Queer

por Aléxia Bretas

Professora de Filosofia na Universidade Federal do ABC (UFABC), mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). É autora dos livros: A Constelação do Sonho em Walter Benjamin (Humanitas/Fapesp, 2008), Do Romance de Artista à Permanência da Arte (Annablume/Fapesp, 2013) e Fantasmagorias da Modernidade (Ed. UNIFESP, 2017). É integrante da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas e do GT de Filosofia e Gênero da ANPOF – Lattes

PDF – Queer

Imagem: Exposição Queermuseu, Porto Alegre, 2017. Bia Leite / Reprodução.

Escrever um verbete sobre queer tem qualquer coisa de desconcertante. Pois o nome porta em si uma genealogia e uma vocação fortemente antinormativas que vão de encontro a toda e qualquer tentativa de definição rígida, substantiva ou essencialista – seja de teor enciclopédico, médico ou jurídico. Por outro lado, causar estranhamento é algo bastante próprio à expressão, que surge umbilicalmente ligada a qualidades, digamos, fora da curva. Sua história e suas estórias (Hemmings, 2011) são seculares e, não obstante, feitas de fracassos (Halberstam, 2019), “interruqções” (flores, 2013) e lacunas. De proveniência inglesa, a palavra queer foi cunhada em torno de 1513 como sinônimo de estranho, esquisito, peculiar e excêntrico. “Ai, ai! Como está tudo esquisito [queer] hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de costume”, exclamava a Alice de Lewis Carroll, em 1865 (Carroll, 2010, p. 25). No País das Maravilhas, ela irá se deparar com “formas esquisitas” [queer-like shapes] como a da Lagarta, encontrar-se com um grupo singular ou “estrambótico” [queer-party] de aves e animais peludos indispostos, até que depois de uma sucessão de vertigens, deslocamentos e metamorfoses, finalmente se acostumar a ver “coisas esquisitas” [queer things] acontecerem.

Até meados do século XIX parece não haver qualquer atribuição de valor – seja positivo ou negativo – ao adjetivo empregado para descrever criaturas bizarras, atitudes anormais e/ou eventos insólitos. Algo semelhante ocorre com o vocábulo alemão quer, que significa transversal, diagonal, oblíquo, formando palavras como der Querdenker / die Querdenkerin – pensador / pensadora original, fora dos padrões. Ratificando sua predisposição a ambiguidades, torções de sentido e apropriações espontâneas, o nome do movimento de ultradireita composto por extremistas contrários às medidas de contenção à Covid-19 adotadas pelo governo alemão em 2020 é precisamente Querdenken – em tradução literal, “pensar de outro modo”. Em todo caso, ainda no século XIX anglófono, a expressão “Queer Street” – ainda não patologizada, mas já pejorativa – chegaria a ser utilizada no Reino Unido para se referir a pessoas falidas, quebradas ou “fodidas”, possivelmente sob inspiração dos romances de Charles Dickens. Com o passar dos anos, a dita escória da sociedade – que incluía malandros, ladrões, bêbados, prostitutas, “ovelhas negras”, “maçãs podres” e freaks de toda espécie – era abrigada pelo guarda-chuva queer dos perdedores [losers] (Halberstam, 2020).

Mas é na passagem para o século XX, notadamente após o famigerado julgamento seguido da condenação do escritor Oscar Wilde por “sodomia”, em 1894-5, que o termo queer iria adquirir conotações mais diretamente associadas aos estigmas dos gêneros e/ou sexualidades “invertidas” ou disfóricas. A partir de então, seriam identificadas, agrupadas e depreciadas (Haddock-Lobo, 2018) em seu nome todas aquelas expressões de variabilidade de gênero (Halberstam, 2018) estranhas à grade binária encarregada de enquadrá-las como “homem” ou “mulher” – exclusivamente. Ao comentar sobre a incrível plasticidade desta palavra mutante, (Paul) Beatriz Preciado observa que em fins do século XIX, na austera Inglaterra vitoriana da qual também nos fala Foucault (Foucault, 2007), era percebido e tratado como queer qualquer corpo humano que, de algum modo, colocasse em risco o bom funcionamento de uma sociedade “hétero”, “correta” ou “direita” (straight).

