Caça às Bruxas: o caso Katarina Kepler

Caça às bruxas: o caso Katarina Kepler

 

por Anastasia Guidi Itokazu, professora 

de Filosofia na Universidade Federal do ABC – Lattes

 

Caça às bruxas – o caso Katarina Kepler – PDF

 

Katarina Kepler, escultura de Jakob Fehrle (1884-1974) na cidade de Eltingen. Fonte: Katharina Kepler – Die schwäbische “Hexenmutter” – Wiener Zeitung Online

Quem eram as bruxas? Do que foram acusadas? Que tipo de ameaça representavam?

 

Katarina Guldenmann nasceu em Eltingen, 17 quilômetros a oeste de Stuttgart, Alemanha, em 1546, e, como veremos, o processo movido contra ela nos ajuda a responder a essas perguntas. Seu pai, Melchior Guldenmann, exerceu o cargo de prefeito por quase vinte anos, de 1567 a 1585 e, quando a filha nasceu, a família vivia em uma casa em frente à igreja da cidade (Rublack, 2015, pp. 20-22). Ele era também o proprietário de uma estalagem chamada O Sol, onde Katarina trabalhou na juventude. Após casar-se com Heinrich Kepler, adotando seu sobrenome, Katarina Kepler mudou-se para Leonberg, no ducado de Württemberg. No dia 27 de dezembro de 1571, ela deu à luz seu primeiro filho, Johannes, uma criança franzina que quase morreu de varíola e que se tornaria um dos astrônomos mais importantes da história e um dos intelectuais mais notáveis do século XVII. Ao todo, ela teve quatro filhos que sobreviveram até a idade adulta: Johannes, Heinrich, Christoph e Margaretha. Seu marido, Heinrich Kepler, abandonou a família e partiu como soldado mercenário, e Katarina Kepler sobreviveu cuidando do pequeno pedaço de terra que possuía. Ela também fabricava infusões de vinhos com ervas que coletava nas terras comunais adjacentes a Leonberg, mas não há indícios de que essa atividade fosse remunerada. Em 1615, Katarina Kepler foi formalmente acusada de bruxaria e, após ficar por mais de um ano acorrentada em uma cela, entre 1620 e 1622, ela finalmente foi libertada graças aos invulgares esforços de seu filho Johannes Kepler, vindo a falecer há quase exatos quatrocentos anos.

Segundo Silvia Federici, a caça às bruxas, que vitimou trezentas mil mulheres na Europa da Revolução Científica (Federici, 2017, p. 292), teve seu auge entre os anos 1570 e 1630, período que coincide quase exatamente com a vida de Johannes Kepler (1571-1630). É impossível conhecer exatamente o que pensava Katarina Kepler, já que ela não nos legou textos escritos. Mesmo com a Reforma, que ampliou o acesso das mulheres à leitura e à escrita (Perrot, 2019, p. 91), Katarina Kepler era iletrada, como atesta o fato de que uma das acusações feitas contra ela foi justamente a de incomodar o diretor de escola Hans Beitelspacher — antigo colega de Johannes Kepler na Universidade de Tübingen — pedindo que ele lesse as cartas endereçadas a ela por seu filho e que também escrevesse as respostas. A primazia da escrita como o meio por excelência de transmissão de conhecimento já foi criticada muitas vezes, do Fedro de Platão a Octavia Butler e Davi Kopenawa. Desde Heródoto e Tucídides, a história contada pelos vencedores é uma história escrita. Enquanto isso, a história (e o pensamento) das mulheres e dos povos escravizados, colonizados e expropriados, em grande medida, se perdeu — por não ter sido incorporada ao cânone. No caso das mulheres vitimadas pela Grande Caça às Bruxas, a oralidade era a forma principal de transmissão de conhecimento, conhecimento este que foi em grande parte incorporado e reformulado pelos grandes nomes da Revolução Científica. Obras recentes, como Eu, Tituba, bruxa negra de Salem, de Maryse Condé, e Todo mundo sabe que sua mãe é uma bruxa [Everybody knows your mother is a witch] — em que Rivka Galchen conta a vida de Katarina Kepler em uma narrativa envolvente —, buscam trazer para o registro escrito a voz dessas mulheres, em uma literatura que mescla elementos de ficção com um recurso cuidadoso às fontes históricas.

