Ética do cuidado

Duas formulações e suas objeções

Por Juliana Missaggia

Professora do Departamento de Filosofia  da Universidade Federal de Santa Maria (EFSM) – Lattes 

PDF – Ética do cuidado

A ética do cuidado apresenta-se como uma das mais importantes áreas de estudos dentro da filosofia moral, contribuindo para uma revisão significativa de diversos elementos e conceitos tidos como fundamentais para o debate sobre a ação moral. A formulação, porém, do que se convencionou chamar de “ética do cuidado” (“ethics of care” ou “care ethics”) varia dependendo da autoria e das bases epistemológicas que a fundamentam. De modo semelhante, as diferentes propostas para a ética do cuidado motivaram uma série de críticas, também bastante distintas entre si, algumas das quais pretendem indicar falhas pontuais, enquanto outras atacam fundamentos significativos para a teoria. Na breve exposição que se segue, pretendo indicar em linhas gerais as principais características de duas propostas já clássicas, de Carol Gilligan e Nel Noddings, para com isso ter oportunidade de expor um panorama de objeções à ética do cuidado em suas diferentes abordagens.

Touched by another N. 4, de Amanda Tonkin-Hill

 Começando por uma breve análise das duas propostas para ética do cuidado que vão ser aqui analisadas, parto de uma das algumas considerações gerais sobre a abordagem de Carol Gilligan, a partir de sua obra “In a Different VoicePsychological Theory and Women’s Development”. Por vezes Gilligan é apontada como a principal precursora da ética do cuidado, ainda que outros textos do chamado “pensamento maternal” já apontassem para a mesma direção por ela indicada (ver Ruddick, 1989). Uma das grandes contribuições do trabalho de Gilligan foi justamente o caráter precursor de seus estudos dentro do campo em que eles surgem, que é o grande campo das pesquisas em teoria do desenvolvimento moral. As origens da pesquisa de Gilligan no campo da psicologia, portanto, são estudos empíricos que pretendem apontar para uma falha em certos pressupostos epistemológicos presentes em teorias do desenvolvimento moral bastante influentes, como a de  Lawrence Kohlberg.   

A autora parte da análise de diferenças na resposta moral de meninos e meninas ao longo de certo tempo, bem como de mulheres em diferentes faixas etárias, a partir de entrevistas com esses grupos. Como resultado, Gilligan constata existir uma diferença no desenvolvimento moral de cada um dos gêneros por ela estudados, mesmo resultado presente nas pesquisas de Kohlberg (Gilligan, 1982, p. 10-18).  

O aspecto mais relevante na especificidade do trabalho de Gilligan, porém, é que o resultado de suas pesquisas a levam a constatar que as chamadas teorias do desenvolvimento moral “tradicionais” resultam em um silenciamento do que ela reconhece como sendo a moralidade da “voz feminina”. Gilligan chega à conclusão de que tais teorias partem de uma base filosófica que dá atenção para certos termos e conceitos que são relevantes para perceber as diferenças entre os gêneros. A autora procura, portanto, desenvolver uma crítica ao que ela reconhece como uma “voz masculina” hegemônica na filosofia e que se manifesta também nas teorias do desenvolvimento moral, uma vez que estas são elaboradas com base na filosofia moral dita tradicional. 

Conforme já mencionado, um dos alvos da crítica de Gilligan é Kohlberg. O interessante do trabalho de Kohlberg é que ele é especialmente ilustrativo do que Gilligan aponta em relação ao problema do fundamento epistemológico que guia as pesquisas empíricas em torno do desenvolvimento moral. Falando de modo geral e bastante resumido, Kohlberg elabora uma teoria que tem por base seis estágios morais. No primeiro estágio, ocorre o que ele entende como “moralidade heterônoma”, que seria uma moralidade baseada na punição e obediência. Esse tipo de concepção de moralidade, que seria típica de crianças, envolve a ideia de obedecer a determinadas regras apenas pelo medo da punição; tem-se, portanto, uma concepção heterônoma de moralidade, porque não se parte de uma internalização do reconhecimento das razões da regra mas, simplesmente, da obediência à regra para evitar penalidade. 

