Judith Butler

(1956)

Por Carla Rodrigues

Professora adjunta do Departamento de Filosofia da  Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Lattes

PDF – Judith Butler

Judith Butler é uma filósofa estadunidense nascida numa família judia, em Ohio, em 24 de fevereiro de 1956. Sua companheira é a cientista política Wendy Brown (1955). Juntas, elas compartilham a parentalidade  de Isaac, homenageado em alguns de seus livros (a dedicatória de Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence, por exemplo, diz “Para Isaac, que pensa de outra forma”). Cursou Filosofia na Universidade de Yale, hoje é professora de Literatura Comparada no Departamento de Retórica da Universidade da Califórnia, em Berkley, onde também é fundadora do Critical Theory Program (Programa de Teoria Crítica) e do International Consortium of Critical Theory Programs (Consórcio Internacional de Programas em Teoria Crítica). É professora titular da cátedra Hannah Arendt na European Graduate School, Suíça. Intregra diversas organizações sociais, como a American Philosophical Society, o Jewish Voice for Peace e o Center for Constitutional Rights

Butler é reconhecida com inúmeros prêmios, destacando-se o Prêmio Adorno, recebido em Frankfurt, em 2012, pela contribuição para o feminismo e a ética filosófica, e o Prêmio Brudner, na Universidade de Yale, pelos estudos sobre homossexualidade, tema de união entre sua pesquisa e seu ativismo político em defesa dos direitos de pessoas gays, lésbicas e trans. Seu trabalho mais recente articula teoria crítica, ética, judaicidade e agudas críticas à violência do estado de Israel contra o povo palestino. O início do seu interesse por filosofia aconteceu em interlocução com o judaísmo. Na adolescência, teve problemas na escola: no início de Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade (Butler, 1990 [2003]), ela relata que desde a infância havia descoberto que, se problemas eram inevitáveis, era melhor ter os problemas que criasse em vez dos que para ela fossem criados. Como uma punição por mau comportamento, sua professora sugeriu encaminhá-la para um aconselhamento com o rabino da comunidade. O que era um incipiente interesse por filosofia cresceu e intensificou seu engajamento em movimentos sociais e políticos até chegar à Universidade de Yale, onde estudou com Seyla Benhabib e participou da Yale School of Deconstruction. Foi lá que, em 1984, aos 28 anos, defendeu a tese de doutorado Subjects of Desire – Hegelian Reflections in Twentieth -Century France (Butler, 1987; 1999). 

 

Principais interlocutores/as filosóficos/as  

Gosto de propor que Butler é uma pensadora em trânsito. Sua primeira pesquisa transita entre a Alemanha de Hegel e a França do início do século XX, onde, a partir de 1930, filósofos como Jean Wahl, Alexandre Koyré, Alexandre Kojève e Jean Hyppolite foram responsáveis por novas interpretações e traduções de Hegel, notadamente da Fenomenologia do Espírito. Esta primeira geração de leitores franceses de Hegel influencia filósofos como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Paul Sartre e a filósofa Simone de Beauvoir, objetos de sua pesquisa. Em Butler, a questão do sujeito é tributária de pelo menos duas fontes: na sua tese de doutorado, o sujeito do desejo, de Hegel, perturba o sujeito da razão da tradição filosófica; em sua interlocução com a “virada linguística”, o sujeito passa a ser compreendido como uma rede aberta a sucessivas interpretações. Butler transita novamente, desta vez entre idealismo e o pós-estruturalismo do qual se aproximara em Yale, onde foi aluna de Jacques Derrida e Paul De Man. Argumento que há nela um estilo desconstrutivo, um modo de leitura dos textos que se vale dos autores para ir além deles, posição de leitura resumida na citação de Gaiatry Spivak em uma das epígrafes de Bodies that matter: On the Discursive Limits of “Sex”: 

Se entendo a desconstrução, desconstrução não é a exposição de um erro, certamente não o erro de outros autores. A crítica, na desconstrução, a mais séria crítica na desconstrução, é a crítica de algo extremamente valioso, aquilo sem o qual não se pode fazer nada (Spivak apud Butler, 1993, p. 27 [2019, p. 55]).   