O esforço para enxergar Katarina Kepler como uma pensadora é portanto um ato político, fruto da decisão deliberada de lançar luz sobre o pensamento de mulheres que não pertenciam à nobreza ou à aristocracia, que não tiveram tutores que as ensinassem o grego e o latim, mulheres que trabalhavam nos campos e foram perseguidas, torturadas e mortas por não se limitarem ao espaço doméstico que o capitalismo nascente reservava a elas, mas que, mesmo assim, ergueram a voz e exerceram uma influência marcante em suas comunidades. 

A morte da natureza [The death of nature] (Merchant, 1980), é uma obra clássica do ecofeminismo que propõe uma crítica incisiva “da mentalidade abusiva e linear de progresso” (Merchant, 1980, p. xxi), ideia que se tornou amplamente difundida quando uma visão de mundo orgânica foi substituída pela metáfora do relógio, característica do período que se seguiu à Revolução Copernicana. Merchant desenvolve a tese geral segundo a qual a mentalidade que via a Terra como um ser animado e acolhedor precisou ser descartada para que as atividades típicas do mercantilismo e da industrialização pudessem ser levadas a cabo. Ela associa o advento da ciência moderna tanto com a caça às bruxas quanto com a destruição cada vez mais voraz da Terra.

Em Calibã e a bruxa, Silvia Federici (2017) discorda da primeira associação, argumentando que visões de mundo anteriores à Revolução Científica não evitaram a escravidão ou a perseguição aos hereges. Ela enxerga a Grande Caça às Bruxas como um fenômeno histórico mais complexo, que dependeu de múltiplas causas. Federici concorda, porém, com Merchant quanto ao fato de que “o mundo precisou ser ‘desencantado’ para poder ser dominado” (Federici, 2017, 313). Se o mundo seria submetido à organização capitalista, a nova ciência deveria fornecer as bases para transformá-lo em mercadoria. “A caça às bruxas se coloca na encruzilhada de um aglomerado de processos sociais que prepararam o caminho para o surgimento do mundo capitalista moderno.” (Federici, 2019, p. 40)

Em uma perspectiva micropolítica, a importância filosófica de buscar reconstruir o pensamento dessas mulheres, a despeito da escassez das fontes, provém do fato de que o capitalismo se baseia em um certo tipo de subjetividade que nos distancia de nossa condição de viventes (Rolnik, 2023, pp. 107-113). O tipo de subjetividade forjado durante a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII ainda nos expropria de nossa potência vital e do sentimento de pertencimento a um mundo animado, que passou a ser encarado como fonte de matéria prima e mercadorias, ao mesmo tempo em que as mulheres se tornam obedientes produtoras de força de trabalho (sendo, mais tarde, também incorporadas a essa força). O mundo vivo das mulheres que foram perseguidas como bruxas é um mundo de subjetividades forjadas na colaboração mútua e no uso coletivo da terra e dos bens comuns, subjetividades que se revelariam incompatíveis com os contextos cada vez mais violentos de acumulação capitalista. “Com as fogueiras se eliminaram aquelas superstições que faziam obstáculo à transformação do corpo individual e social em um conjunto de mecanismos previsíveis e controláveis.” (Federici, 2017, p. 262).

