; Marques, 2009b). A importância atribuída à palavra viria a ser um ponto de partida recorrente em suas investigações e reflexões. Como eu escrevi em seu perfil bibliográfico (Peixoto, 2019, p. 57), interessava-lhe não tanto encontrar uma definição ou forjar um conceito, mas “responder ao estímulo que provém das palavras que se apresentam à consideração, que provocam, que convidam a irromper-se contra as malhas fixas do conceito e a partir em busca de suas origens mais remotas, acompanhando-as em suas sucessivas mutações”, e isso porque para ela, como para Rosa, “as palavras são escorregadias, passeiam entre sentidos, esquivam-se de cristalizações redutoras”. 

Sônia Viegas compartilhava com Guimarães Rosa o gosto pelo “frescor das palavras recém-nascidas”, ainda não esmaecidas em sua riqueza semântica. Em uma entrevista citada por Sônia em sua dissertação, o escritor dizia: 

… eu utilizo cada palavra como se ela acabasse de nascer, (…) libero a palavra das impurezas da linguagem falada e a reconduzo ao seu sentido original; (…) mais importante para mim é (…) o aspecto metafísico da língua, que antes de tudo faz da minha linguagem a minha língua. (Rosa, 1971, p. 291-293, apud Viegas, 2009b, p. 339).

Um outro tema que ocupa um espaço importante no diálogo com Rosa é o exame das emoções e do seu entendimento do trágico como expressão da condição humana. A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas foi o título que ela escolheu para a publicação de sua dissertação de mestrado. Inspirada pelas considerações de Hegel e Schaerer sobre a figura do herói nas epopeias homéricas, ela reconhece a ação heroica como resultado da tensão entre o arbítrio, o poder de decisão e a eternidade dos valores. É nesta chave que ela examina as emoções de Riobaldo ao longo de sua travessia do sertão, nos combates travados consigo mesmo e com o mundo à sua volta e nas andanças que operam a sua metamorfose em Urutu Branco, o chefe dos jagunços. E nestes embates que não conhecem trégua, Riobaldo se vê enredado pelas divagações de seu espírito entre Deus e o Diabo (Viegas, 2009b, p.354). Sônia Viegas  enxerga aí o que entende por tensão trágica, e que se manifesta em três eixos principais. Primeiramente, na identidade jagunço-sertão, identidade do “plano subjetivo de sua intimidade com a infinidade indomável que se estende à sua volta” – “O jagunço é o sertão” (Viegas, 2009b, p. 354-355). Em seguida, na sua condição de expatriado. O jagunço deve a duras penas “conquistar o seu lugar no mundo”, sem que exista um meio-termo. “O jagunço não pode retroceder a uma condição natural de sertanejo”, o seu é um caminho sem volta (Viegas, 2009B, p. 355). O jagunço, observa Sônia, 

… já nasce extraviado no sertão, condenado a uma vida provisória na qual consome tempo e emoções, apenas saindo do anonimato quando se suprime na personalidade de um herói, sendo reconhecido sob o nome de seus chefes: os medeiro-vazes, os joca-ramiros, os Hermógenes. (Viegas, 2009b, p. 355).

É precisamente nesta impossibilidade de um meio-termo, de uma dissolução da tensão, que se revela aos seus olhos o caráter trágico de toda ação humana. O que singulariza o herói – e o mesmo valeria aos seus olhos para toda realização humana – é a maneira como ele estabelece a sintonia entre “a dimensão particular de sua existência, a singularidade de sua interioridade, e a sua dimensão universal” (Peixoto, 2019, p. 63). E, como último eixo, a tensão homem-mundo, a qual se exprime para ela na convicção “de que existe um valor pelo qual vale a pena morrer”, convicção essa “que desloca a ação épica do herói para a utopia do sertão inteiramente transformado pelas suas mãos”:

O jagunço luta no mundo provisório, mas tem o olhar voltado para um outro mundo. Ele não sabe, de princípio, o que seja esse sertão transfigurado. É, contudo, a partir de sua posição como utopia que ele vai realizando a travessia do sertão real, como que ultrapassando o espaço de ambiguidade, não-ser e vazio em que se dimensiona sua existência. […] o sertão está no limiar da utopia, aquém da certeza que impulsiona a penetração do jagunço em seus mistérios e em suas possibilidades. O cavaleiro andante não mais confunde moinhos de vento com gigantes, não modela sua utopia nos eventos da vida cotidiana, mas alimenta sua certeza com a semente de não-ser – de ainda não-ser – que descobre nos vastos espaços que atravessa procurando um fim (VIEGAS, 2009b, p. 357).