“Eram ‘queer’ os invertidos: a bicha, a lésbica, a travesti, o fetichista, o sadomasoquista e o zoófila. O insulto ‘queer’ não tinha um conteúdo específico: pretendia reunir todas as cifras do abjeto. Mas a palavra, na verdade, serviu para traçar um limite para o horizonte democrático: aquele que chamou outro de ‘queer’ colocou-se confortavelmente sentado em um sofá imaginário na esfera pública, em uma troca comunicativa silenciosa com seus pares heterossexuais, enquanto expulsava o ‘queer’ para além dos limites do humano. Deslocado para fora do espaço social, o ‘queer’ foi condenado ao segredo e à vergonha” (Preciado, 2009, p. 15). 

No entanto, quase um século depois de sua circunscrição à invisibilidade e ao silêncio, a palavra queer seria ressignificada e mobilizada pelos movimentos sociais em prol dos direitos civis das minorias sexuais, notadamente a partir da eclosão da aids em fins dos anos 1980 – a qual resultaria em uma verdadeira perseguição à comunidade gay, acusada de disseminar o vírus pela sociedade hétero através de práticas sexuais “abjetas”, que estariam, no limite, levando a humanidade ao extermínio. Nesse contexto pandêmico, os protestos dos militantes gays e lésbicas estadunidenses não clamavam por respeito à sua vida privada, isto é, não pleiteavam o direito de as relações homoafetivas e homoeróticas serem mantidas entre quatro paredes, senão exigiam o direito de sobreviver, ocupar e circular pelos lugares públicos, sem vetos ou restrições, fossem elas legais ou morais. Nesse sentido, o texto de intervenção “Queers read this” [Queers leiam isso], publicado anonimamente pelo coletivo Queer Nation, ligado ao grupo de ação direta ACT UP, e distribuído na Marcha do Orgulho Gay em New York, em junho de 1990, é uma das primeiras ocorrências da expressão queer, a partir de então, transvalorada.

“Como posso lhe dizer? Como posso convencê-la, irmão, irmã, de que a sua vida está em perigo? Que todo dia que você acorda, viva, relativamente feliz e saudável, você está praticando um ato de rebelião. Você, uma queer viva e em bom estado de saúde, é uma revolucionária. Não há nada neste planeta que valide, proteja ou encoraje a sua existência. É um milagre que você esteja aqui lendo estas palavras! Você deveria, para todos os efeitos, já estar morta.” (Manifesto Queer Nation, 1990/2016).

            Redigido em tom de urgência diante de uma crise sanitária e humanitária sem precedentes a se abater sobre a saúde e mesmo as condições de vida de pessoas bissexuais e, especialmente, homossexuais masculinos, o próprio panfleto explica o por quê do uso do vocábulo queer, e não simplesmente gay, chamando atenção para os estereótipos de gênero, bem como para a violência antiqueer em ascensão nos Estados Unidos.

“Bem, sim, ‘gay’ é lindo. Tem seu lugar. Mas quando muitos homens e mulheres gays acordam, pela manhã, sentimos raiva e desgosto, não alegria. Por isso escolhemos nos chamarmos ‘queer’. Usar ‘queer’ é uma maneira de lembrarmos como somos percebidas pelo resto do mundo. É uma maneira de dizermos que não precisamos ser pessoas empolgadas e charmosas, que levam suas vidas discretamente e à margem do mundo hétero. Usamos queer como homens gays que amam lésbicas e lésbicas que amam ser queer” (Manifesto Queer Nation, 1990/2016).

Publicado em 2018, um número especial da revista Gay and Lesbian Literature (Fawaz; Smalls, 2018) discute o valor deste “manifesto” já histórico, chamando atenção para a irredutível diversidade de concepções, vivências e reflexões ligadas ao queer, seja como experiência de vida, criação artística, disciplina acadêmica ou ativismo político – em seus múltiplos entrelaçamentos. O dossiê ainda destaca a relevância e a urgência de questões prementes a serem enfrentadas, nos dias de hoje, pelas pessoas e coletividades LGBTQ (Colling, 2015) – como o racismo, a transfobia, a assimilação pelo mercado, o tokenismo, o pink washing, o combate à “ideologia de gênero” (Miskolci; Campana, 2018), além da ascensão da extrema direita em diversas partes do mundo.