No segundo estágio, teremos a orientação relativista instrumental, que diz respeito a uma concepção individualista de moralidade, na qual a pessoa procura obedecer a determinadas regras ou expectativas morais apenas para melhor se adequar ao meio. Há nesse caso o interesse individual de estar bem situado dentro de um contexto social e não propriamente o interesse em agir bem pela moralidade em si. Nesse contexto seria comum, portanto, uma moralidade relativista, que muda constantemente, de modo a se adequar ao que parece ser mais favorável de acordo com a circunstância particular. O terceiro estágio, por vezes chamado de “orientação bom garoto/boa garota”, tem por foco a ideia de conformidade interpessoal. Trata-se primariamente do desejo de agradar às pessoas próximas; portanto não há o entendimento sofisticado sobre a ação ser boa ou não moralmente, mas apenas um desejo de estar em conformidade com as expectativas do entorno social, procurando manter uma coerência na ação de acordo com as expectativas de sua família ou comunidade. Seria um tipo de estágio moral comum, por exemplo, entre adolescentes. 

O quarto estágio, por sua vez, diz respeito a uma ampliação mais significativa da compreensão da moralidade. Nesse contexto, há um maior conhecimento do sistema social e o surgimento de uma consciência moral mais complexa. De fato, no quarto estágio a orientação se dá em termos de obrigação moral. O sujeito moral, nesse caso, busca agir de acordo com o que considera ser sua obrigação: mas não há aqui, ainda, uma maior compreensão das razões pelas quais uma determinada conduta moral obrigatória seria adequada ou fundamentada moralmente. 

O quinto estágio diz respeito à chamada “orientação legalista”. Nesse caso, o sujeito moral estaria ciente de razões mais amplas a respeito da fundamentação de sua conduta moral, tendo como pano de fundo o contrato social e os direitos individuais. Agora o sujeito reconhece razões mais amplas em virtude das quais determinada conduta é necessária socialmente. Há, portanto, uma tentativa de fundamentar a moralidade com base também em suas consequências, levando em consideração a sociedade em um sentido mais amplo. Tal vem a ser, assim, uma ampliação significativa em relação a estágios anteriores nos quais a conduta moral estava centrada essencialmente em uma concepção ainda restrita da alteridade, por exemplo no âmbito familiar ou das relações mais próximas. Por fim, no sexto estágio, chegamos aos princípios éticos universais. Nesse momento, segundo Kohlberg, o sujeito moral estaria no grau máximo de seu desenvolvimento, baseando a tomada de decisão moral em princípios éticos universalmente fundamentados (Gilligan, 1982, p. 18 et seq). 

Os questionamentos de Gilligan em relação ao trabalho de Kohlberg partem em grande medida dos resultados aos quais este autor chegou por meio de suas pesquisas empíricas. Nessas pesquisas, as mulheres não atingiam graus de desenvolvimento moral tão altos quanto os dos homens. Era comum, por exemplo, que muitas mulheres estivessem, de acordo com a tabela de estágios, no terceiro patamar do desenvolvimento moral. Estariam, portanto, no estágio de conformidade interpessoal, tendo por foco agradar às pessoas de suas relações mais próximas (Gilligan, 1982, p. 18-20).  

A partir de uma análise crítica da base epistemológica presente na concepção de desenvolvimento moral de Kohlberg, Gilligan conclui o seguinte: o que se pode constatar seria não uma falha no desenvolvimento moral feminino, mas sim, justamente, uma base epistemológica tendenciosa operando na pesquisa empreendida pelo psicólogo. De fato, o estudo de Kohlberg seria excessivamente centrado na visão masculina da moral, típica da tradição filosófica, com foco em regras e direitos e com base na noção de justiça, em detrimento de outras concepções possivelmente importantes para a moralidade, tais como a empatia, os sentimentos ou as relações (Gilligan, 1982, p. 82 et seq).    