Isso que, embora não seja método, é característica marcante na abordagem pós-estruturalista, muitas vezes foi confundido, também em outras autoras e autores, com destruição ou aniquilamento. O equívoco chegou a situar Butler como “má leitora” de Beauvoir, por operar, a partir da leitura de O segundo sexo, uma desconstrução do par sexo/gênero, supostamente desconsiderando que o conceito de gênero não consta na obra da filósofa francesa (Femeníias, 2012). No entanto, não haveria radicalidade do pensamento de Butler sem um duplo gesto: ler Beauvoir com e contra ela. Não para criticá-la – no sentido vulgar – mas para fazer da crítica filosófica ponto de partida para formulações próprias. Assim entendo a postulação de Butler: “Aparentemente, a teoria de Beauvoir trazia consequências radicais, que ela própria não antecipou” (Butler, 1990, p. 112 [2003, p. 163]).  

Mobilizada pela concepção de sujeito no existencialismo, Butler estabeleceu um debate produtivo com Beauvoir na primeira parte de Problemas de Gênero, publicado em 1990 e, desde então, um marco para a filosofia feminista. Uma das suas consequências filosóficas foi perturbar o conceito de gênero, sobre o qual teorias feministas pareciam estar assentadas mais ou menos confortavelmente até ali.  Embora pudesse parecer que as suas primeiras interrogações se somassem aos discursos que anunciavam o fim dos movimentos feministas, os desdobramentos dos debates feministas revelam que este gesto inicial de Bulter se mostrará fundamental para a renovação dos feminismos, com a proposição de que deixassem de ser feitos apenas em nome do sujeito mulher. Se compreendermos que o modo como Butler problematiza o conceito de gênero se insere em um debate filosófico canônico – a questão do sujeito – teremos a dimensão da sua contribuição para a filosofia. 

Embora Problemas de Gênero (Butler, 1990 [2003]) a tenha tornado uma celebridade acadêmica, quando publicado nos EUA, há 30 anos, não foi exatamente bem recebido. Butler se dedicou a dialogar com críticos, respondendo às interpelações recebidas. Desse empenho vieram três livros: Bodies that matter: On the Discursive Limits of “Sex” (Butler, 1993 [2019]), The Psychic Life of Power (Butler, 1997 [2017]), Excitable Speech: A Politics of the Performative (Butler, 1997). No primeiro, desenvolveu o argumento de que, embora o gênero seja performativo, os corpos importam nas formas de discriminação; no segundo, retomou o problema do sujeito, pensando estruturas de poder que moldam nossa vida psíquica e sustentam  a heteronormatividade; no último, explorou a performatividade da linguagem como pensada por J. Austin e relida por Derrida, origem da noção de performatividade de gênero apresentada em Problemas de Gênero. 

A interlocução com teorias feministas levou Butler a transgredir fronteiras disciplinares, transitando, novamente, entre diferentes campos. Antropólogas feministas têm forte presença no pensamento de Butler. Gayle Rubin, por exemplo, é fonte da crítica de Butler ao estruturalismo de Lévi-Strauss e à centralidade do complexo de Édipo, em Freud. Rubin escreveu o clássico The Traffic in Women: Notes on the “Political Economy” of Sex (1975), onde, de um só golpe, recusa a antropologia de matriz totêmica na qual Freud baseia o Complexo de Édipo e a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, influência explícita na psicanálise de Jacques Lacan. Já as investigações sobre gênero da antropóloga inglesa Marilyn Strathern (Strathern, 1992) comparecem em Antigone’s Claim: Kinship Between Life and Death (Butler, 2000 [2014]). Próxima da antropologia feminista, Butler reforça suas críticas a Jacques Lacan propondo, em certa medida, a possibilidade de diferentes psicanálises a partir de outra concepção de simbólico. O leque de interlocuções na psicanálise se amplia e Butler convoca teóricos como Julia Kristeva, Luce Irigaray, Jean Laplanche e Melanie Klein. Em 2003, a publicação de Problemas de Gênero no Brasil foi iniciativa do psicanalista Joel Birman, coordenador da coleção “Sujeito e História” em que o livro foi editado, impulsionando aqui um significativo diálogo com a teoria psicanalítica (Porchat, 2007; Greiner, 2016; Fidelis, 2018).  