Este mundo em transformação era o mundo de Katarina Kepler. Quando tinha cerca de vinte e cinco anos, em 1596, Johannes Kepler fez um horóscopo de sua mãe, que descreveu como “pequena, magra, de compleição escura, tagarela, briguenta e em geral desagradável” (Caspar, 1993, p. 34). Anos mais tarde, em 1619, Kepler voltaria a mencionar o horóscopo de Katarina Kepler no Livro IV da Harmonia do mundo, ao explicar como os mesmos aspectos no céu podem levar a vidas completamente diferentes a depender do contexto — no caso a sua própria e a de sua mãe:

“Eu conheço uma mulher que nasceu sob quase os mesmos aspectos [que eu], com um temperamento certamente muito inquieto, mas pelo qual não tem nenhuma vantagem no aprendizado teórico (o que não é surpreendente numa mulher) e perturba toda a sua cidade, sendo a autora de seu próprio lamentável infortúnio” (Kepler, 1997, p. 376).

 

Essa passagem da Harmonia do mundo causaria a Katarina Kepler muitos problemas, pois o livro foi publicado durante o seu processo. É revelador que sua inquietação que “perturba a cidade” seja apontada como a causa de seus infortúnios, ainda mais se considerarmos que, na sequência da passagem citada, Johannes Kepler afirma que esse mesmo temperamento inquieto o favoreceu porque, ao contrário da mãe, ele teve a oportunidade de estudar. 

Teria Katarina Kepler influenciado seu filho na sua opção por defender o sistema copernicano? Ou a dizer que o céu é um útero que gera estrelas novas? Não temos como saber; ideias vitalistas não eram incomuns à época de Johannes Kepler, como mostram os estudos de Sarah Hutton (2004) e Ernst Cassirer (2001), entre outros. Entretanto, não deixa de ser notável que seu pensamento tenha sido considerado demasiado exótico por interlocutores como Galileu e Tycho Brahe (e mesmo pela maioria dos historiadores de nossa época, que optaram por um recorte onde sobressai o aspecto matemático de sua obra, em detrimento das discussões — importantes na economia de seus textos — que tratam das almas dos planetas ou do caráter divino do Sol). Enquanto Brahe pede que deixe suas ideias apriorísticas de lado no estudo sobre o movimento de Marte que lhe encomenda, Galileu, na Quarta Jornada dos Diálogos sobre os dois máximos sistemas de mundo, desdenha das teorias que atribuíam as marés à influência da Lua, como foi defendido por Johannes Kepler, por serem baseadas em qualidades ocultas: “não me parece que valha a pena consumir o tempo referindo-as, e muito menos gastar palavras para refutá-las; e se vós prestais assentimento a alguma dessas ou a semelhantes futilidades, estais sendo injusto com vosso próprio juízo […]” (Galilei, 2001, p. 503).

Sabemos que Johannes Kepler não teve muito contato com o pai, “homem vicioso, inflexível, briguento e destinado a um péssimo fim” (Kepler, Apud. Koestler, 1989, p. 156), segundo o horóscopo genealógico que ele escreveu aos vinte e seis anos de idade (Johannes Kepler Opera Omnia, Vol VIII) e sabemos também que seus irmãos não eram pessoas especialmente cultas. Mas ele nos conta no mesmo horóscopo que sua mãe o levou para o topo de uma colina nas imediações de Weil der Stadt quando ele tinha seis anos para ver o Grande Cometa de 1577: “ouvi falar muito do cometa daquele ano, 1577, e minha mãe me levou a um lugar bastante alto para vê-lo” (Koestler, 1989, p. 158). Embora seja impossível reconstruir as partes do pensamento de Kepler que teriam sido influenciadas pelo contato com Katarina Kepler, parece igualmente impossível negar que essa influência tenha acontecido.

Entretanto, é possível procurar por pistas que nos permitam conhecer um pouco melhor Katharina Kepler a partir das acusações que foram feitas contra ela por moradores de Leonberg. Como usualmente acontece com as mulheres das classes populares (Perrot, 2019, p. 26). A principal fonte de que dispomos está em um arquivo público. O seu processo por bruxaria é um dos mais bem preservados da Caça às Bruxas na Alemanha (Rublack, 2015, p. 7), e hoje se encontra em um arquivo de Stuttgart, que pode ser consultado nos Landesarchiv Baden-Württemberg: 209 Bü 1054-56.