Por fim, a partir não só da análise do fundamento dos estudos de Kohlberg, mas também a partir de seus próprios estudos autônomos, Gilligan chega à conclusão de que há uma diferença significativa nas bases que fundamentam a moralidade masculina e a moralidade feminina mais típicas. No caso da moralidade masculina, haveria uma ênfase em direitos e princípios universais e imparciais; a moralidade feminina, por outro lado, acabaria por enfatizar questões como cuidado, relacionamentos, sentimentos, comprometimento e proteção, dando menos atenção a noções mais abstratas tais como princípios universais e justiça imparcial (Gilligan, 1982, p. 98 et seq).  

A partir disso, Gilligan procura defender que a moralidade feminina, a despeito de em grande medida negligenciar os conceitos mais amplamente trabalhados e valorizados na filosofia moral tradicional, seria um tipo de moralidade igualmente fundamental para a sociedade humana. Gilligan defende, por essa razão, a busca por sua valorização e inclusão na teoria moral. Sua defesa não envolve a ideia de uma incompatibilidade entre a ética do cuidado, manifesta mais claramente na moralidade tipicamente feminina, e a ética de princípios, da qual a modalidade masculina seria a representante. Gilligan acredita, ao invés, que é possível haver uma complementaridade entre as duas éticas, de modo que sua proposta aponta não para a substituição de uma por outra, mas sim para uma convivência, que tenha por resultado teórico uma substantiva ampliação da teoria moral, bem como a valorização de categorias morais normalmente negligenciadas ou sub-tematizadas (Gilligan, 1982, p. 130 et seq). 

A segunda proposta a ser analisada, defendida por Nel Noddings, surge em parte da rejeição à possibilidade de universalização abstrata dos julgamentos morais. Noddings sustenta que são os sentimentos e o envolvimento afetivo os fundamentos de toda a moralidade. A ética, portanto, surgiria como um desdobramento das relações mais próximas, nas quais existem laços afetivos, e o fundamento da moral teria por base a reciprocidade presente sobretudo nas relações de cuidado. Para Noddings, o cuidado ético é derivado do cuidado natural de tais relações mais imediatas (Noddings, 1986, p. 79 et seq).  

A filósofa reconhece que há um desejo humano básico e universal de cuidar e ser cuidado. Não há, em verdade, sequer a possibilidade de sobrevivência de nossa espécie sem cuidado parental. O fato de a filosofia moral tradicional ter negligenciado elementos como o cuidado se deveria em parte a tal tarefa ser tomada como algo absolutamente natural – embora exercida em maior parte, tradicionalmente, por grupos sociais específicos, como mulheres (Noddings, 1986, p. 104 et seq). 

Em sentido mais amplo há, também, segundo Noddings, um sentimento natural de “se importar com”, algo que seria comum a qualquer ser humano, com exceção de casos patológicos (de pessoas, por exemplo, incapazes de se conectar emocionalmente com seus semelhantes). Tal sentimento de “importar-se com” faria parte da nossa sociabilidade mais básica e a moralidade, portanto, seria um desenvolvimento de tal sentimento natural (Noddings, 1986, p. 79 et seq).  

De acordo com Noddings, então, o desejo de ser moral ou agir de modo moralmente correto está fundamentado na necessidade de estar conectado aos outros, a qual é, como já mencionado, em parte uma necessidade oriunda também das condições da nossa própria sobrevivência enquanto espécie. A fonte de obrigação moral, portanto, surge do valor atribuído às relações cotidianas de cuidado e não de imperativos abstratos, defendidos por boa parte da filosofia moral (Noddings, 1986, p. 94 et seq).  

Desse modo, tendo tais fundamentos para a obrigação e a justificação moral, o trabalho de Noddings aponta de maneira bastante contundente para os limites dos princípios éticos abstratos. Segundo a autora, a abstração das particularidades de toda a situação concreta, típica de uma ética baseada em princípios universais, acaba por gerar uma desconexão com o que haveria de propriamente moral em tal situação, como, por exemplo, suas particularidades, os sentimentos envolvidos, os relacionamentos, as pessoas específicas, etc. Não seria possível, por exemplo, encontrar uma regra para um dilema moral concreto, pois a resposta necessariamente dependeria do sujeito moral particular e da situação em que as pessoas envolvidas se encontram (Noddings, 1986, p. 90 et seq). 