Ora, mas se o queer, como algo positivo e digno de orgulho, surge nas ruas nas pegadas dos movimentos de liberação gays e lésbicos dos anos 1970 e 1980, como exatamente se deu sua entrada e disseminação pelo mundo acadêmico? Há quem considere que a escritora e ativista chicana Gloria Anzaldúa tenha sido a primeira a utilizar o termo “queer” em seu livro Borderlands / La frontera, publicado originalmente em 1987 (Rea; Amancio, 2018, p. 12).

“Como mestiza, eu não tenho país, minha terra natal me despejou; no entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante em potencial de todas as mulheres. (Como uma lésbica não tenho raça, meu próprio povo me rejeita; mas sou de todas as raças porque a queer em mim existe em todas as raças)” (Anzaldúa, 2005, pp. 707-8). 

Antes dela, também a autora e poeta negra Audre Lorde já havia reportado, em entrevista a Adrienne Rich, ainda em 1979, o desconforto por parte de editores e militantes negros em relação a sua homossexualidade, chegando a utilizar explicitamente o termo “queer” para se referir ao modo como era percebida e tolerada por aqueles que nunca foram capazes de realmente aceitar seu modo de vida.

“Eu nunca tinha tido esse tipo de relacionamento com pessoas negras antes. Nunca. Houve um diálogo bastante desconfortável com a Harlem Writers Guild – onde eu me sentia tolerada, mas nunca aceita de verdade. Para eles, eu era louca e transviada [crazy and queer], mas tinha potencial para amadurecer e superar tudo isso” (Lorde, 2020, p. 113).

Seja como for, embora a obra Problemas de gênero (1990) de Judith Butler seja citada com frequência como marco ou mesmo “Bíblia” da “teoria queer”, foi a italiana Teresa de Lauretis quem utilizou a expressão pela primeira vez – ainda que, antes dela, várias outras autoras estivessem igualmente empenhadas em dar corpo a críticas semelhantes, ainda que não tenham se reportado literalmente ao nome composto “Queer Theory”, como é o caso de Monique Wittig, Audre Lorde, Gayle Rubin, Eve K. Sedgwick, Adrienne Rich e Gloria Anzaldúa. 

“A expressão ‘teoria queer’ nasceu em 1990 como tema de um workshop que organizei na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. (…) Como as palavras gay e lésbica, o queer designou, em primeiro lugar, um protesto social e, apenas em segundo lugar, uma identidade pessoal. Meu projeto de ‘teoria queer’ consistia em iniciar um diálogo entre lésbicas e gays sobre sexualidade e sobre nossas respectivas histórias sexuais. Eu esperava que, juntos, quebrássemos os silêncios que haviam sido construídos nos ‘Estudos lésbicos e gays’ sobre a sexualidade e sua interrelação com sexo e raça. (Lauretis, 2015, p. 109).

Atenta à tensão entre os vocábulos “teoria” – como algo sério, rigoroso e institucionalizado – e “queer” – como algo vulgar, irreverente e marginal –, Lauretis destaca os desafios e contradições inerentes à elaboração de um termo em si mesmo heterogêneo e, até certo ponto, paradoxal. Ela ainda ressalta a necessidade dos coletivos na construção de um horizonte discursivo em que as reflexões sobre o campo sexual sejam viáveis e produtivas desde uma perspectiva colaborativa, interdisciplinar e interseccional. 

Seja como for, do ponto de vista estritamente filosófico, a teoria queer surge da leitura e tradução (Canseco, 2020) de pensadores europeus associados ao pós-estruturalismo francês, como Foucault, Derrida e Deleuze, realizadas por feministas norte-americanas como Judith Butler – que viria, inclusive, a questionar a categoria “mulheres” como “o sujeito” do feminismo. Para isso, ela se vale de um diálogo crítico com teóricas como Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, Monique Wittig, Julia Kristeva e Esther Newton para pensar sobre as questões, respectivamente, da alteridade, da diferença, do pensamento hétero (straight  mind), do abjeto e da performatividade. Ao analisar as técnicas de construção de si da drag Divine no filme Hairspray – Éramos todos jovens, Butler desmistifica o suposto fundamento “natural” do gênero – e não apenas para as pessoas identificadas como não binárias. “Seria a drag uma imitação de gênero ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece?” (Butler, 2016, p. 9). E, mais adiante, questiona: “Ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias do sexo e por meio delas?” (Butler, 2016, p. 9).

