por Thana Mara de Souza
Professora Associada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), autora de A liberdade em Sartre (2019) e de diversos artigos e capítulos de livros sobre Simone de Beauvoir, fenomenologia e gênero – Lattes.
PDF – Feminismo e Existencialismo
Foto: ULIENNE/SIPA
Há pouco tempo, quando falávamos em feminismo na História da Filosofia, pensávamos primeiramente em Simone de Beauvoir, filósofa que não era exceção e que não inaugurou a temática, mas que era a mais lembrada de forma imediata. Felizmente, sabemos hoje que essa história é múltipla e mais antiga, mas Beauvoir continua a ser um nome chave para pensar a questão de gênero na Filosofia. É curioso que, se o seu nome é sempre lembrado, associar o feminismo ao existencialismo, sua vertente filosófica, é pouco comum.
Para mostrar a relação profícua entre feminismo e existencialismo, começarei com uma breve descrição do existencialismo, apoiada principalmente em Sartre e Merleau-Ponty, assim como em um livro organizado por Linda Fisher e Lester Embree, que, de forma mais ampla, aponta para as possibilidades da associação entre fenomenologia e feminismo. Depois, passarei a mostrar a importância de Beauvoir para pensarmos a intersecção entre essas duas esferas, dado que, em todos seus os livros, ela afirma categoricamente que o seu ponto de partida é a “moral existencialista”. Em um terceiro momento, será importante mostrar alguns desdobramentos desta intersecção, seja em obras mais contemporâneas de filosofia, seja em outras áreas. Por fim, apenas como esboço, procurarei assinalar algumas das perspectivas que feminismo e existencialismo, juntos, podem trazer à discussão contemporânea sobre gênero.
1) O existencialismo
Mais associado a Sartre e Simone de Beauvoir, o existencialismo evoca uma série de outros filósofos e a origem costuma ser dada, em um sentido bastante genérico, a Kierkegaard. De forma mais específica, temos dois textos de 1945 que assumem o existencialismo como forma filosófica: O existencialismo e a sabedoria das nações, de Beauvoir e O existencialismo é um humanismo, de Sartre. Hoje, costumamos chamar de existencialismo a perspectiva fenomenológica tal como, a partir principalmente de Husserl e Heidegger, se desenvolveu na França.
A história do existencialismo, nesse caminho da Alemanha para a França, pode ser verificada em No café existencialista (BAKEWELL, 2017), livro no qual é descrito, de maneira bastante didática, como, em meio às redes acadêmicas e pessoais, o existencialismo surgiu na França como uma vertente que deslocava a fenomenologia alemã para outra direção.
Não só uma moda dos anos 1940 a 1960 na França, o existencialismo traz uma mudança teórica no próprio seio da fenomenologia. De uma “ciência de rigor”, como dizia Husserl, e de uma ontologia sobre o esquecimento do sentido do ser, tal como apontava Heidegger, passamos, na França, a uma preocupação mais cotidiana com as situações concretas. Se é certo que Heidegger já apontava para o ser-no-mundo, para Sartre, a fenomenologia pura era incapaz de lidar com o que importa: a facticidade.
É, pois, com foco na concretude, nas experiências vividas, que o existencialismo surge, e ao fazer isso distingue-se da fenomenologia alemã: Sartre e Merleau-Ponty são dois grandes nomes dessa vertente francesa, como veremos a seguir.
Maurice Merleau-Ponty
Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty lança mão da noção de corpo próprio para pensar a subjetividade, saindo da dicotomia consciência/corpo: “É dessa maneira que o corpo exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se realiza nele” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 229). O corpo é, pois, o local da vivência e do sentido. Mas se inserir o corpo como expressão é um passo fundamental para superar filosofias abstratas, focadas no conhecimento, é verdade também que o filósofo francês sempre coloca o corpo do ponto de vista masculino, que não é apenas o seu, mas que é generalizado, como se fosse o ponto de vista neutro, ou objetivo. Mesmo destinando um capítulo do livro para falar sobre o corpo sexuado, o sujeito desse corpo é um homem, e a mulher aparece sempre como objeto – como parceira de um homem, ou como paciente, como no exemplo utilizado da moça afônica, impedida de ver o rapaz que ama.