Tudo começou em 1614 quando seu filho mais velho, Heinrich, voltou para casa após passar vinte e cinco anos como soldado e guarda imperial em Praga. Embriagado, ele exigiu carne para comer e, ao ouvir da mãe que isso não seria possível naquele inverno severo, chamou-a de bruxa. Algumas pessoas escutaram (Rublack, 1015, pp. 75-76). Em agosto daquele mesmo ano, a mulher do vidraceiro da cidade, Ursula Reinbold, afirmou ter ficado com o lado direito do corpo formigando e começado a mancar após tomar um vinho com ervas oferecido por Katarina Kepler. Isso mostra que Katarina Kepler conhecia ervas medicinais e preparava infusões dessas ervas com vinho, as quais oferecia aos habitantes da cidade. “Depois do Concílio de Trento (1545-1563), a Contrarreforma adotou uma postura dura contra as curandeiras populares, tremendo seus poderes e suas profundas raízes na cultura de suas comunidades” (Federici, 2017, p. 363). O processo contra Katarina Kepler mostra que a situação não era diferente em terras protestantes. É notável que Ursula Reinbold tivesse dois irmãos, e que o primeiro, Urban Kräutlin, fosse barbeiro e médico do irmão do duque Frederick de Württemberg, enquanto o segundo era o administrador da floresta de Leonberg. Afinal, ainda segundo Silvia Federici (2017), a Grande Caça às Bruxas esteve associada tanto ao cercamento das terras comunais, como a floresta de Leonberg, quanto ao cercamento metafórico dos saberes sobre o corpo que foram absorvidos pela nascente medicina científica.

Ursula sofria de uma doença crônica que lhe causava fortes dores, e Katarina Kepler se defendeu admitindo ter se compadecido de sua condição e oferecido a ela um vinho que poderia de fato estar velho, e provavelmente avinagrado por estar guardado há muito tempo, mas que certamente não era enfeitiçado. A acusação de Ursula é a mais importante do processo. Katarina Kepler foi chamada à casa do governador ducal Lukas Einhorn, que se mostraria bastante afeito a levar adiante processos de bruxaria, tendo executado nove mulheres enquanto ocupou seu cargo, entre 1613 e 1629. Ali, na recepção da casa do governador, Urban Krautlin chamou Katarina Kepler de bruxa e exigiu que ela curasse o mal que havia feito a Ursula. Ela argumentou que não poderia curar Ursula porque não era responsável por seu sofrimento, e então Urban desembainhou sua espada e ameaçou-a. Chocada, segundo o relato que consta no processo (Rublack, 2015, p. 81), Katarina Kepler teve o espírito de dizer a Einhorn que não podia ser confrontada daquela forma, sozinha, sem nenhuma proteção, pois era uma mulher idosa (guardiões homens eram requeridos em cortes civis ou criminais) (Rublack, 2015, p. 123). Logo em seguida, a família de Katarina Kepler reagiu. Seu filho mais novo, Christoph, fabricante de utensílios de estanho que gozava de boa reputação na cidade, e o pastor Binder, casado com sua filha Margaretha, acusaram Ursula Reinbold de difamação, acusação que acabaria por complicar ainda mais a situação, pois Ursula passou a lutar muito ativamente pela condenação de Katarina Kepler de modo a limpar seu próprio nome e receber uma significativa quantia de dinheiro em reparação.

Em outubro de 1615, Margaretha escreveu uma carta a seu irmão astrônomo pedindo ajuda, à qual ele respondeu, não poupando esforços dali em diante para salvar sua mãe da tortura e da morte na fogueira. Graças à fama de seu filho, que a mencionou algumas vezes em suas obras e participou ativamente de sua defesa, sabemos muito mais sobre Katarina Kepler do que sobre a maioria das mulheres vítimas da Grande Caça às Bruxas. Nesse sentido, Katarina Kepler é especialmente apta a representá-las, trazendo até nós, quatrocentos anos depois, informações valiosas sobre o que essas mulheres pensavam, como atuavam em suas comunidades, e porque entraram em conflito com a nova organização social que surgia naquele período.