Tais inquietações orbitam em torno daquele que talvez seja o principal objetivo desta obra tão polêmica: explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo não como dadas pela natureza, nem tampouco como escolhidas livremente pelo sujeito transparente, senão como resultado de uma formação específica de poder. Para isso, ela recorre à crítica genealógica de Nietzsche apropriada por Foucault, a qual irá desfazer, ou melhor, desconstruir uma certa crença tríplice na origem “biológica” do gênero, na verdade íntima do desejo “feminino” e na identidade sexual “autêntica”. Segundo ela, o que existem, em vez disso, são efeitos de práticas e discursos que, ao serem repetidos, se encorpam e se espraiam capilarmente pelas relações e formas de vida a partir de duas instituições ubíquas: o falocentrismo e a “heterossexualidade compulsória” (Rich, 2010). Butler, contudo, não pretende apenas designar as coisas como “elas são”, senão criar condições para desestabilizá-las ou transformá-las – ou, pelo menos, contribuir para isso. Assim, movida pelo páthos de insurgência dos corpos queer, ela busca indicar ou mesmo abrir poros ou fissuras no sistema de gestão da sexualidade como dispositivo biopolítico (Foucault, 2007). Quais performances ou “práticas culturais produzem uma descontinuidade e uma dissonância subversivas entre sexo, gênero e desejo e questionam suas supostas relações?”, ela indaga (Butler, 2016, p. 11). 

Na verdade, um aspecto bastante controvertido de Problemas de gênero é precisamente a concepção de gênero como performance (Rodrigues, 2020, p. 64). Autoproclamado bio-hacker do sistema sexo-gênero, (Paul) Beatriz Preciado vislumbra aí um dos pontos mais interessantes e mais problemáticos da teoria de Butler. Em Manifesto Contrassexual, ele observa: “A noção butleriana de ‘performance de gênero’, assim como a ainda mais sofisticada ‘identidade performativa’, desfazem-se prematuramente do corpo e da sexualidade, tornando impossível uma análise crítica dos processos tecnológicos de inscrição que possibilitam que as performances ‘passem’ por naturais ou não” (Preciado, 2014, p. 93). Diante das novas tecnologias do gênero acessíveis na era farmacopornográfica, suas pesquisas sobre sexualidade têm sido realizadas à flor da pele (Preciado, 2018). Em Testo Junkie, por exemplo, o filósofo antiacadêmico realiza seu “ensaio corporal” como “autoteoria”, na qual se coloca como “autocobaia” de um experimento à base de testosterona em gel, o qual coincide com seu encontro fulminante com a escritora e feminista pornô-punk Virginie Despentes – com quem foi casado por dez anos (Bretas, 2019a). Convidada a escrever o prefácio de Um apartamento em Urano, a autora de Teoria King Kong (Despentes, 2016) resume: “a história da sua transição [de Preciado] não é a passagem de um ponto a outro, mas a da errância e do interlúdio como lugar de vida. Uma transformação constante, sem identidade fixa, sem atividade fixa, sem endereço fixo, sem país” (Despentes, in: Preciado, 2020, p. 14). Traduzidas e publicadas no Brasil em 2020, “as crônicas da travessia” (Preciado, 2020) acompanham todo o processo de redesignação de gênero pelo qual o filósofo passou e deixou registrado em dezenas de colunas divulgadas quinzenalmente pelo jornal francês Libération, entre 2010 e 2018. Nelas, seu próprio corpo – nômade, mutante, “inexistente” – é o centro virtual de grande parte do périplo que o levaria a se tornar um homem trans, isto é, um “contrabandista” entre o mundo das mulheres e o dos homens.