A crítica de Noddings, desse modo, envolve a ideia de que princípios morais abstratos são limitados em sua aplicação e são, portanto, pouco informativos. Assim, para ela, não pode ser através de tais princípios que iremos encontrar os critérios para o certo e o errado do ponto de vista da moralidade. Noddings acredita que tais critérios são oriundos das relações afetivas próximas e do já mencionado sentimento natural que envolve a necessidade de oferecer e receber cuidado. Nesse sentido, a autora dá especial atenção às relações de “importar-se com” oriundas do cuidado parental, particularmente da relação mãe e filha ou filho. De fato, o modelo paradigmático da relação de cuidado está pautado na noção de maternidade, sobretudo do amor maternal (Noddings, 1986, p. 40 et seq). 

Buscando, porém, encontrar um antídoto para as possíveis críticas de relativismo, Noddings sustenta que tal inclinação natural ao sentimento de cuidado seria algo quase universal na espécie humana. Como mencionado anteriormente, tal sentimento surge do próprio papel desempenhado pelas relações de cuidado no que diz respeito à nossa sobrevivência enquanto espécie. O argumento gira em torno, essencialmente, da ideia de que o cuidado de que fomos objeto, sobretudo na infância, envolve sentimentos e afetos que servem de base para o que compreendemos como “certo” ou “errado” no trato humano. Embora tais noções possam evidentemente variar de acordo com a cultura da sociedade de determinado indivíduo, o cuidado e o “importar-se com”, em suas diferentes manifestações, seriam um fenômeno universal.   

Assim, apesar de estabelecer como fundamento da moral um sentimento natural que seria considerado em grande medida universal, Noddings reconhece que haveria limites para a obrigação moral. Uma vez que a autora busca estabelecer uma crítica às concepções abstratas de moralidade, ela reconhece que tampouco poderia defender uma noção abstrata para a ideia de obrigação moral. Para a filósofa, é um fato de simples constatação que não temos sentimento de cuidado por toda e qualquer pessoa. Seria natural, portanto, importar-se com pessoas próximas mais do que com desconhecidos ou pessoas mais distantes. O que ocorre, segundo Noddings, é que, dada nossa humanidade compartilhada e tal sentimento natural de “importar-se com”, há sempre a possibilidade do surgimento de relações em potencial. Seria com base em tais relações potenciais que a obrigação moral poderia se ampliar para além das relações pessoais mais próximas. Ainda assim, a autora defende que não apenas é natural, como também correto do ponto de vista moral, dar prioridade às relações afetivas próximas e ter, portanto, mais obrigação moral com as pessoas do nosso contato imediato (Noddings, 1986, p. 81 et seq).   

Dessa maneira, os critérios para obrigação moral envolvem relações atuais nas quais estejam presentes sentimentos e reciprocidade. A obrigação moral estende-se de maneira mais ampla quando se projeta o potencial de estabelecimento ou crescimento de relações. A obrigação moral para aqueles “mais distantes” ou desconhecidos, ou mesmo, em sentido amplo, a obrigação moral que se estende para a sociedade, envolve o reconhecimento de outros seres como também semelhantes a nós no que diz respeito à necessidade de dar e receber cuidado. Aplicamos, portanto, ainda que de maneira menos direta, uma projeção em relação aos sentimentos que de fato temos pelas pessoas de nossos relacionamentos mais próximos. A obrigação moral, no entanto, não ocorre de maneira igualitária, havendo graus para obrigação. Para Noddings, quanto maior a reciprocidade maior será a obrigação moral dentro do relacionamento.  

A partir da análise dessas duas propostas para ética do cuidado, é possível desenvolver, ainda que em linhas gerais, algumas das críticas que elas suscitaram. As críticas que aqui procurarei sistematizar são principalmente as objeções oriundas da teoria feminista. A intenção, porém, não é a de estabelecer uma análise exaustiva sobre elas, mas sim reuni-las com vistas a resumir os principais argumentos que apresentam.  