Embora Hegel nunca perca relevância, os conceitos de assujeitamento e biopolítica em Michel Foucault se adensam, e ela se aproxima de autores ligados à teoria crítica, como T. Adorno. A judaicidade – apoiada em Emmanuel Lévinas, Walter Benjamin, Hannah Arendt ou mesmo Derrida – vai sendo constituída como elemento ético-político. Durante os 20 primeiros anos do século XXI, Butler agudiza sua crítica ao neoliberalismo, em grande medida em interlocução com a obra de Wendy Brown. Neste período, publicou 11 livros – não contabilizando as organizações –, sendo o mais recente The Force of Nonviolence: The Ethical in the Political (Butler, 2020).  

Outros autores aparecem de modo mais pontual – como o sociólogo Erwing Goffman, influência em Frames of War: When is Life Grievable? (Butler, 2009 [2015]), o pensador palestino Edward Said, em Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism (Butler, 2012 [2017]) e o filósofo italiano Giorgio Agamben. Ela também transita no pensamento pós-colonial, em interlocução com Gaiatry Spivak, com quem publica Who signs the nation-state? Language, Politics, Belonging. (Butler; Spivak, 2007 [2017]). É leitora de Frantz Fanon, Homi Bhabha e Achile Mbembe. Sobre a crítica da violência de Estado, incorpora muitos aspectos da filosofia de Arendt. Ao recuperar a proposição arentiana de binacionalismo (Butler, 2012 [2017]), propõe uma saída para a violência do estado de Israel contra a Palestina e repete o duplo gesto feito em relação a Beauvoir: pensa com e contra Arendt a fim de retomar a filósofa alemã, com quem discute a noção de aparecimento ao pensar a performatividade corporal e as manifestações públicas de exposição da precariedade (Butler, 2015 [2018]). 

  

Temas e conceitos 

Há leitores que se sentem mais confortáveis em abordar a filosofia de Butler depois de dividir a sua obra em duas partes, deixando para trás os problemas de gênero, como se, na virada do século XXI, depois do 11 de setembro, sua filosofia enfim se voltasse para questões ético-políticas. Na divisão, haveria o obstáculo de compreender gênero como tema filosófico. Recuso a ideia por considerá-la carregada de pelo menos dois equívocos: 1) o abandono dos problemas de gênero em prol de uma filosofia política depende da compreensão do gênero como um tema menor; 2) seria preciso sustentar o argumento de que gênero é um tema restrito à teoria feminista, oposto do que propõe a autora. Na perspectiva que adoto, há pelo menos três movimentos em relação ao conceito de gênero. O primeiro será rebaixá-lo como categoria central da teoria feminista pela sua inevitável ligação com o binarismo da diferença sexual masculino/feminino. Ela apontará para a heteronormatividade como operador crítico das diversas formas de discriminação, ampliando a teoria feminista para outros marcadores, como coerência corporal, escolha de objeto de desejo, além de raça, em uma interlocução com as feministas negras contemporâneas a ela que estavam formulando a proposição de interseccionalidade (Crenshaw,1989). Em um segundo movimento, Butler cria problemas com o conceito de gênero ao perceber que, embora as teorias feministas tivessem deslocado o fundamento da identidade do sexo para o gênero, ainda era preciso oferecer a um corpo nascido mulher a garantia da passagem ao gênero feminino. Tornar-se mulher fechava, assim, a abertura proposta pela filosofia de Beauvoir. O terceiro e último gesto que caberá discutir aqui será a permanência do conceito de gênero – como categoria central na discussão ético-política sobre que vidas importam.  

Depois do 11 de setembro, a obra de Butler ganha novos contornos. Se for verdade que a filosofia nasce do espanto, do trauma, pode ter valor de hipótese a ideia de que, assim como as grandes guerras na Europa tiveram imenso impacto na filosofia, sobretudo na Alemanha e na França, o 11 de setembro produziu efeito semelhante em filósofos/as contemporâneos/as. Butler, em diálogo com questões políticas do seu tempo, não ficou indiferente à guerra dos EUA contra o Iraque e o Afeganistão, nem tampouco poderia ter ignorado as consequências das ações violentas do governo. Assim, se nos anos 1990 tematizou a ausência de direito ao luto para a população gay, vítima do HIV/Aids, e o  descaso em relação a essas perdas, a partir de 2001 o tema do luto se expandiu, ganhando densidade e se constituindo como fio condutor em seu pensamento (Rodrigues, 2017). 