“Meu corpo trans é uma instituição insurgente sem constituição. Um paradoxo epistemológico e administrativo. Devir sem teleologia nem referente, sua existência inexistente é a destituição ao mesmo tempo da diferença sexual e da oposição homossexual-heterossexual. Meu corpo trans volta-se contra a língua daqueles que o nomeiam para negá-lo. Meu corpo trans existe como realidade material, como trama de desejos e práticas, e sua inexistente existência coloca tudo em xeque: a nação, o júri, o arquivo, o mapa, o documento, a família, a lei, o livro, o centro de internação, a psiquiatria, a fronteira, a ciência, deus. Meu corpo trans existe” (Preciado, 2020, p. 225).

Nesta crônica de 2014, Preciado chama atenção para os paradoxos de existir e, ao mesmo tempo, não existir completamente de acordo com a cis-heteronorma. Na vida “real”, para ser reconhecido como cidadão pelo estado espanhol, Paul Beatriz consente em ser diagnosticado e tratado como disfórico – num certo sentido como Galileu Galilei, que contradiz sua teoria mesmo sabendo que tem razão.  Ainda que tenha mantido o “B” de Beatriz em seu novo nome, Paul B. Preciado, ele assina seu novo contrato social, passando a habitar e a circular, sem ser importunado, pelo mundo dos “homens”. Teria ele “traído” sua formação feminista, bem como seu passado rebelde como lésbica radical? Quais desdobramentos de sua decisão pessoal se refletem na própria situação do queer como expediente de recusa e estranhamento ao binarismo de gênero? Dialeticamente, teria o êxito do queer precipitado sua própria destruição? Dito de outro modo, à medida em que mais e mais pessoas não binárias têm os seus direitos reconhecidos e acatados pela sociedade straight, estaria o queer fadado a ser assimilado pela mesma norma – médica, jurídica e política – à qual critica? Seria a inclusão do “Q” na sigla LGBTQ um sinal claro de que os dias do queer como movimento pós-identitário de contestação estariam contados? Bastante lúcida quando ao caráter irredutivelmente dinâmico desta palavra, em “Criticamente queer”, Judith Butler chama atenção para a tendência à incorporação de pautas interseccionais, mais tradicionalmente associadas a políticas consideradas “identitárias” como algumas versões de feminismo e certas vertentes do movimento negro.

“Pode ser que a crítica do termo acabe por iniciar um ressurgimento das mobilizações feministas e antirracistas dentro da política lésbica e gay, ou acabe por abrir novas possibilidades para formar alianças ou coligações que não pressuponham que esses grupos sociais sejam radicalmente distintos um do outro. O termo será revisto, dissipado e tornado obsoleto na medida em que resista às demandas que se opõem a ele justamente por causa das exclusões que o mobilizam” (Butler, 2019, pp. 378-379).

KUIR, CUIR, CU

“Criticamente queer”, aliás, é uma boa expressão para se referir à atitude daqueles e daquelas que abraçaram o movimento e a teoria queer como estratégia de desconstrução da matriz heteronormativa, sem deixar de reconhecer suas insuficiências e contradições internas. Esse é o caso das críticas dos Queer of Colour nos Estados Unidos, que denunciaram seu viés “imperialista” ao ignorar perspectivas, autores e autoras não brancas do sul global em suas teorias / práticas desconstrutivas (Rea; Amancio, 2018). Já na América Latina, pelo menos desde os anos 2000, acadêmicos e ativistas decoloniais não têm poupado esforços para expressar suas objeções quanto ao uso de um termo estrangeiro ou anglófono para se referir às realidades locais, de pessoas vivendo no hemisfério sul – portanto, mais suscetíveis à indução programática de sua condição precária do que seus pares europeus ou norte-americanos. O brasileiro Pedro Paulo Pereira questiona: 

“Distante do contexto de enunciação e sem atenção devida à singularidade de cada corpus teórico, corremos sempre o risco de nublar a densidade das proposições queer – que necessitam de um movimento autorreflexivo intenso e contínuo –, o que conduziria à repetição pura e simples de teorias, sem que haja a resistência das realidades analisadas. A teoria se torna, nesse caso, dissociada das realidades locais e, sem esse confronto, acabamos por entrar num círculo que induz à eterna repetição (periférica) de teorias (centrais). Seria este o fardo do queer nos trópicos?” (Pereira, 2012, p. 374).