Embora a associação entre feminismo e existencialismo tenha sido e continue sendo feita por diversas autoras, há de se notar que não foi desde o início que essa vertente filosófica manifestou preocupação maior com a questão de gênero.
Linda Fisher, em seu artigo “Phenomenology and Feminism – Perspectives on their Relation” (Fenomenologia e Feminismo – Perspectivas de suas relações) presente no livro Feminist Phenomenology [Fenomenologia Feminista], de 2000, mostra como Merleau-Ponty, ao falar do corpo, não o coloca numa perspectiva de gênero, silenciando sobre o corpo feminino como sujeito. Isto, no entanto, não deveria ser motivo para não utilizarmos sua filosofia para pensarmos, hoje, a situação específica das mulheres, aproveitando a noção de corpo próprio que ali aparece, enfatizando as condições concretas e específicas a partir dos gêneros.
Se, por um lado, Merleau-Ponty possibilita pensar a relação entre cogito tácito e corpo próprio de forma distinta de como a filosofia tradicional colocou; por outro, ele mesmo não realizou uma discussão sobre gênero a partir dessa proposta – o que, por sua vez, não impede que nós, ao invés de simplesmente descartarmos seu pensamento porque a palavra gênero não foi utilizada, pensemos em desdobramentos. É, aliás, o que Beauvoir já faz em O segundo sexo: ao concordar com Merleau-Ponty de que aquilo que é dado nunca tem o sentido nele mesmo, mas sempre é o modo pelo qual é vivido, ela enfatiza, no entanto, que há diferença no modo como o corpo se coloca para mulheres e homens. Se é verdade que todos assumimos o que é dado de certo modo, é preciso observar que algumas condições permitem que falemos de existência, sendo uma delas o corpo como coisa do mundo. É preciso, pois, para Beauvoir, observar as condições distintas que são dadas às mulheres, seja biologicamente, seja historicamente (como veremos no próximo tópico, Beauvoir não nega o binarismo, o que não implica, por sua vez, uma essência ou limitação).
Jean-Paul Sartre
Também o existencialismo de Sartre aponta para a importância de se pensar a corporeidade. Em Esboço para uma teoria das emoções, há a preocupação em pensar a emoção como um ato conjunto e sintético entre consciência e corpo. Mesmo que, diferentemente de Merleau-Ponty, aqui tenhamos uma distinção de papéis (o sentido é dado pela consciência, e a vivência, pelo corpo), não há uma hierarquia entre eles. Emoção não é meramente uma forma pela qual a consciência decide lidar com uma situação; é também, e necessariamente, uma vivência corporal. Sem este último aspecto, teríamos apenas uma representação. É o corpo que diferencia uma emoção vivida de uma apenas fingida. Os fenômenos fisiológicos “não são redutíveis a condutas: pode-se parar de fugir, não de tremer. Posso, por um violento esforço, levantar-me da cadeira, desviar meu pensamento do desastre que me oprime e pôr-me a trabalhar: minhas mãos continuarão geladas” (SARTRE, 2006, p. 77).
Assim, também Sartre poderia, com sua filosofia, contribuir para pensar questões de gênero focadas na corporeidade que, embora não escolhida, é o modo mesmo como nos colocamos no mundo, impossibilitando qualquer espécie de determinação total do corpo à pessoa (ou poderíamos dizer, do sexo ao gênero). É o que O ser e o nada reafirma no capítulo sobre “o corpo”, pensado, agora, em várias dimensões, como para-si (concretude vivida) e como para-outro (o modo com o outro objetiva e naturaliza meu corpo). Sendo tanto objeto para outro, quanto modo como me coloco no mundo, o corpo terá um papel ambíguo, de lugar de alienação e, ao mesmo tempo, de superação da alienação.