Como a maioria dos autores/as, Butler desenvolve vocabulário próprio, ressignificando termos herdados da tradição, ou se valendo de conceitos existentes e promovendo certas torções que permitirão a costura de um pensamento original. Alguns termos da sua gramática filosófica indicam seu trânsito entre diferentes áreas e questões, como pretendo sugerir a seguir. Diante da impossibilidade de abarcar toda a complexidade da obra, trata-se de apresentar algumas escolhas.  

 

Desejo e reconhecimento 

No prefácio para Subjects of desire, Butler apresenta sua pesquisa como “questionamento sobre o percurso do desejo, os trajetos de um sujeito desejante, sem nome e sem gênero em virtude de sua universalidade abstrata” (Butler, 1987, p. xix). Era uma indicação da sua trajetória acadêmica: uma investigação permanente do problema filosófico e político da concepção de um sujeito universal abstrato, sem gênero, corporalidade, sexualidade, raça, etnia, religião, local de nascimento, idade e quantos outros tantos marcadores for preciso adicionar para compreender que a categoria existe apenas para produzir o apagamento de todas as formas de vida que não alcançam o estatuto da universalidade. Nesse percurso, Hegel, lido como aquele que introduziu o desejo como problema filosófico, terá protagonismo inicial. O sujeito da Fenomenologia do espírito, argumenta Butler, quer conhecer a si mesmo e encontrar no “eu” a totalidade de seu mundo exterior. De maneira interessada, ela vai à recepção francesa de Hegel para localizar o momento em que o desejo é tomado como ponto de partida e de reformulação crítica. No prefácio à segunda edição de Subjects of Desire, ela revê a apresentação do próprio trabalho, agora definido como “uma indagação crítica da relação entre desejo e reconhecimento” (Butler, 1999, p. viii). Aqui, creio que Butler nos autoriza a sustentar esta articulação entre desejo e reconhecimento que encontramos numa camada de interpretação de Problemas de Gênero (BUTLER, 1990 [2003]) nem sempre percebida por leituras, por vezes apressadas ou mesmo interessadas em situá-lo como exclusivamente voltado a criticar a teoria feminista e, em substituição, inaugurar a teoria queer (Rodrigues, 2019).  

A hipótese que defendo é que o ponto central de sua interpelação aos feminismos está ecoando a questão do sujeito,  desestabilizado pelo desejo e, com isso, desestabilizador da universalidade abstrata do sujeito da razão; sujeito cuja sustentação ontológica se enfraquece diante da alteridade, problema ético-político a perpassar a trajetória de Butler. Trata-se, portanto, de questão de natureza filosófica, cujas formulações se entrelaçam à sua abordagem hegeliana e aos desdobramentos do que chama de “questões pós-hegelianas” (Butler, 2005, p. 26). O problema do reconhecimento se modifica, sendo pensando agora em outra chave: o que determina a condição de possibilidade do reconhecimento? A esta indagação se soma o conceito foucaultiano de assujeitamento, incidindo no debate político sobre os fatores sociais, culturais e econômicos que permitem o aparecimento de determinados sujeitos e não de outros. É importante mencionar aparecimento como um termo tomado da leitura de Hannah Arendt.  