            Outra crítica bastante frequente diz respeito ao amortecimento do vetor dissonante e combativo de uma palavra que, entre nós, não é ouvida ou sequer proferida como ofensa ou xingamento. A esse respeito, Larissa Pelucio pondera:

“Também em português ‘queer’ nada quer dizer ao senso comum. Quando pronunciado em ambiente acadêmico não fere o ouvido de ninguém, ao contrário, soa suave (cuier), quase um afago, nunca uma ofensa. Não há rubores nas faces nem vozes embargadas quando em um congresso científico lemos, escrevemos ou pronunciamos queer. Assim, o desconforto que o termo causa em países de língua inglesa se dissolve aqui na maciez das vogais que nós brasileiros insistimos em colocar por toda parte. De maneira que a intenção inaugural desta vertente teórica norte-americana, de se apropriar de um termo desqualificador para politizá-lo, perdeu-se no Brasil”. (Pelucio, 2014).

Buscando salvaguadar a verve disruptiva e contestadora tanto da teoria, quanto do movimento, Berenice Bento segue autores sul-americanos/as que passaram a nomeá-la “teoria cuir” ou simplesmente “teoria cu”, propondo uma coerente alternativa “brazuca”: estudos transviados.

“Em alguns textos, eu tenho trabalhado com a expressão ‘estudos transviados’. A minha língua tem que fazer muita ginástica para dizer queer e não sei se quem está me escutando compartilha os mesmos sentidos. Ser um transviado no Brasil pode ser ‘uma bicha louca’, ‘um viado’, ‘um travesti’, ‘um traveco’, ‘um sapatão’. Talvez não tivéssemos que enfrentar o debate da tradução cultural se reduzíssemos os estudos transviados ao âmbito (muitas vezes) bolorento da academia, transformando-o em um debate para iniciados, mas aí seria a própria negação desse campo de estudos que nasce com o ativismo, tensiona os limites do considerado normal e abre espaço para uma práxis epistemológica que pensa novas concepções de humanidade” (Bento, 2017, p. 249).

Fato é que à medida em que deixa evidente suas origens inglesas, o queer se torna mais palatável e atrativo para ser consumido como mercadoria importada oferecida naquilo que a chilena Hija de Perra se refere como “shopping queer”.

“Hoje em dia graças a Deus temos todo o necessário para tomar o estandarte queer dentro da metrópole: mil produtos para nos transformar em seres ambíguos de difícil leitura sexual e perfomar pela vida como transgressão identitária, hoje é possível estudar esta teoria em Universidades e receber informação fidedigna do tema, hoje temos à disposição a compra e venda de livros que traduzem e levam essa mensagem esperançosa até o criado-mudo da sua cama, hoje existem as possibilidades de lugares de encontro multissexuais, bares, discotecas, etc. Hoje existem bandas de música com estética queer que você também pode adquirir e desfrutar, hoje existem lojas de artefatos contrassexuais para nossa estimulação plural ciber-carnal. Um mundo de fabulosas oportunidades para levar a cabo o discurso e o desborde estético necessários para nos sentirmos envolvidos e santificados pelo tema” (De Perra, 2015).

A despeito das críticas, há pessoas como a argentina val flores – sapatão, ativista da dissidência sexual, heterodoxa, pró-sexo, à margem das instituições (flores, 2013) – que irão defender, apesar de tudo, um “cuir” situado abaixo da linha do Equador. Daí o sentido do imperativo de descolonização como prática epistemológica e política da maior importância para a efetividade e o futuro de uma teoria que surgiu pela voz dos corpos anormais ou “abjetos” reunidos nas ruas por uma vida vivível.


“Contra as leituras cuir das práticas artísticas e políticas que o situam, seja nas geografias de Buenos Aires ou do Norte ianque ou europeu, paradoxalmente estabelecendo (…) novas formas de dominação internacional, aqui o cuir é disputado como o lugar de inconformidade com as hegemonias não apenas identitárias, mas também geopolíticas. Descolonização do cânone cuir, transformado em emblema do mercado. Contratextos capazes de desnaturalizar as rotinas da competência do saber e combater os códigos que decretam e sancionam o poder de representação, a tutela de quem fala. Cuir não como marca, senão como prática, em que a escrita se move como lugar de contrapoder frente às linguagens hegemônicas e binárias da fala cotidiana subsumidas na matriz do manual escolar. Escrita bastarda em que o próprio silêncio é ruptura, resistência a um sistema de signos, que pensa por subtração, nas páginas em branco, nas lacunas, nas fronteiras, nos espaços, nos buracos do discurso (flores, 2017, p. 55).