Para Riobaldo vai se aguçando a percepção de sua condição e aos poucos ele vai desvelando a si mesmo, como vemos no passo emblemático que se segue:

O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja! […] Eu não era eu. Respirei os pesos. […] Eu comecei a tremeluzir em mim. […] O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. […] Eu e eu. […] Eu era dois, diversos? (ROSA, 1972, 166, 246, 303, 318, 248, 369). 

Para Sônia Viegas, a instauração da dúvida inaugura o momento de autoconhecimento como consciência do dilema interior, do caráter tensional que se encontra na origem do que somos e do que fazemos. “Fui e não fui eu”, “Eu e eu”. Nessa percepção de uma alteridade interior, ela vislumbra a conversão da “aventura épica em aventura trágica” e percebe identifica nessa tensão  o traço mais propriamente humano. A tragédia grega é a expressão do questionamento que engendra o discurso humano e desvela a própria condição humana. “A situação do homem no universo é trágica na medida em que produz uma ambivalência insuperável” e, neste cenário, ela conclui que “a liberdade emerge como possibilidade de transgressão da ordem” (Viegas, 2009b, p. 370). Para ela a travessia de Riobaldo, em seu duplo e contiguo âmbito, é uma dupla travessia, interior e exterior. Nela a natureza se transfigura e nela se manifesta o caráter trágico da vida humana. Nesse processo, o ser humano pode se encontrar ou se perder se não for capaz de conferir sentido à sua experiência – “viver é perigoso”, vaticina Riobaldo! A obra de Rosa evidencia o entrelaçamento dos planos do vivido, do narrado e do sentido, o qual resulta precisamente do ato de narrar o vivido. A ordem cronológica dos fatos importa menos. O que realmente conta é a escolha do que é significativo para a memória, pois é isso que torna possível à individualidade de Riobaldo se transfigurar na universalidade do sertão (cf. Viegas, 2009b, p. 360). 

Para Sônia Viegas, só é possível ao ser humano perceber o mundo como um outro quando se experimenta a distância que lhe separa dele e quando se restitui a natureza a ela mesma. Não é nas grandes “extensões horizontais” do sertão que Riobaldo se perde, “mas nos vazios de sentido que se multiplicam a cada momento que ele pretende traduzir conceitualmente sua relação com o mundo (Viegas, 2009b, p.359). E esses vazios de sentido, como um grande nada, são “a pedra no meio do caminho” que se interpõe entre o ser humano e o real; sua superação se traduz nas palavras que inauguram a obra de Rosa: “Nonada.” 

Fontes, literatura secundária e outros materiais

Dissertação

Andrade, S. M. V. de. (1977). A palavra poética e a palavra filosófica no Grande Sertão: Veredas. (Dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG).

Edição dos escritos

Marques, M. P. (Ed.)  (2009a). Sônia Viegas. Escritos: vida filosófica. Belo Horizonte: Tessitura.

Marques, M. P. (Ed.) (2009b). Sônia Viegas. Escritos: filosofia viva. Belo Horizonte: Tessitura. 

Marques, M. P. (Ed.) (2009c). Sônia Viegas. Escritos: filosofia e arte. Belo Horizonte: Tessitura.

Livros 

Andrade, S. M. V. de.  (1990). Cinema Comentado: crônicas e ensaios. Organizado por Mônica Viegas com a colaboração de Anna Maria Viegas. Belo Horizonte: Núcleo de Filosofia Sônia Viegas.

Andrade, S. M. V. de. (1985a). A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Edições Loyola. 

Capítulos de livros

Andrade, S. M. V. de. (1982). Considerações em torno de A reflexão sobre a história, de Henrique Vaz. In Palácio, C., S. J. (Org.). Cristianismo e história. São Paulo: Edições Loyola.

Andrade, S. M. V. de.  (1983). Fundamentos filosóficos da obra de Camões. In Duarte, L. P. (Org.). Estudos camonianos. (pp. 35-54). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG.

Artigos em revistas e anais

Andrade, S. M. V. de. (1961). O velho e o mar. Revista do Colégio de Aplicação da UFMG, Belo Horizonte, 1 (1).

Andrade, S. M. V. de. (1969). A fábrica do absoluto. Arxe. Revista do Colégio Universitário da UFMG, Belo Horizonte.

