O Pensamento de Direita, Hoje

Por Bruna Mello

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do Grupo de Pesquisa em Filosofia Política – CNPq – Lattes

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BEAUVOIR, Simone de. O Pensamento de Direita, Hoje. Tradução: Manuel Sarmento Barata (1ª Ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, Série Rumos da Civilização Moderna, vol. 4, 1967, 114 páginas.

Simone de Beauvoir viveu entre os anos 1908 e 1986 em Paris, na França. Vinda de uma família burguesa que perdera parte de seus recursos econômicos durante a Primeira Guerra Mundial, Beauvoir enfrentou desde cedo as contradições de sua situação. Apesar de ter sido educada para realizar a tradicional função que a moral burguesa destinava à mulher burguesa – enquanto esposa, dona de casa e mãe – contrariou essa expectativa ao prosseguir os estudos para trabalhar e viver de forma independente, não se casando e não tendo filhos biológicos. Ela adotou legalmente Sylvie le Bon de Beauvoir em 1980, de quem já cuidava e a quem sustentava há muito tempo, para ser a responsável por sua herança literária. Licenciou-se em Letras Clássicas no Institut Sainte-Marie-de-Neuilly e em Matemática no Institut Catholique de Paris, e depois, em 1927, iniciou sua formação em Filosofia na Sorbonne, que terminou com a aprovação em segundo lugar no concurso de agrégation, aos 21 anos de idade. Daí por diante, passou a lecionar Filosofia e iniciou a publicação de seus textos filosóficos e literários durante a Segunda Guerra Mundial.

Embora seja mais conhecida como a autora de “O Segundo Sexo” (1949), obra indispensável para a Teoria Feminista, Beauvoir publicou ao longo de sua vida diversos escritos que retrataram de maneira crítica o momento histórico em que viveu. Em 1955, ela publicou em uma edição especial da revista Les Temps-Modernes [Os Tempos Modernos], intitulada La Gauche [A esquerda], um ensaio filosófico-político intitulado La Pensée de Droite, Aujoud’hui [O Pensamento de Direita, Hoje]. No mesmo ano, ela republicou-o em conjunto com os dois outros textos, Faut-il brûler Sade? [Deve-se queimar Sade?] e Merleau-Ponty et le pseudo-sartrisme [Merleau-Ponty e o pseudo-sartrismo], como uma coletânea de ensaios filosófico-políticos intitulada Privilèges [Privilégios]. Em Privilèges,Beauvoir tem como objetivo responder à seguinte questão: “Como os privilegiados podem pensar a sua situação?” (BEAUVOIR, 1955, p.7, tradução minha).

La Pensée de Droite, Aujourd’hui foi traduzido para o português e publicado em 1967 sob o título “O Pensamento de Direita, Hoje”. Neste ensaio, Beauvoir realiza uma crítica à ideologia burguesa a partir da investigação dos princípios que constituem o pensamento de direita. Para isso, a autora percorre o pensamento de Jules Monnerot, Oswald Spengler, Friedrich Nietzsche, Karl Jaspers, Max Scheler, James Burnham, Arnold Toynbee, Raymond Aron, entre outros, com o objetivo de compreender de que modo estes autores fundaram o que, segundo ela, apresenta-se como o contrapensamento de direita.

Para defender a tese de que o pensamento de direita “não é mais que um contrapensamento” (BEAUVOIR, 1967, 114), Beauvoir investiga os princípios que constituem tal ideologia e de que modo eles atuam na realidade concreta com o objetivo de evidenciar que “todas as contradições do pensamento burguês se reduzem a uma só: é impossível à burguesia assumir pelo pensamento sua atitude prática” (BEAUVOIR, 1967, p.112). É importante observar que o cerne da crítica da autora ao pensamento conservador está na impossibilidade de síntese de suas contradições. Nas palavras de Beauvoir, trata-se de uma dialética mutilada, na qual as contradições que constituem o pensamento burguês não se superam e, no fim, evidenciam não apenas um pensamento incoerente, mas um não-pensamento. Na conclusão do ensaio, a autora sintetiza os principais conceitos mobilizados para sustentar sua tese:

Se nos deixarmos levar para o terreno em que pretende situar-se o pensamento burguês, ele nos aparecerá como um tecido de contradições. Realista, duro, pessimista, cínico, é também espiritualista, místico, fracamente otimista. É uma filosofia da imanência e uma religião do Transcendente. Substancialista e pluralista, adere, não obstante, a um idealismo monista. Em certos momentos, pretende ser sintético; em outros, postula o atomismo. Porém, se o criticássemos sob este aspecto, teríamos caído na armadilha do idealismo: consideraríamos a ideologia burguesa como um fenômeno original, fundado na investigação da Verdade. Sua ambivalência nos adverte que não nos deixemos enganar: todo pensamento se desenvolve, não entre Ideias, mas sobre a terra, pondo a descoberto uma prática. Se o pensamento dos burgueses é tão embaraçado, é que há contradição entre os termos que o expressam e a prática. (BEAUVOIR, 1967, pp.109-110)

Este trecho sinaliza dois pontos para os quais devemos estar atentos. Em primeiro lugar, é preciso levarmos em conta os contextos históricos e políticos nos quais a autora está escrevendo. Em 1955, havia apenas dois anos que a União Soviética se encontrava livre da autocracia stalinista e começava a viver o processo de desestalinização. Além disso, os movimentos fascistas que surgiram na Primeira Guerra Mundial e se expandiram pela Europa estavam entrando em colapso depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Com o fantasma do fascismo, de um lado, e a bolchevização dos partidos comunistas pelo stalinismo, de outro, o movimento revolucionário vivia um momento de refluxo. Diante dessa situação, Beauvoir compunha o grupo dos intelectuais de esquerda que compreendia que a atuação do stalinismo serviu precisamente para impedir a revolução proletária na Europa e no mundo todo, permitindo a ascensão do fascismo. Posteriormente, em “A força das coisas”, Beauvoir relembra a situação sob a qual escrevera e publicara inicialmente o ensaio, em maio de 1955 na Les Temps-Modernes:

Pareceu-nos [aos membros da equipe da Les Temps-Modernes] necessário distinguir na “esquerda” nossos verdadeiros aliados e nossos adversários […] Quanto a mim, abordei a questão pelo avesso, tentando definir as ideias defendidas pela direita hoje. Sentira prazer em destrinchar os mitos tecidos em torno da mulher; também neste caso tratava-se de pôr a nu as verdades práticas – defesa dos privilégios pelos privilegiados – que dissimular sua crueza por trás de sistemas e conceitos nebulosos; eu já lera muito, já engolira muitas tolices; arrecadei outras. Entediava-me, mas com satisfação, pois essa fumaça indicava a derrota ideológica dos privilegiados. (BEAUVOIR, 2018, pp.315-316)

É nesse sentido que, em segundo lugar, é imprescindível notarmos a influência que Marx tem em “O Pensamento de Direita, Hoje”. É pouco comum vermos o reconhecimento da influência da teoria social de Marx sobre o pensamento de Beauvoir. No entanto, neste ensaio, o retorno à fonte marxiana aparece como uma ferramenta necessária para combater o anticomunismo e as desfigurações que o marxismo sofrera tanto no campo dos adversários quanto no próprio campo do marxismo. Posto isso, apresento brevemente a seguir de que modo Beauvoir aplica o método histórico dialético em sua análise sobre as contradições insuperáveis do pensamento de direita.

Embora se diga universalista, a burguesia age de modo particularista: esta é a primeira contradição do pensamento de direita que Beauvoir nos apresenta. Ao interpretar o Homem a partir do homem burguês, e ao interpretar a Europa e o Ocidente a partir da burguesia europeia, o pensamento burguês aplica um de seus princípios: o idealismo. É por meio deste princípio que a burguesia afirma sua pretensão universalista, pretensão esta que não passa de uma infundada universalização das particularidades que são vantajosas apenas à classe burguesa. Desse modo, a burguesia recusa a realidade concreta e material, da qual está protegida, em termos das necessidades que são comuns aos não-privilegiados, e a substitui por Ideias que são delimitadas segundo os interesses particulares de sua classe, isto é, “ao invés de lutar contra privilégios alheios, defende hoje seus próprios privilégios contra o resto da humanidade” (BEAUVOIR, 1967, p.10).