Desejo e reconhecimento são termos que comparecerão principalmente no debate inicial de Problemas de Gênero, notadamente no capítulo 1, “Sujeios do sexo/gênero/desejo”, onde está o endereçamento à teoria feminista e o questionamento das “mulheres” como sujeito do feminismo. Tratava-se de pensar os limites de fazer o feminismo em nome da mulher como categoria universal abstrata, retomando um problema caro à teoria feminista: lutar por incluir a mulher como parte do sujeito universal abstrato ou pelo reconhecimento da mulher como sujeita, ou seja, marcada por sexo e gênero, abrindo espaço para a emergência de outros sujeitos de direitos? (Scott, 1988; 1999).  Butler segue Beauvoir muito de perto na percepção crítica de que o sujeito universal abstrato esteve colapsado ao masculino (Butler, 1990, p. 15-16 [2003, p.31). Na mobilização do tema do desejo em Problemas de Gênero, este comparece de modo ambíguo, tanto desfazendo o binarismo do par sexo/gênero quanto servindo à crítica da coerência entre sexo biológico, gênero social e desejo sexual. A tríade funciona para incluir o desejo – elemento de desestabilização – na configuração dos sujeitos.  

 

Identidade e performatividade de gênero  

Se o sujeito do desejo é aquele que não cabe numa identidade estável, e se o que interessa a Butler é o ponto deste abalo, ali onde há uma fenda aberta para a relação com a alteridade, então seu modo de pensar a identidade estará afetado pela questão que enuncia em Subjects of desire: “qual é a relação entre desejo e reconhecimento e a que se deve que a constituição do sujeito suponha uma relação radical e constitutiva com a alteridade?” (Butler, 1999, p. xiv). O problema é dirigido às teorias feministas e a dificuldade de estabilizar a mulher numa categoria de sujeito universal abstrato. Havia, argumentava Butler, um paradoxo em preconizar a liberdade das mulheres em nome da alteridade e, ao mesmo tempo, exigir que, para obterem reconhecimento, fossem configuradas numa identidade estável e universal (Riley, 1988).  

Assim, Butler articula dois problemas: a política feminista centrada no conceito de gênero estaria condenada a se manter presa à diferença sexual do binarismo masculino/feminino, que apenas substituiria o par homem/mulher; o gênero estaria  destituído, assim como o sexo, do fundamento ontológico da identidade, já que a substituição de sexo natural por gênero construído seria apenas uma transferência da natureza para a cultura. Butler pretende recuperar atributos como instabilidade, expropriação e deslocamento, que perturbam a pretensa estabilidade da identidade (de gênero). Emerge daí a proposição de performatividade de gênero, desdobramento da radicalização da ruptura de Beauvoir com o essencialismo biologizante: “Não se nasce mulher, torna-se” ganha em Butler novos contornos (Rodrigues, 2020). A performatividade de gênero seria então o deslocamento da identidade de gênero, sendo a primeira indicação de elementos instáveis e artificiais que nos constituem, e a segunda exigência de elementos estáveis e naturais atrelados à compreensão metafísica do humano. Com a proposição de performatividade de gênero, há o que chamo, ainda que provisoriamente, de “virada normativa”, a partir da qual as normas sociais, inclusive as de gênero, ficam esvaziadas de sua fundamentação na natureza (homem/mulher) ou na cultura masculino/feminino).   

O paradigma da artificialidade da ligação entre sexo anatômico biológico e identidade de gênero será a drag queen. Ao performatizar um gênero feminino, ela representa elementos tidos como femininos, artificializáveis em qualquer corpo. A ausência de fundamento natural para o gênero deu margem à compreensão da sua performatividade como mero ato de vontade individual, equivocada e oposta ao modo como Butler critica o gênero. Para ela, o “problema do gênero” é tomá-lo como elemento que previamente definiria a existência, que mesmo não estando mais  determinada pelo sexo, passaria a estar “decidida pelo gênero” (Butler, 1993, p. x [2018, p. 11]).  

Há um ponto crucial: estamos submetidos às normas de gênero, escritas e não escritas. Se, pensando com Foucault, o sujeito depende da obediência à norma para se assujeitar; pensando com a releitura pós-estruturalista da teoria da performatividade da linguagem, as normas dependem do ato performativo para serem reiteradas. Uma vez que  sexo e gênero não podem mais ser fundamentos para a identidade, e as normas são uma repetição estilizada de atos, o gesto político que interessa destacar em Butler é o esvaziamento do fundamento da norma:  nem natureza, nem cultura. Ou ainda, a admissão de que a transgressão da norma está inscrita na sua concepção.  