E esse corpo, tal como para Merleau-Ponty, é sempre sexuado. Ao falar do desejo, Sartre coloca-se explicitamente na contramão da fenomenologia alemã, afirmando ser inviável pensar em um corpo assexuado:
“Por isso, as filosofias existenciais não acreditaram na necessidade de preocupar-se com a sexualidade. Heidegger, em particular, a ela não dedica a menor alusão em sua analítica existencial, de sorte que seu ‘Dasein‘ nos aparece como assexuado. E, sem dúvida, pode-se considerar, com efeito, uma contingência para a ‘realidade humana’ especificar-se como ‘masculina’ ou ‘feminina’; sem dúvida, pode-se dizer que o problema da diferenciação sexual nada tem a ver com o da Existência (Existenz), posto que o homem, tal como a mulher, ‘existe’, nem mais nem menos. Tais razões não são em absoluto convincentes.” (SARTRE, 1999, p. 477)
Notemos, assim, que os existencialistas, ao contrário do que Sartre chama de “filosofias existenciais” alemãs, pensam em subjetividades concretas, que se constroem na própria existência, em meio a outros que nos alienam, em meio a um corpo que, não escolhido, é, ao mesmo tempo, nossa própria marca de pessoalidade.
A importância da concretude e do corpo vivido são fundamentais para construirmos um diálogo entre existencialismo e feminismo. No entanto, nem Sartre nem Merleau-Ponty fizeram uma filosofia que explícita e diretamente discutiu gênero. O mesmo não pode ser dito de Beauvoir.
2) Beauvoir: uma existencialista feminista
Em todas suas obras, incluindo O segundo sexo, a filósofa deixa explícito seu ponto de partida: uma moral existencialista, e é com essa perspectiva que seu feminismo se constrói. Já na Introdução do Primeiro Volume, encontramos o seguinte:
“A perspectiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência; só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades (…). Cada vez que a transcendência cai na imanência, há degradação da existência em “em si”, da liberdade em facticidade; essa queda é uma falha moral, se consentida pelo sujeito. Se lhe é infligida, assume o aspecto de frustração ou opressão” (BEAUVOIR, 2016, vol. 1, p. 26).
A filosofia beauvoiriana se coloca a partir da liberdade. Sendo o ser humano distinto de uma coisa, quais são as condições concretas que são dadas para que sua subjetividade possa ser de fato exercida? Se saímos da tensão entre dois elementos constituintes (liberdade/facticidade; transcendência/imanência) e caímos em apenas um dos termos, há um “mal absoluto”, que deve ser descrito de forma diferente se desejado ou se infligido.
É, pois, com as noções fundamentais do existencialismo que Beauvoir pensa um feminismo. Não se trata apenas de falar em liberdade, transcendência e subjetividade, como se os seres humanos fossem abstratos e sobrevoassem a historicidade; assim como não se trata de falar apenas em facticidade, imanência e objetividade, como se os seres humanos fossem coisas ou se anulassem totalmente na existência. É na junção desses elementos, ou na ambiguidade (palavra essencial em sua filosofia), que o ser humano existe: somos subjetividade em um mundo não escolhido, que dá aos humanos possibilidades distintas. Nem um ser humano abstrato, nem uma concretude que apaga totalmente nossa subjetividade, por mais que tente.
“É do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições” (BEAUVOIR, 2016, Vol. 1, p. 25). Assim, temos uma preocupação em descrever os modos distintos pelos quais a sociedade trata certos grupos, em um movimento que se inicia pelo modo como as mulheres são vistas pela sociedade (fatos e mitos) e que continua, no segundo volume, pelo modo como as mulheres assumem e vivenciam, modificando, o que lhes é dado (experiência vivida). O mesmo movimento de interrelação e circularidade entre exterioridade e interioridade, ou objetividade e subjetividade, é percorrido em outro livro, A velhice.
Por um lado, Beauvoir é uma das filósofas feministas que não se cansa de repetir que não há uma essência que determina o que é ser mulher. É sua primeira preocupação: afastar-se do conceitualismo, da teoria do “eterno feminino”. Ser mulher não é, pois, participar de uma natureza dada.
Por outro lado, e aqui talvez se encontre a distância maior com parte dos feminismos atuais, Beauvoir afirma que “há mulheres”, e assim o faz para diferenciar sua filosofia do que chama de nominalismo. Sem que a diferença justifique hierarquia, o ponto de partida é justamente a descrição de que, ao menos naquele momento, a sociedade se dividia em “homens” e “mulheres”. Na introdução ao segundo volume, a filósofa é muito clara a esse respeito:
“Quando emprego as palavras “mulher” ou “feminino” não me refiro evidentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável; após a maior parte de minhas afirmações cabe subentender: ‘no estado atual da educação e dos costumes’. Não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular” (BEAUVOIR, 2016, Vol. II, p. 6).