Começando pelas objeções da teoria crítica, verificamos a defesa de que não é possível utilizar a categoria gênero sem avaliar os fatores sociais de sua constituição. Esse seria, por exemplo, um equívoco cometido nos trabalhos de Gilligan, nos quais o gênero estaria reduzido à teoria psicológica, sem um maior detalhamento das razões de sua origem. Como vimos, ao procurar descrever as diferenças e peculiaridades da resposta moral das mulheres, mas sem procurar explicitar detidamente seus fundamentos sociais, Gilligan acabaria por apresentar o fenômeno da “voz diferente” feminina de maneira incompleta e superficial, uma vez que não se preocupa em explicitar justamente um dos elementos tidos como determinantes para qualquer estudo que faça um recorte de gênero (Benhabib, 1992, p. 190 et seq).  

Nesse sentido, poderia se verificar a falta de um maior desenvolvimento da noção de interseccionalidade, que aponta para a necessidade de analisar não apenas o gênero, mas também outros marcadores sociais, como raça e classe social, que afetam profundamente a experiência concreta dos sujeitos, determinando em grande medida, inclusive, como será vivida a experiência de ser mulher e a compreensão da própria feminilidade. Nos estudos da ética do cuidado de Gilligan e Noddings faltaria, por exemplo, um maior desenvolvimento sobre a diferença de classe e o impacto que tal diferença tem nas atividades do trabalho de cuidado. Como se sabe, as tarefas domésticas e do cuidado de crianças e doentes são largamente variáveis de acordo com a situação econômica da mulher, de modo que muitas mulheres de classes altas, mesmo que sofram a pressão social de serem responsabilizadas de maneira desigual por tais tarefas, podem, muitas vezes, delegá-las a mulheres mais pobres (para uma análise  dessa crítica  conferir Benhabib, 1992, p. 192 et seq).  

Partindo das objeções oriundas da teoria marxista, uma das principais críticas diz respeito à identificação de uma concepção que peca pela ingenuidade política, ao não dar o devido destaque aos fatores de opressão que permeiam as construções de gênero. Uma das manifestações de tal falta de aporte político crítico seria, por exemplo, a omissão de uma análise do cuidado como trabalho, sobretudo, como destacarão algumas autoras, enquanto trabalho feminino não remunerado – crítica essa à qual o trabalho de Noddings estaria igualmente sujeita. De fato, isso se manifestaria de uma maneira bastante explícita nos trabalhos de Noddings, por exemplo, no caso de diversas passagens nas quais a relação de cuidado da mãe para com o filho é o grande exemplo de moralidade (MacKinnon, 1985, p. 20 et seq). 

Outro exemplo relativo à dificuldade em estabelecer uma moralidade pautada na noção de cuidado seria o perigo de reforçar e elogiar a submissão feminina. Justamente levando em consideração o contexto político no qual a atribuição das tarefas de cuidado às mulheres é estabelecida, ao menos em parte, através de uma imposição social, seria preciso questionar em que medida a conexão entre ética do cuidado e moralidade tipicamente feminina não seria perigosa. Dada a seriedade das consequências políticas indicadas em relação a isso, trata-se de um dos pontos mais fortes das críticas endereçadas às propostas de ética pautadas na noção de cuidado (MacKinnon, 1985, p. 21 et seq). 

Continuando a sistematização das críticas à ética do cuidado, partimos agora para um resumo dos principais argumentos das objeções oriundas do feminismo lésbico. Uma das primeiras questões que são apontadas pelas autoras dessa corrente diz respeito à noção da mulher como “cuidadora”, a qual envolve, dentre outros elementos, um estereótipo da feminilidade heterossexual. Também aqui aparece a noção do cuidado como ao menos em parte uma imposição social, a qual é, inclusive, muitas vezes um fardo inconfessável para as mulheres, de modo que seria altamente problemático basear uma ética na noção de cuidado sem levar em consideração de maneira atenta o contexto político e social (Hoagland, 1991, p. 246 et seq). 

Outro ponto importante desse conjunto de críticas à ética do cuidado diz respeito à noção de maternidade como principal modelo para a moralidade, como aparece sobretudo no trabalho de Noddings. Isso seria problemático uma vez que no relacionamento entre mãe e filho existe, ao menos durante muito tempo, uma relação necessariamente desigual. Haveria, nesse ponto, algo especialmente problemático na argumentação de Noddings, uma vez que a autora estabelece como um dos critérios para a obrigação moral justamente a reciprocidade presente no relacionamento. Ora, no caso da relação de maternidade trata-se justamente de uma reciprocidade necessariamente limitada e desigual, de modo que mesmo nos termos defendidos por Noddings haveria um problema em estabelecer a maternidade como modelo moral (Card, 2010, p. 49 et seq). 