Foram muitas críticas à performatividade de gênero: 1) seria  mero ato de vontade do indivíduo liberal, e portanto sem potência de transformação política (Braidotti, 2006); 2)  seria uma forma de ignorar a materialidade dos corpos, questão que que vem tanto do pensamento materialista quanto das teorias sociológicas de gênero, mesmo aquelas que, não necessariamente tributárias do materialismo, entendem que o argumento do sexo anatômico biológico pesa sobre os corpos das mulheres como fator de limitação das suas possibilidades sociais, políticas, econômicas e sexuais; 3) a perfomatividade de gênero estaria esvaziando a identidade de gênero e a reivindicação identitária na política; 4) a performatividade seria  acessível apenas à drag queen e a outras formas de encenação, confundindo performance com performatividade (Preciado, 2014). Como consequência, a  materialidade dos corpos tornou-se ponto de partida para o desenvolvimento de uma interseccionalidade radical na sua concepção de  corpo. Butler rebaixa a centralidade da categoria gênero como instrumento de crítica às discriminações na vida social, cultural e econômica, propondo a heteronormatividade como elemento que constrói, orienta, oprime e constrange essa materialidade. A vulnerabilidade, a precariedade do corpo, assujeitado a diversas formas de poder, se desdobrará em outros conceitos, sem que suas suas formulações ético-políticas abandonem o gênero como categoria útil de análise.  

Luto e precariedade 

A primeira investida de Butler na distribuição desigual do luto público é uma breve menção, em Problemas de Gênero, ao não reconhecimento, pelo serviço de saúde nos EUA, do valor das vidas de homens gays vítimas do HIV/Aids no início dos anos 1980. No mesmo livro, começa um debate com as concepções de luto em Freud, desenvolvido posteriormente no capítulo “Violence, Mourning, Politics” de Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence (Butler, 2004; 2019), com imensa importância nas formulações sobre a resposta bélica dos EUA depois do 11 de setembro. O tema do luto se abre em duas direções: 1) o luto como condição do despossuído (dispossessed), condição comum a todo corpo vivente marcado pela experiência de finitude e de perda; 2) o direito ao luto como política de reconhecimento, direito que divide os corpos entre os que importam e os que pesam, separa vidas vivíveis e vidas matáveis.  

Sobre o luto como experiência de despossessão, observo que a filósofa se vale da ambiguidade do termo dispossessed: despossuído é quem não tem posses, perde o direito à terra e está obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver. O despossuído está à margem, destituído das condições mínimas de sobrevivência. A estes significados Butler acrescenta a despossessão como perda de si, articulada com a instabilidade provocada pelo desejo na formação do eu: “Somos desfeitos uns pelos outros. E, se não o somos, estamos perdendo alguma coisa. Esse parece claramente ser o caso com o luto, mas só porque já era o caso com o desejo” (Butler, 2004, p. 23 [ 2019, p. 44]). A condição de despossuído opera como fundamento negativo para o restabelecimento de uma universalidade não excludente, não mais marcada por qualquer elemento a partir do qual se possa voltar a fechar o universal apenas para uns poucos.  

Já a abordagem do luto como um direito é tributária também do modo como Butler interpreta Antígona, tragédia de Sófocles em que a personagem reivindica cumprir rituais fúnebres para o irmão, Polinices, a quem Creonte havia proibido o enterro por ter lutado contra Tebas. Butler percebe que o clamor de Antígona implicava um duplo gesto: reconhecer o valor da vida do irmão e ser reconhecida na pólis. A condição de enlutável que nos separa entre humanos e inumanos ganha ainda mais importância em Frames of War (Butler, 2009; 2015), articulando-se com a condição de precariedade dos viventes. Vida e morte serão compreendidas como categorias relacionais e o valor atribuído a uma vida está diretamente ligado ao modo como a enlutamos.  

 

Por fim, a precariedade será um elemento central na sua crítica à racionalidade neoliberal, reunindo a materialidade dos corpos com a vida  psíquica  do  poder,  a  reivindicação de condições  materiais  com  o  confronto às formas de sujeição.  Se todo sujeito está exposto à morte, a precariedade é condição de possibilidade da vida e  induzida por políticas de discriminação, que funcionam separando a vida natural sem valor da vida simbólica com valor. A distribuição desigual do luto público é compreendida, assim, como um sintoma – nem todas as vidas são iguais – e como uma política de indução de precariedades a certas formas de vida em que operam marcadores interseccionais que fundamentam discriminação, opressão e violência. 