Em 1616, Einhorn recebeu uma segunda acusação contra Katarina Kepler, algo muito significativo pois, de acordo com a Lei Carolina (Constitutio Criminalis Carolina, de 1530) do Sacro Império Romano, acusações de bruxaria deveriam basear-se em mais de um testemunho. Desta vez, uma menina de doze anos de sobrenome Haller, que carregava tijolos, teria sido tocada no braço por Katarina Kepler, e desde então experimentado dores terríveis neste braço, até ter ficado incapaz de mover um dedo sequer. Katarina Kepler tomou uma atitude desastrada que complicou enormemente a sua situação: procurou Einhorn sozinha para oferecer-lhe uma taça de prata, implorando que não reportasse seu caso ao duque, e então saiu de Leonberg para hospedar-se com sua filha Margaretha e o pastor Binder, em Heumaden, pequena cidade pouco a Leste de Stuttgart. Os conselheiros ducais ordenaram que ela fosse presa, mas Einhorn logo soube que ela havia partido para Linz, às margens do Danúbio, para encontrar seu filho astrônomo. Katarina Kepler agora estava fora do ducado de Württemberg e do alcance de seus acusadores.

Ursula Reinbold então escreveu ao duque John Frederick, prometendo rezar por ele e seus filhos, e pedindo em troca que Katarina Kepler fosse presa. De seu lado, Christoph e o pastor Binder também escreveram ao duque uma longa carta que ele provavelmente não chegou a ler (Rublack, 2015, p. 119), questionando a reputação de Ursula bem como da família Haller, mencionando o episódio em que sua mãe fora interrogada na casa do governador Einhorn e explicando que ela não havia fugido de Leonberg, mas seguido o conselho de seu filho ilustre indo juntar-se a ele.

Em janeiro de 1617, foi Johannes Kepler que enviou uma carta cuidadosamente redigida à chancelaria do duque, afirmando a inocência da mãe bem como sua disposição para defendê-la e, apesar da carta enviada à chancelaria pelo vidraceiro Reinbold, a ordem de prisão foi suspensa e ficou acordado que Einhorn se limitaria a interrogá-la e, perguntando sobre a taça, se tinha ou não tocado o braço doente da filha dos Haller e sobre sua saída apressada de Württemberg.

Outras acusações vieram em seguida: Katarina Kepler foi responsabilizada pela morte de seu marido na guerra, pois fora ela que o teria expulsado de casa repetidas vezes (na verdade, há registros de que ela chegou a deixar os filhos com os avós para ir buscá-lo). O professor da escola, Hans Beitelspacher, acusou-a de ter entrado em sua casa quando as portas estavam trancadas para pedir que escrevesse uma carta. Em outra ocasião, dez anos antes, Katarina Kepler o teria chamado a sua casa e oferecido um vinho, que causara uma dor terrível no quadril e quase o deixara coxo. A padeira contou que Katarina Kepler havia pedido leite a ela, que inicialmente recusou, mas acabou por fornecê-lo. Ainda assim sua bezerra morreu, evidentemente porque Katarina Kepler a teria montado até matá-la. É notável como essas acusações vão ao encontro da descrição que Silvia Federici faz das mulheres que foram perseguidas como bruxas:

“Eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social. Ameaçavam, lançavam olhares reprovadores e amaldiçoavam quem se recusava a ajudá-las; algumas se tornavam inconvenientes, aparecendo de repente, e sem serem convidadas, na soleira de vizinhos e vizinhos que viviam em melhor situação […]” (Federici, 2019, p. 52).