Para a burguesia, o privilegiado é o único ser dotado de uma verdadeira existência. Aos não-privilegiados, as massas, resta apenas uma interpretação negativa da sua realidade, que ignora as particularidades de sua classe. “Com efeito, como justificar universalmente a reivindicação de particularidades vantajosas?”, Beauvoir questiona. “É natural que cada um se prefira, mas é impossível erigir essa preferência em um sistema válido para todos” (BEAUVOIR, 1967, pp.10-11). É, portanto, a partir da preferência que o pensamento burguês tem a pretensão de universalizar particularidades, desprezando, assim, as necessidades alheias para afirmar sua superioridade e garantir seus interesses:

Assim, embora mantendo a pretensão universalizante do seu pensamento, o ideólogo burguês não desiste da vontade particularista de sua classe. Não lhe resta outra saída senão negar a particularidade do momento exato em que a formula. Todo burguês está praticamente interessado em dissimular a luta de classes; o pensador burguês é obrigado a isto, se quer aderir a seu próprio pensamento. Recusa, pois, atribuir qualquer importância às singularidades empíricas da sua situação, e, correlatamente, ao conjunto das singularidades empíricas que definem as situações concretas. Assim, os fatores materiais só têm um papel secundário nas sociedades. O pensamento transcende essas contingências. A humanidade é idealmente homogênea. E é o homem, tal como paira no céu inteligível, o homem único, indivisível, unânime, acabado, que se expressa pela boca do pensador. (BEAUVOIR, 1967, p.14)

Contra os particularismos, mas devota de uma concepção excludente de universalidade, a burguesia recusa a realidade concreta da existência para se defender contra o marxismo, pensamento que ameaça não somente sua hegemonia, mas sua própria existência. De acordo com Beauvoir, o pensamento de direita se define em negatividade: a partir do e contra o comunismo. O marxismo surge como uma ameaça aos burgueses na medida em que “torna a fazê-los descer brutalmente ao plano dos demais homens” (BEAUVOIR, 1967, pp.13-14), isto é, ao colocá-los sob o plano do real, cai por terra todo idealismo por meio do qual o pensamento de direita se eleva, evidenciando que o sistema burguês não faz justiça alguma à universalidade concreta.

No entanto, ao mesmo tempo em que a burguesia nega qualquer valor ao marxismo, ela se horroriza com a confirmação dos fatos sobre o desenvolvimento do capitalismo pressupostos pelo marxismo. O sistema capitalista caracteriza-se como uma economia de mercado por meio da qual se processa a livre concorrência. A crise do capitalismo surge na medida em que as empresas monopolizam o mercado suprimindo as concorrências, contradizendo o próprio princípio de livre concorrência pelo seu oposto, o monopólio. Quando as crises passam a não ser mais uma possibilidade para se tornarem um fenômeno inevitável, ou melhor, um fenômeno que faz parte do próprio funcionamento do sistema capitalista, evidencia-se que são justamente as contradições do capitalismo que o sustentam e conservam sua manutenção. Desse modo, Beauvoir se apoia na crítica de Marx ao sistema capitalista para apresentar o anticomunismo como a segunda contradição do pensamento de direita.

A contradição do princípio anticomunista, argumenta a autora, é ocultada e justificada pelo pensamento de direita por meio de um pessimismo catastrófico. Isto é, coloca-se o socialismo como uma fatalidade, transformando sua necessidade em um mero acidente, tal como fez o stalinismo. A ideia de que o socialismo é uma fatalidade histórica incorre em uma visão determinista do desenvolvimento histórico que anula os aspectos centrais da luta de classes defendidos por Marx. Quando se assume uma concepção fatalista do socialismo, os seres humanos são eliminados do processo histórico do qual são os próprios agentes. A burguesia prefere, assim, “condenar a humanidade ao absurdo, ao nada, do que pôr-se a si mesma em discussão” (BEAUVOIR, 1967, p.15). Desse modo, a ameaça da inevitabilidade da transição socialista para a burguesia ofusca a ameaça real das contradições que regem o desenvolvimento do capitalismo.

Em vista disso, como o pensamento de direita, constituído pelo idealismo e pelo anticomunismo, explica a existência das desigualdades econômico-sociais? Segundo Beauvoir,  a direita assume uma interpretação psicologista da História, que transforma as classes econômicas em um estado de espírito. Para os burgueses, não é o desenvolvimento da História que explica as situações desiguais nas quais diferentes grupos estão inseridos, mas um julgamento moral que ignora todo aspecto sócio-histórico e atribui à natureza do indivíduo – seja por raça, sexo, classe – a justificativa para a predestinação de sua situação. Desse modo, para a moral idealista psicofisiológica o inferior é inferior – e sempre será – porque  é negro, judeu, mulher, proletário; ao passo que o superior é superior  – e sempre será – porque é branco, cristão, homem, burguês. Nas palavras de Beauvoir:

Esta mentalidade é um complexo por demais misterioso que depende parcialmente de fatores de ordem externa, mas que expressa antes de tudo uma determinada essência: há uma alma negra, um caráter judeu, uma sabedoria amarela, uma sensibilidade feminina, um bom-senso camponês, etc. A natureza de sua essência define a região do ser que é acessível a cada um. Porque esta filosofia subjetivista é também anti intelectualista: é uma filosofia não da consciência, mas do ser […] O homem da direita despreza, como “primário”, o saber sistematizado, que se comunica metodicamente e pode-se abeberar nos livros; só lhe merece crédito a experiência vivida, que une singularmente um sujeito e um objeto que participam de uma mesma substância. (BEAUVOIR,  1967, pp.55-56)

 A naturalização de condições históricas específicas, como a situação de opressão das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, entre outras, não é realizada por mera aparência: ela é característica da estrutura da sociedade capitalista. Não é sem razão que Beauvoir afirma que a moral idealista psicofisiológica retoma um pessimismo cristão e um ceticismo naturalista. O recurso à doutrina cristã é útil aos burgueses na medida em que “se vale de Deus para justificar a exploração do homem pelo homem” (BEAUVOIR,  1967, p.34, destaque meu). Em conjunto com o determinismo biológico, que se vale da natureza para tentar justificar as desigualdades sociais, o pensamento de direita se perde em suas próprias contradições. Para Beauvoir, portanto, o pensamento de direita não supera as contradições que o constituem exatamente porque salta do real para o universal e do universal para o real, sem, contudo, jamais conseguir reuni-los.

Embora a autora analise a constituição do pensamento de direita a partir de uma determinada situação – a situação na qual a Europa se encontrava no pós-guerra –, seu ensaio tem muito a contribuir com a nossa compreensão do momento histórico em que vivemos, no Brasil e no mundo. Atualmente, a compreensão do (contra)pensamento de direita se complexifica na medida em que os conservadores não mais se concentram em uma classe econômica; isto é, muitas pessoas das classes menos privilegiadas passam a defender a pretensa universalização das particularidades da classe dominante que, com efeito, serve apenas para conservar o sistema opressor no qual estamos inseridos.

Além disso, enquanto definida pela negatividade, a direita insiste no recurso ao anticomunismo, desqualificando todo tipo de articulação política, em especial de esquerda, que ameaça sua hegemonia e contesta os princípios opressivos que regem o capitalismo. No entanto, com a falsa concepção homogeneizada da oposição, que não distingue os princípios reformistas dos revolucionários e até mesmo de alguns princípios conservadores, criam-se polarizações políticas que, de um lado, complexificam ainda mais a luta anticapitalista e, do outro, despertam o fantasma do fascismo.

 A negação da História é ainda um dos principais recursos no qual a direita se apoia. A recusa da necessidade do passado para compreender o presente é articulada ao uso de uma história convenientemente particularizada que pretende justificar o conservadorismo como a única salvação contra toda a “ameaça” que a esquerda-marxista-comunista (para a direita, significam a mesma coisa, já que a história não a interessa) conferem à manutenção da ordem social. Desse modo, o pensamento de direita interpreta condições histórias como naturais, por exemplo, quando rejeita as particularidades das condições de diferentes grupos sociais que foram historicamente colocados à margem da sociedade, como mulheres, negros, trabalhadores, lgbtqia+, entre outros, justamente porque entende que as condições de tais grupos foram determinadas pela natureza. Assim, passados sessenta e seis anos de sua primeira publicação, “O Pensamento de Direita, Hoje” permanece sendo uma análise crítica extremamente pertinente dos ideais e práticas contraditórios que sustentam o pensamento de direita contemporâneo.

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. A Força das Coisas (1958). Tradução de Maria Helena Franco Martins. – 5ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

_____. O Pensamento de Direita, Hoje (1955). Tradução de Manuel Sarmento Barata. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

_____. O Segundo Sexo: fatos e mitos, vol. 1 (1949). Tradução Sérgio Milliet. – 3ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

_____. O Segundo Sexo: a experiência vivida, vol. 2 (1949). Tradução Sérgio Milliet. – 3ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

_____. Privilèges. Paris: Gallimard, 1955 (Collection Les Essais, n° 76).

GRESPAN, Jorge. Marx: uma introdução. – 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2021.

NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1981.

_____. Introdução ao estudo do método de Marx. – 1.ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2011.