Na tentativa de descrever a realidade, é da realidade que se parte: é ao estado atual que a filósofa se volta para pensar a relação entre objetividade e subjetividade, sem uma objetividade que oculta a subjetividade, sem que essa se faça sem um sedimento, sem uma facticidade que não é escolhida. Entre elas, o corpo. Assim como Merleau-Ponty e Sartre, Beauvoir apontará diferenças fisiológicas e morfológicas, que fazem parte da facticidade (ou do corpo como coisa), e não podem ser ignoradas, sem fazer, no entanto, dessa diferença, uma hierarquia ou uma definição – porque corpo também é ponto de vista. Corpo é “a um tempo, coisa do mundo e ponto de vista sobre o mundo” (BEAUVOIR, 2016, vol. I, p. 35).
Como aponta Heci Regina Candiani, no verbete Simone de Beauvoir:
“O conceito de situação é fundamental no existencialismo e se refere basicamente ao fato de estarmos posicionados no tempo, no espaço e em relação com os outros sobre condições específicas que não escolhemos nem controlamos (nossa nacionalidade, etnia, idade, classe social, educação, o sexo que nos é atribuído já nas primeiras semanas de gestação, nossas limitações físicas, os valores vigentes no momento histórico em que vivemos, as contingências da existência)” (CANDIANI, 2020, p. 27).
É a manutenção de tensão entre subjetividade e objetividade, ou ambiguidade, que traz, por um lado, o aspecto mais reconhecido de Beauvoir: uma teoria que afirma que não há eterno feminino. Mas que também traz, por outro lado, um aspecto menos compreendido: a constatação fenomenológica (descritiva portanto) da diferença sexual, mantendo um binarismo.
Para o existencialismo, afirmar que há um binarismo sexual não é um problema, dado que não nos reduzimos ao aspecto fisiológico, e o corpo também é o modo como nos expressamos no mundo. Mas Beauvoir acaba por associar, ao binarismo sexual, o binarismo de gênero, afirmando que “há mulheres” e que “há homens”, o que, para ela, também não constitui um problema, já que nenhuma palavra é capaz de nos definir. Adotar binarismo “homem e mulher” ou inventar outras palavras que tentam dar conta de quem somos é manter uma mesma ilusão. Como no existencialismo a falta é constituinte do ser humano, nenhuma identidade conosco mesmo é possível. Assim, qualquer que seja a palavra adotada, a angústia permanece. Por isso, Beauvoir não vê problemas em afirmar que existe uma diferença sexual (já que ela não define o que somos), nem que a sociedade se divide em homens e mulheres.
O foco de sua filosofia é a vivência, a preocupação com as oportunidades concretas que são dadas aos indivíduos, e a denúncia de que não são dadas as mesmas condições, como no caso das mulheres na Europa em meados do século XX.
O existencialismo feminista parte, assim, da compreensão de que, não sendo coisa, ao humano falta uma completude e coincidência consigo mesmo, de modo que nunca poderá ser reduzido a seu corpo, nem identificado a uma palavra. É para a existência concreta, singular e intersubjetiva que se volta, afirmando que nada define o ser humano, nem a biologia, nem a palavra “mulher”, nem qualquer outra palavra inventada; mas que, com nada definido, existimos em um mundo no qual não encontramos as mesmas condições de existência conforme sejamos vistos como mulheres ou homens ou algum outro gênero.
Beauvoir parte de uma liberdade ontológica de todas as subjetividades para chegar à exigência de uma igualdade de reconhecimento entre gêneros e de oportunidades concretas de todos manifestarem sua subjetividade, em um corpo que nunca é só “coisa do mundo”, mas que também nunca é só “ponto de vista sobre o mundo”.
A relação entre existencialismo e feminismo se tece, em Beauvoir, nesse movimento oscilante entre o modo como o mundo tenta nos colocar e o modo como vivemos esse mundo, entre a objetividade (a tentativa de naturalizar a inferioridade da mulher) e a subjetividade (o modo como as mulheres vivenciam essa tentativa). Dos “fatos e mitos” à “experiência vivida” (os subtítulos de O segundo sexo), é à recuperação das existências singulares das mulheres que se volta.