Uma das consequências dessa concepção diz respeito a correr o risco de reforçar a maternidade compulsória. Conforme é largamente discutido dentro da teoria feminista, muitas vezes a escolha de ser mãe não ocorre de maneira inteiramente livre, pois há uma pressão social bastante forte para que as mulheres decidam em favor da maternidade, do mesmo modo que é bastante comum verificar a tendência a criticar as mulheres que decidem por não ter filhos. Assim, levando em consideração tal contexto problemático em relação à maternidade, seria um problema tratar dessa noção sem um desenvolvimento maior da questão política que permeia o tema (Hoagland, 1991, p. 252 et seq). 

Outro elemento, também já indicado pelas autoras ligadas ao marxismo e à teoria crítica, como vimos, diz respeito à noção de cuidado enquanto trabalho. Especialmente autoras ligadas ao feminismo latino vão apontar para o fato de que o trabalho de cuidado deve ser analisado não apenas em relação à tendência de ser mal remunerado, mas também a partir do recorte de raça e classe necessário para sua compreensão. Em relação a isso, elas apontam para o fato facilmente verificável de que na maior parte dos casos o trabalho de cuidado é realizado por mulheres negras, africanas, latinas, asiáticas e pobres. Além disso, há todo um contexto bastante complicado do ponto de vista da moralidade, uma vez que ocorre com frequência que relações de afeto desiguais sejam estabelecidas nessas atividades, de modo que a separação entre o pessoal e o profissional fica diluída, por vezes gerando um contexto de exploração que se utiliza dos sentimentos que foram estabelecidos (Williams, 2001, p. 467 et seq). 

Outra crítica digna de nota diz respeito à noção de reciprocidade e o foco nas relações pessoais conforme estabelecido por Noddings. Haveria, nesse caso, o risco de individualismo e de exclusão de pessoas distantes, uma vez que, como vimos, a autora estabelece de maneira bastante explícita ser natural importar-se mais e ter mais obrigação moral em relação às pessoas mais próximas de nós. Ora, levando em consideração o contexto político de um mundo globalizado com relações de trabalho altamente desiguais e exploratórias, com problemas envolvendo imigrações e refugiados e com todo um histórico de colonização, dentre outros fatores, chama atenção o fato de que uma das consequências possíveis da interpretação do que Noddings defende é a ideia de que seria natural importar-se menos ou ter menos obrigação moral para com pessoas distantes do nosso entorno imediato, como, por exemplo, estrangeiros, pessoas de outras etnias e raças, praticantes de outras religiões, etc. Desse modo, surgem consequências políticas bastante nocivas dependendo da maneira como se interpreta a noção de obrigação moral a partir do trabalho de Noddings (Card, 2010, p. 73 et seq). 

Passando, por fim, para as chamadas “críticas pós-modernas”, encontramos alguns elementos dignos de nota nas objeções apresentadas, as quais em parte englobam considerações mais gerais sobre as bases e fundamentos filosóficos assumidos nas formulações da ética do cuidado. A primeira delas diz respeito a um aparente compromisso com uma concepção rígida da noção de “mulher” e de “sujeito”. Haveria, por trás das propostas da ética do cuidado, uma discussão que gira em torno da chamada “lógica da identidade”, que pressupõe a noção de feminilidade como algo muito mais estável, unitário e identificável do que ela de fato seria (Young, 1986, p. 3 et seq).  

A ética do cuidado, portanto, consistiria em uma teoria comprometida com a ideia de uma estabilidade, em verdade artificial, da categoria “mulher”. Tal noção estaria constituída sobretudo a partir do estereótipo eurocêntrico de feminilidade, marcado justamente pelos pressupostos da filosofia desenvolvida na Europa. A própria concepção de Gilligan de uma ética própria da “voz feminina”, sem questionar suficientemente em quais grupos sociais suas pesquisas estão centradas, demonstra um problema metodológico bastante grave, especialmente se levar em consideração a falta, como já foi indicado, de um recorte preciso de raça e classe (Flax, 1987, p. 621 et seq).  