 

Bibliografia 

Principais obras e traduções disponíveis 

ATHANASIOU, Athena; BUTLER, Judith. (2013) Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press. 

BUTLER, Judith. (1987). Subjects of desire: Hegelian reflections in twenty-century France. New York: Columbia University Press. 1a. edição. (1999, 2a. edição).  

______________. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge. 1a. Edição 2a. Edição 1999. [(2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Revisão técnica Joel Birmann. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.] 

_____________. (1993). Bodies that matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London: Routledge. [(2019) Corpos que pesam. Tradução Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. Revisão técnica Daniel Yago Françoli, Carla Rodrigues e Pedro Taam. São Paulo: N-1 Edições.] 

______________. (1997) Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York: Routledge. 

______________. (1997) The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. California: Stanford University Press. [(2017) A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução Rogerio Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.] 

______________. (2000) Antigone’s Claim: Kinship Between Life and Death. New York: Columbia University Press. [(2014) O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. Tradução André Checinel. Florianópolis: Editora da UFSC.] 

______________. (2004) Precarious Life: The Power of Mourning and Violence. London: Verso. [ (2018) Vida precária. Tradução Andreas Lieber. Revisão técnica Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora.] 

______________. (2005) Giving an Account of Oneself: a critique of ethical violence. New York: Fordham University Press. [(2015) Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução Rogerio Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.] 

______________. (2009) Frames of War: When Is Life GrievableNew York: Verso. [(2015) Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução Sérgio Lamarão e Arnaldo Cunha. Revisão técnica Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.] 

______________. (2012) Parting Waysjewishness and the critique of Zionism. New York: Columbia University Press. [(2017) Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. Tradução Rogerio Bettoni. São Paulo: Boitempo.] 

______________. (2014) Undoing gender. New York: Routledge. 

______________. (2015) Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press. [(2018) Corpos em aliança e a política das ruas: notas sobre uma teoria performativa de assembleia. Tradução Fernanda Miguens. Revisão técnica: Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.] 

______________. (2015) Senses of the Subject. New York: Fordham University Press.  

______________. (2020) The Force of Nonviolence: the Ethical in the Political London: Verso 

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gaiatry. (2007) Who Sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. Chicago: Chicago University Press. [(2017) Quem canta o Estado-Nação? Língua, política, pertencimento. Tradução Vanderlei J. Zacchi e Sandra Goulart Almeida. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.] 

 

Literatura secundária  

BAKKER, Thais de. (2017) O estado-nação a partir da filosofia de Judith Butler: Reflexões sobre processos de congregação e segregação. Mestrado Filosofia. Orientação Carla Rodrigues. UFRJ, Rio de Janeiro.  

BEAUVOIR, Simone de. (1949) Le deuxieme sexe: Les faits et les mythesParis: Gallimard.  

BENHABIB, Seyla; BUTLER, Judith; CORNELL, Drucila; FRASER, Nancy. (2018) Debates feministas – um intercâmbio filosófico. Tradução Fernanda Veríssimo. São Paulo : Unesp. 

BENTO, Berenice. (2006; 2014) A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na experiência transexual. Garamond, Rio de Janeiro; EDUFRN, Natal.  

BRAIDOTTI, Rosi (2006), Transpositions: On Nomadic Ethics. Cambridge: Polity Press. 

BUTLER, Judith. (2019) Entrevista para a revista Margem Esquerda. Margem Esquerda, n. 33.  São Paulo, Boitempo Editorial. 

_________. (2019) Precisamos parar o ataque a ideologia de gênero. Observatório de Sexualidade e Política SPW. Tradução: Sonia Corrêa e Carla Rodrigues. <http://twixar.me/j9VK

BUTLER, Judith; FRASER, Nancy. (2017) Meramente Cultural. Tradução Aléxia Bretas.  Idéias, 7(2), 227-248. [ (1997) Merely Cultural. Social Text, vol. 15, n. 3-4, p. 265-277. ]  

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