3) Fox Keller e Manon Garcia
Não temos, no entanto, uma escola feminista existencialista forte, que teria se formado a partir de Beauvoir, embora possamos apontar alguns desdobramentos contemporâneos.
Na filosofia, nos anos 1980 e 1990, temos, para citar apenas alguns nomes, Debra Bergoffen que, com o livro The Philosophy of Simone de Beauvoir: Gendered Phenomenologies, Erotic Generosities [A Filosofia de Beauvoir: Fenomenologias genereficadas, Generosidades Eróticas} apontava para a importância de reconhecer em Beauvoir uma filósofa para a qual a generosidade no erotismo permitiria uma relação mais igualitária e de reconhecimento de subjetividades entre os gêneros.
O mesmo pode ser dito de Michèle Le Doeuff: com o livro Recherches sur l’imaginaire philosophique [Investigações Sobre o Imaginário Filosófico], aplica à filosofia o que Beauvoir propõe: tornar explícitos os mitos que pretendem manter a hierarquia, historicamente construída, e que quer se passar como natural. A autora denuncia o quanto, na História da Filosofia, a alteridade sempre é colocada a partir do homem, sendo a mulher submissa e incapaz de fazer filosofia. Às vezes o tom polêmico do livro enfraquece sua ótima tese, como quando questiona Beauvoir por esta não ter criticado Sartre, algo que não é totalmente verdadeiro. Mesmo assim, o procedimento adotado no livro mostra uma herança do método existencialista feminista.
O mesmo pode ser visto em outras áreas do conhecimento.
Fox Keller, física que trabalha com biologia molecular e História da Ciência, escreve, em Reflections On Gender and Science [Reflexões sobre Gênero e Ciência], de 1985, textos em que denuncia, tal como Le Doeuff, o imaginário ideológico da ciência. Iniciando o livro com uma citação de Beauvoir, a autora faz um desvelamento e uma crítica ao modo como a ciência fez uma dicotomia entre racionalidade/objetividade e emotividade/subjetividade, colocando o primeiro par como característico do masculino, e o segundo, do feminino.
A autora aponta para a construção histórica desses mitos, e como isso influencia a decisão das mulheres de não exercerem uma carreira científica: se havia menos mulheres cientistas, isso não se devia a uma natureza diferente e inferior das mulheres, mas porque a elas eram dadas menos oportunidades concretas de serem cientistas, mesmo movimento que Beauvoir percorre em O segundo sexo. Esses mitos, que perpetuam o círculo vicioso, aparecem, como mostra Keller, na formação das crianças.
Não temos, portanto, apenas uma referência textual a Beauvoir, mas uma continuação do método proposto pela existencialista feminista: trazer à tona os mitos perpetuados historicamente pela ciência e, a partir da descrição, propor um outro modo de pensar a relação entre subjetivo e objetivo. Tal como Beauvoir, Fox Keller não passa de um oposto ao outro. Não se trata, para ela, de afirmar que a ciência deve passar dos elementos objetividade/razão/cérebro para subjetividade/emoção/corpo. A ciência precisa do aspecto objetivo e racional. O problema, para ela, não está aí, mas no pensar a objetividade e a racionalidade como processos estanques e separados da subjetividade e emotividade, além de associar cada um desses pares a um gênero, o que, obviamente, é uma construção histórica que se quer passar como natural.
Nessa associação, há dois problemas: naturalizar o feminino como apenas um dos âmbitos, e o masculino como apenas o outro; e afirmar que a ciência se constrói apenas por meio de um desses pares (sendo, portanto, em consequência do primeiro problema, a ciência um lugar que os homens devem ocupar).
A esses problemas, Fox Keller responde que i) não há nada que permita associar o feminino apenas à emotividade/subjetividade/corpo, assim como o masculino não pode ser associado apenas à racionalidade/objetividade/cérebro. Mais que isso, Keller também mostra que ii) o fazer científico não pode abandonar a objetividade e a racionalidade, mas ambas não existem sem os componentes de subjetividade e emotividade.
Trata-se, pois, de mostrar a interdependência entre subjetividade e objetividade, emoção e razão, corpo e cérebro, sem identificá-las a gêneros específicos. Contra uma “objetividade estática”, com separação estanque entre sujeito e objeto, Fox Keller propõe uma “objetividade dinâmica”, que admite, na racionalidade, a emoção; no cérebro, o corpo; e na objetividade, a subjetividade.