Assim, o que poderia se verificar tanto nos estudos de Gilligan, como também no trabalho de Noddings é a falta de uma maior sofisticação do ponto de vista conceitual em relação aos papéis de gênero e ao perigo da essencialização de tais modelos. O fato de não haver uma problematização suficiente desse elemento teria consequências graves para a teoria da ética do cuidado, pois independentemente de as autoras defenderem tal concepção de moralidade como sendo possível de ser atribuída também a homens, o fato é que toda a discussão desenvolvida por elas acabaria por separar a moralidade em “feminina” e “masculina” reforçando, portanto, os estereótipos de gênero e essencializar as noções de homem e mulher.  

As defensoras da ética do cuidado, porém, argumentam que suas eventuais limitações seriam falhas passíveis de correção, sem que a base mesma da teoria fosse afetada. Para elas, a ética do cuidado surge como uma alternativa, ou, ao menos, um complemento significativo diante do reducionismo da teoria moral tradicional. As diferentes versões da ética com base no cuidado – como as duas aqui analisadas –, teriam em comum o mérito de valorizar traços morais normalmente negligenciados ou minimizados, como a empatia, as emoções e a análise contextual dos dilemas éticos, garantindo uma ampliação e maior democratização da filosofia moral.  

 

Bibliografia 

BENHABIB, Seyla. (1992). Situating the Self: Gender, Community, and Postmodernism in Contemporary Ethics. New York: Routledge. 

BLUM, Lawrence A. (1994). Moral perception and particularity. Cambridge University Press. 

CARD, Claudia. (2010). The unnatural lottery: Character and moral luck. Temple University Press.  

CARD, Claudia. (2003). Beauvoir and the Ambiguity to “ambiguity” in ethics. In: The Cambridge Companion to Simone de Beauvoir. Cambridge University Press, 2003. 

FLAX, Jane. (1987). “Postmodernism and Gender Relations in Feminist Theory,” Signs, 12.4, pp. 621–43. 

GILLIGAN, Carol. (1982). In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.  

KITTAY, Eva Feder. (1999). Love’s Labor: Essays on Women, Equality, and Dependency. New York: Routledge.  

KOHLBERG, Lawrence. (2003). Psicología del desarrollo moral. Desclée de Brouwer.  

HALWANI, Raja. (2003). “Care Ethics and Virtue Ethics.” Hypatia: 161-192.  

HELD, Virginia. (2006). The ethics of care: Personal, political, and global. Oxford University Press.  

HELD, Virginia. (2004). “Care and justice in the global context.” Ratio Juris 17, no. 2, pp.141-155.  

HOAGLAND, Sara Lucia. (1991). “Some thoughts about caring” In: CARD, Claudia, ed. Feminist Ethics. Lawrence: University Press of Kansas.  

NODDINGS, Nel. (1986). Caring: A Feminine Approach to Ethics and Moral Education. Berkeley: University of California Press.  

NODDINGS, Nel. (2002). Starting at Home: Caring and Social Policy. Berkeley: University of California Press.  

RUDDICK, Sara. (1989). Maternal Thinking: Toward a Politics of Peace. Boston: Beacon Press.  

ROBINSON, Fiona. (2011). The ethics of care: A feminist approach to human security. Temple University Press.  

SLOTE, Michael. (2007). The ethics of care and empathy. Routledge.  

SLOTE, Michael. (2001). Morals from Motives. Oxford: Oxford University Press.  

SOSA-PROVENCIO, Mia Angélica. (2016) “Seeking a Mexicana/Mestiza critical feminist ethic of care: Diana’s revolución of body and being.” Journal of Latinos and Education 15, no. 4, pp. 303- 319. 

WILLIAMS, Fiona. (2001). “In and beyond New Labour: towards a new political ethics of care.” Critical social policy 21.4, pp. 467-493. 

YOUNG, Iris Marion. (1986). “The ideal of community and the politics of difference.” Social theory and practice 12.1, pp.1-26