 

Pouco depois, uma mulher chamada Dorothea Kleb contou que cinco anos atrás havia contratado uma jovem costureira, que trabalhara na casa de Katarina Kepler e passara a noite lá. A jovem lhe contara que, ao ver Katarina Kepler vagando durante a noite, teria perguntado por que não ia dormir, e ela teria respondido: “Você não quer se tornar uma bruxa?” (Rublack, 2015, p. 161), prometendo alegria e devassidão além da conta e argumentando que “não há vida eterna” e que “quando um homem morre ele deixa de existir, como as bestas”. Ela teria dito ainda que “a única razão para existirem pastores é para que as pessoas possam cruzar as ruas quando forem se visitar sem temer a violência” (Rublack, 2015, pp. 161-162). Esse trecho do processo parece demasiadamente original para ter sido inventado, delineando uma visão de mundo que não podia ser anunciada publicamente nos tempos de domesticação das mulheres e intolerância religiosa que precederam a Guerra dos Trinta Anos, mas que sobrevivia nas conversas noturnas partilhadas entre mulheres no ambiente doméstico. O controle da sexualidade feminina estava no cerne do fenômeno complexo que foi a Caça às Bruxas:

“Na Europa da Era da Razão, eram colocadas focinheiras nas mulheres acusadas de serem desbocadas, como se fossem cães, e elas eram exibidas pelas ruas; as prostitutas eram açoitadas ou enjauladas e submetidas a simulações de afogamentos, ao passo que se instaurava a pena de morte para as mulheres condenadas por adultério” (Federici, 2017, p. 203).

 

Mais acusações seguiram: o açougueiro teria sofrido de dor no quadril e visão embaçada simplesmente porque Katarina Kepler passou perto dele. Katarina Kepler se defendeu alegando que o açougueiro havia cortado uma árvore verde, cheia de seiva vital, e os problemas circulatórios que o tornaram manco eram uma punição. Este argumento deixa entrever uma percepção do mundo natural como vivo, divino e interconectado semelhante àquela expressa por Johannes Kepler em obras como De stella nova, De niue sexangula e na própria Harmonia do mundo, visão bastante diferente daquela que o capitalismo nascente deveria impor para justificar a exploração cada vez mais intensiva da natureza e que encontraria sua expressão máxima nos Princípios de filosofia de René Descartes. 

Um homem a quem Katarina Kepler pediu que jogasse esterco em sua terra, e que não pôde fazê-lo porque estava sem tempo, perdeu um porco, e agora a culpava por isso. O caso acontecera em 1590. Um outro, que se recusara oito anos antes a carregar feno para Katarina Kepler, tinha visto seu cavalo adoecer. O animal se recuperara, mas ainda assim ele a acusou formalmente. Um outro ainda a acusava de ter matado seus filhos dez anos antes, pois ela fora à sua casa quando estavam doentes para oferecer conselhos sobre como tratá-los, mas eles haviam morrido.

Em meio a todas essas acusações, surgiu um relato mais substancial: dezoito anos antes, Katarina Kepler procurara o coveiro de Leonberg para pedir que desenterrasse o seu pai, com o objetivo de usar seu crânio para fazer uma taça de prata que queria presentear a seu filho Johannes, que na época era astrônomo imperial em Praga (Rublack, 2015, pp. 170-171). Crânios eram considerados objetos de feitiçaria e, embora seja compreensível que ela quisesse presentear seu filho com um objeto pitoresco que não era incomum nas cortes por onde ele circulava, essa acusação acabou por revelar-se gravíssima. 

Redigindo sua defesa, Johannes Kepler procurava pelos motivos que teriam levado sua mãe a ser de tal forma perseguida em Leonberg: “uma viúva com muitas crianças pequenas, que se alimentava escassamente, cuidava de sua terra e defendia seus interesses, tendo sido muitas vezes arrastada para querelas várias, infelicidade e inimizade” (Rublack, 2015, p. 126). O processo movido contra Katarina Kepler nos mostra que, embora ela não fosse exatamente uma mulher pobre, era uma viúva, que trabalhava duramente na pequena terra que possuía, conhecia as plantas e fazia infusões que se dispunha a partilhar com quem precisasse (afinal, Ursula Reinbold não era uma pessoa próxima dela) e que eventualmente recorria aos vizinhos para pedir alguma ajuda em momentos mais difíceis. Era também uma mulher ativa, falante e de opiniões fortes. Isso corresponde bem de perto à descrição que Federici faz das mulheres que foram perseguidas neste período de cercamentos e expropriações:

“Quanto aos crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem mais do que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o “mau olhado”, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a inadimplência no pagamento do aluguel, a demanda por assistência pública. […] Encontramos um padrão similar na Escócia, onde as acusadas também eram cottars pobres, que ainda possuíam um pedaço de terra próprio, mas que mal sobreviviam, frequentemente despertando a hostilidade de seus vizinhos […]” (Federici, 2017, pp. 310-311).