Não se trata de abandonar a pretensão científica de objetividade, mas de pensá-la de forma mais dinâmica e interligada à subjetividade, do mesmo modo como em Beauvoir, em O segundo sexo, os pares não são pensados como separados e separáveis, mas como interligados. No conflito natureza x história, Beauvoir não busca um dos lados, mas mostra que um lado só faz sentido se pensado em conjunto com outro. “Foi dito que a espécie humana era uma antiphysis. A expressão não é inteiramente exata, porquanto o homem não poderia contradizer o dado, mas é na maneira pela qual o assume que lhe constitui a verdade” (BEAUVOIR, 2016, vol. 1, p. 63). Ao combater as dicotomias estanques e estáticas, Beauvoir e Fox Keller não optam por apenas um dos lados – só subjetividade/história, ou só objetividade/natureza -, mas por mostrar a impossibilidade de separar os dois termos.
Assim, em Fox Keller também podemos ver, na denúncia aos mitos do fazer científico, e na necessidade de pensar em termos de ambiguidade, alguns desdobramentos, agora nas ciências naturais, do pensamento feminista existencialista.
Mais contemporaneamente, na Filosofia, enfrentando a questão da submissão moral, Manon Garcia também se coloca como feminista existencialista. Em livro publicado em 2018, On ne naît pas soumise, on le devient [Não se nasce submissa, torna-se], a autora aplica o método fenomenológico da descrição e a preocupação com a condição concreta das vivências para compreender que a submissão aparece mais cotidianamente como experiência feminina, o que não implica, por sua vez, uma essencialização, nem uma falha moral. Garcia enfatiza a concretude das vivências, e procura compreender, nas condições das mulheres, como a questão da submissão se coloca sem ser uma natureza (seja ontológica ou estrutural), e sem ser uma escolha deliberada e individual.
Neste sentido, é fundamental pensar a articulação entre estrutura e indivíduo. Garcia não opta por focar apenas em indivíduos, nem por focar apenas em estruturas. Fazer da submissão uma mera aplicação de uma vontade estrutural seria contribuir para anular ainda mais as subjetividades. A autora se coloca, a partir de Beauvoir, contra o essencialismo e também contra o que ela chama de construtivismo social forte.
No reconhecimento da diferença sexual (que nada determina), é preciso voltar-se para a sociedade e descrever o modo como essa diferença é vista. O reconhecimento da situação concreta é fundamental como ponto de partida, e ignorá-la, seria, para Garcia, um ato de má-fé. É precisamente aqui – na concepção de construção social – que Beauvoir e Butler se distinguiriam, segundo Garcia, pois a filósofa estadunidense afirma que não há realidade independente de nossas práticas ou linguagem, enquanto Beauvoir, mesmo pensando o dado também como socialmente situado, não rejeita as diferenças biológicas como realidade.
Nessa descrição do concreto, Manon Garcia diferencia vontade ativa (quando há expressão de um desejo de determinada situação) de vontade passiva (quando há falta de resistência à situação dada). E, no caso da submissão, o que predomina é a vontade passiva: no sistema patriarcal no qual existimos, submeter-se parece ser, para as mulheres, a melhor opção. Então, se a submissão aparece mais cotidianamente nas mulheres, não é nem porque são totalmente vítimas nem porque são totalmente algozes, mas sim porque, na relação entre estrutura e indivíduo, o custo das mulheres em se livrarem da submissão é muito alto, de modo que a muitas a vontade passiva aparece como meio de sobrevivência.
Sem falar especificamente do problema da submissão, Beauvoir já apontava que há opressão (e não falha moral) quando a subjetividade é transformada em objetividade por exigência da sociedade. Nenhuma das duas autoras culpa ou julga individualmente as mulheres que se submetem, mas o que procuram fazer é descrever os mecanismos da articulação entre subjetividade e estrutura que permitem compreender por que as mulheres têm mais dificuldade em colocar-se como “nós”. Para Garcia, se a mulher se submete mais que os homens, é porque a situação concreta torna a manutenção da liberdade muito custosa para as mulheres.