            Já no Brasil, Jota Mombaça é uma das vozes “kuir” mais eloquentes. Diante de uma certa disputa entre as comunidades LGBTs e o queer, ela não hesita em se posicionar como “bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimento do sul-do-sul global” (Mombaça, 2017). Ao falar sobre a redistribuição da violência, Mombaça se refere ao “estado molecular” (Mombaça, 2017) e destaca a urgência da luta interseccional contra uma certa “machulência” (Eké – Candomblé Sound System) ou “masculinidade tóxica” como ficção de poder.

“O estado, assim como as políticas, move-se com e pelo desejo. Quando o movimento LGBT brasileiro luta pela criminalização da homofobia, ele está lutando, no limite, por esse desejo. O desejo de ser protegido pela política e neutralizado pelo estado não importa a que preço. Não se considera, por exemplo, a dimensão racista estruturante do sistema prisional, cujo maior alvo segue sendo as pessoas pretas e empobrecidas, inclusive aquelas cujas posições de gênero e sexualidade poderiam ser compreendidas no espectro LGBT. A aposta nessas estruturas normativas como fonte de conforto e segurança para as comunidades agrupadas em torno da sigla LGBT é um sinal evidente da falta de imaginação política interseccional desses ativismos, que estão limitados a lutar no interior do projeto de mundo do qual temos sido reiteradamente excluídas” (Mombaça, 2017, p. 303).

Ao chamar atenção para as tensões recorrentes entre os movimentos LGBTs e os coletivos queer brasileiros, argentinos, chilenos, portugueses e espanhóis, Leandro Colling destaca alguns divisores de águas entre as duas vertentes (Colling, 2015). Em linhas gerais, enquanto aqueles primeiros focam nas políticas da igualdade, estes últimos se detêm nas políticas da diferença. Disso resulta que enquanto os LGBTs atuam no âmbito macropolítico das instituições, os queer agem prioritariamente na dimensão micropolítica da cultura. Se pautas como casamento igualitário, adoção homoparental e identidade de gênero, por exemplo, são bastante caras aos movimentos LGBTs, os dissidentes queer preferem agir em prol da sensibilização das pessoas por meio de performances e ações culturais, e não apenas via reformas pontuais a instituições tradicionalmente repressoras. Outro diferencial entre os dois grupos são as ações de desobediência civil. Enquanto o movimento LGBT tende a optar pela pressão ao campo político através de manifestações, abaixo-assinados, comunicados à imprensa etc, os coletivos queer preferem lançar mão de táticas arriscadas que, não raro, terminam com ativistas presos e/ou respondendo a processos judiciais. Finalmente, Colling menciona uma diferença, para ele, fundamental: a interseccionalidade. Enquanto os coletivos queer têm se mostrado mais engajados em estabelecer interfaces com outros movimentos – feministas, antirracistas, ecológicos, anticapitalistas e decoloniais – os movimentos LGBTs têm se revelado mais resistentes a tais coalizões. 

Finalmente, não obstante as heterogeneidades e os atritos, ambas as vertentes têm conseguido trabalhar juntas, apoiando-se em convergências estratégicas na luta comum contra a violência antiqueer e anti-LGBT em escalada, sobretudo, em governos misóginos, masculinistas e trans-lesbo-homofóbicos como o governo Bolsonaro. Nesse contexto pandêmico e necropolítico, que este verbete seja lido não como parte de uma enciclopédia escrita por e para o sujeito transparente do pós-iluminismo europeu, mas como verbo pulsante de um “feminário” queer a reverberar, coletivamente, pelos corpos e pelas mentes das guerrilheiras de Monique Wittig. “Elas dizem que se veem em movimento, com vigor e felicidade. Dizem que se ouvem gritar e cantar: o sol pode brilhar / o mundo pertence a nós” (Wittig, 2019, p. 87).

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