Andrade, S. M. V. de. (1975). Sobre um opúsculo de Kant. Síntese, 2 (4), pp. 103-110.

Andrade, S. M. V. de. (1976). Maquiavel: a execração da tirania. Síntese, 3 (7), pp. 79-90.

Andrade, S. M. V. de.  (1976). Música e sabedoria no Banquete. Kriterion, Belo Horizonte, Ed. Impressa da UFMG, 69, pp. 28-51

Andrade, S. M. V. de. (1977). De Descartes a Hegel: destino da moral provisória. Síntese, 4 (10), p. 45-60.

Andrade, S. M. V. de. (1977). A crítica do direito natural na primeira filosofia do direito de Hegel. Kriterion, 70, pp. 27-39.

Van Reeth, C. (1977). O Banquete ou a ilusão amorosa: leitura de Freud à luz do Banquete. Trad. de Andrade, S. M. V. de. Kriterion, 23, pp. 107-123.

Andrade, S. M. V. de. (1978). A cidade grega. Kriterion, 24, pp. 20-44.

Andrade, S. M. V. de. (1978). Gritos e sussurros: a interdição da linguagem. Boletim Informativo da Sociedade Mineira de Psicologia, 1.

Andrade, S. M. V. de. (1979). A experiência do absoluto em Fernando Pessoa. Boletim do Centro de Estudos Portugueses da FALE-UFMG, 1 (1), pp. 21-47.

Andrade, S. M. V. de. (1979). Reflexões sobre a educação. Revista do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 9.

Andrade, S. M. V. de. (1980). Resenha de Philia: la notion d’amitié dans la philosophie antique, de Jean-Claude Fraisse. Síntese, 19.

Andrade, S. M. V. de. (1981). Fernando Pessoa e a consciência infeliz. Boletim do Centro de Estudos Portugueses da FALE-UFMG, 4.

Andrade, S. M. V. de. (1982). De Hegel a Kierkegaard: o problema existencial e a consciência infeliz. Boletim da SEAF, 1.

Andrade, S. M. V. de. (1982). O universo épico-trágico do Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte, Laboratório de Estética da FAFICH/UFMG.

Andrade, S. M. V. de; Laterza, M.  (1983). O Aleijadinho e o barroco da alegria. Revista do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, número especial. 

Andrade, S. M. V. de. (1987). Ran. Uma luta contra o caos. In: Anais do Simpósio de Literatura Comparada da UFMG, Belo Horizonte: UFMG, pp. 644-649.

Andrade, S. M. V. de. (1988). O mito de Pandora. Kriterion, 79/80.

Andrade, S. M. V. de. (1989). Superfícies virtuais. Revista Isso – Despensa Freudiana, 1.

Artigos em jornais

Andrade, S. M. V. de. (1972). A morte de D.J. em Paris. Comentário do livro de Roberto Drummond. Minas Gerais – Suplemento Literário, 8 de janeiro

Andrade, S. M. V. de. (1973). De um quadro de Velásquez. Estado de Minas, 1973.

Andrade, S. M. V. de. (1974). O Peixe e o Pássaro. Resenha. Estado de Minas, 23 de abril.

Andrade, S. M. V. de. (1976). Minas: paisagem metafísica. Minas Gerais – Suplemento Pedagógico, maio. 

Andrade, S. M. V. de. (1977). Ensino e desenvolvimento rural. Minas Gerais – Suplemento Pedagógico, outubro.

Andrade, S. M. V. de. (1979). Resenha de O poeta e a consciência crítica, de Affonso Ávila. Jornal de Casa, 13 de janeiro. p. 7.

Andrade, S. M. V. de. (1980). Fundamentos filosóficos da obra de Camões. Minas Gerais – Suplemento Literário, 14 de junho.

Andrade, S. M. V. de. (1981). Esse obscuro objeto do desejo. Comentário do filme de Buñuel. Estado de Minas, 14 de abril.

Andrade, S. M. V. de. (1981). Em torno de um conceito de cultura. Minas Gerais – Suplemento Pedagógico, 65, novembro.

Andrade, S. M. V. de. (1985b). A rosa púrpura do Cairo. Comentário. Jornal Estado de Minas, 2 de novembro.

Andrade, S. M. V. de. (1986). A aprendizagem do instante. Jornal Estado de Minas, 21 de junho.

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BiografiaPeixoto, M. C. D. (2019). Sônia Viegas, uma pensadora da cultura. Belo Horizonte: Editorial Conceito.