Ao invés, então, de se contentar em criticar a solidariedade entre os agressores, Garcia acha importante não apenas mudar o foco do agressor para a agressão, mas dar um passo a mais: voltar-se para a vivência das próprias mulheres da situação que lhes é dada; e, nessa articulação entre estrutura e subjetividades, pensar mecanismos concretos para que seja possível fugir do que parece ainda ser, muitas vezes, a única opção de existência: o consentimento das mulheres à sua própria submissão.
Para isso, compreender os papéis tanto dos elementos estruturais quanto dos elementos subjetivos é essencial, sem anular nenhum deles. Neste sentido, o método existencialista é fundamental na recuperação da perspectiva do corpo concreto, do corpo vivido e de como as mulheres vivem a impossibilidade/dificuldade de se colocarem como corpo vivido, de saírem do corpo apenas objetificado.
Podemos, assim, ver que a relação entre existencialismo e feminismo tem se desdobrado contemporaneamente na ênfase das vivências, das situações, das concretudes singulares; na ênfase dos corpos objetificados e também vividos. Contra uma filosofia da consciência abstrata e superpoderosa, contra filosofias das racionalidades desconexas da realidade, o existencialismo coloca a existência como ponto de partida. Descrever o que aparece, pensar nas situações como o lugar da articulação entre subjetividade e objetividade, indivíduo e mundo, é fundamental.
Mas, para além de um tema específico, principalmente o próprio método existencialista se mostra importante. Sair de uma dicotomia estanque e estática, que separa os elementos, e escolhe só um dos lados (razão/emoção; objetividade/subjetividade; imanência/transcendência; corpo/consciência; facticidade/liberdade; estrutura/indivíduo), e pensar em termos de ambiguidade, é ponto-chave para a compreensão de um feminismo existencialista, que tenta escapar de duas respostas que parecem contrárias, mas que se identificam ao eliminar um dos termos da relação.
Tal como a “objetividade dinâmica” de Fox Keller, é preciso pensar os elementos em uma relação dinâmica e necessária, sem anular um deles. Toda subjetividade se constrói junto a um corpo não escolhido, a um olhar do outro que nos define à nossa revelia, e em uma sociedade já constituída; assim como todo corpo não escolhido existe junto ao modo como vivemos esse corpo, todo olhar do outro nos dá uma natureza com a qual não nos fundimos, e toda sociedade só existe junto ao modo como as subjetividades nela existem.
Trazer a tensão entre esses elementos, que nem sempre se colocam em uma relação totalmente harmoniosa, é fundamental para o feminismo existencialista.
4) Feminismo existencialista
O feminismo existencialista atual pensa nas vivências, no modo como nos colocamos no mundo e de como o mundo delineia situações distintas para grupos diversos. Não faz da subjetividade a soberana da situação, nem da estrutura o aniquilamento das subjetividades. É um feminismo que foca na experiência, na compreensão de que o real não se reduz à linguagem. Há sempre algo que escapa, algo que falta, e isso é justamente o que nos constitui como seres humanos, e não como coisa. Assim, mais do que buscar linguagens que deem conta de todos os modos de vivências (afinal, por serem subjetivos, eles são, portanto, infinitos), o feminismo existencialista compreende que a linguagem, binária ou não, não dá conta do que importa: o modo como cada um vivencia sua situação dada. O feminismo existencialista enfatiza nossas ações, nosso modo de ser em um mundo não escolhido, que nos aliena de nós mesmos, mas não nos determina.
Neste sentido, para além da descrição das condições dadas aos grupos vistos pela sociedade como distintos, o feminismo existencialista pensa possibilidades concretas de modificação dessa situação, de modo que às mulheres sejam dadas condições reais para realização de sua subjetividade.
Não por acaso, é deste modo que Beauvoir finaliza O segundo sexo, apontando para a necessidade da libertação concreta e efetiva das mulheres, o que só é possível se não anularmos a subjetividade no processo histórico.
O feminismo existencialista propõe, assim, ferramentas teóricas e práticas que apontam para o respeito ao modo singular como cada pessoa constrói sua vida, e para a exigência de oportunidades concretas iguais, não apenas econômicas, mas também morais, sexuais, sociais e políticas.
Referências
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Beauvoir, S. (2016). O segundo sexo. 2 volumes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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