 

No mundo que presenciava o advento do capitalismo, Johannes Kepler identificou uma impaciência crescente com as mulheres idosas: “na visão dos jovens, este mundo vil já durou tempo demais, e na sua idade avançada se tornou moroso, como no vulgar e anticristão provérbio: rápido para a estaca com as mulheres velhas” (Kepler, Apud. Rublack, 2015, p. 127). Severin Stahl, um dos juízes leigos do processo, chegou a afirmar que “não era a idade de Katarina Kepler que levantava suspeita, mas suas andanças incessantes e intrusões nas casas alheias” (Rublack, 2015, p. 219). Katarina Kepler também se recusou a chorar no interrogatório, atitude que era associada ao comportamento de uma bruxa. Na ocasião, ela teria respondido ao juiz: “Eu já chorei tanto, que agora não posso mais chorar” (Rublack, 2015, p. 220). 

Consta no processo a reza que Katarina Kepler dizia para seus filhos quando eles estavam gravemente doentes, e que também recomendou ao açougueiro. A reza acabou sendo considerada inócua pelo tribunal:

“Deus me seja bem-vindo

No Sol e nos dias ensolarados

Você cavalga em nossa direção

Eis aqui um humano, permita-se ser indagado

Deus, Pai, Filho e Espírito Santo

E a Santíssima Trindade

Dê a essa pessoa sangue e carne

E também uma boa saúde” (Rublack, 2015, p. 202).

 

Nessa reza chama a atenção a menção ao Sol, afinal, seu filho foi um dos mais prolíficos defensores do sistema heliocêntrico de Copérnico. Certamente não é possível provar a partir disso que foi por influência de Katarina Kepler que Johannes se tornou um copernicano, mas esse é um ponto que se soma a outros apontados acima para indicar que Katarina Kepler deve de fato ter exercido alguma influência significativa no pensamento do mais filosófico dos astrônomos da Revolução Científica.

Katarina Kepler, magra, de cabelos brancos e sem dentes foi presa na casa de sua filha Margaretha e do pastor Binder na manhã de 7 de agosto de 1620. Ela foi encontrada nua, escondida dentro de um baú sob o abrigo de um cobertor (Rublack, 2020, p. 200). Inicialmente, ficou presa em Stuttgart, mas seus filhos conseguiram evitar que ela ficasse na temível “torre dos ladrões”. Ainda assim, ela permaneceu acorrentada à parede, e a argola de metal feriu sua perna. Em uma ocasião, ela pediu ovos a sua filha Margaretha, pois não suportava a comida do cárcere (Rublack, 2015, p. 199). Em dezembro de 1620 foi transferida para uma cela na cidade de Güglingen, onde permaneceu até o verão de 1621. Johannes Kepler trabalhou na defesa de sua mãe em Tübingen, onde pôde contar com a ajuda do eminente advogado Christoph Besold, seu velho amigo. No dia 28 de setembro de 1621, Katarina Kepler foi levada à câmara de tortura e os instrumentos foram mostrados a ela. Mesmo assim, nada confessou. Seis dias depois, ela foi libertada.

Katarina Kepler morreu no dia 13 de abril de 1622, em Leonberg, aos 75 anos de idade.

 

Referências Bibliográficas

 

Link para acesso ao processo de acusação de Katarina Kepler:

Landesarchiv Baden-Württemberg: 209 Bü 1054-56: http://www.landesarchiv-bw.de/plink/?f=1-1224228

 

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