Amy Allen e as reconciliações do feminismo

Por Ingrid Cyfer 

Professora do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Lattes

E Felipe Gonçalves Silva 

Professor do Departamento de Filosofia da  Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS)  – Lattes

PDF – Amy Allen e as reconciliações do feminismo

Foto disponível no site da Washington State University,

Amy Allen (1970) é professora de filosofia e estudos de gênero na Universidade Estadual da Pensilvânia, sendo considerada uma das filósofas feministas de maior destaque na teoria crítica contemporânea. Sua obra encontra-se profundamente marcada pela tentativa de superar cisões consideradas intransponíveis tanto no pensamento feminista quanto na crítica social em sentido amplo. Ao invés de concentrar seus esforços no desenvolvimento de um sistema teórico inteiramente novo e abrangente, a autora busca pavimentar caminhos multilaterais que permitam integrar contribuições já existentes, mas tradicionalmente conflitantes, no interior da teoria e da práxis feminista. 

Isso pode ser observado em suas principais obras. Em The Power of Feminist Theory: Domination, Resistence and Solidarity (1999), Allen busca integrar uma rica variedade de concepções de poder desenvolvidas no interior do debate teórico feminista, tecendo interpretações capazes de reduzir antagonismos fortes e incompatibilidades consideradas até então insuperáveis. Nesse sentido, a autora procura agregar posturas teóricas tão diversas como a teoria da dominação desenvolvida pelo feminismo radical de Carole Pateman e Catharine MacKinnon, a ética do cuidado de Carol Gilligan, o feminismo liberal de Susan Okin, a teoria da performatividade de Judith Butler e a teoria da ação de Hannah Arendt. Ao longo desse percurso, a autora defende a complementaridade das contribuições particulares de cada uma dessas posturas teóricas e a superação de seus limites específicos, tendo por resultado a agregação dos inúmeros modelos observados como componentes de uma orientação metodológica eclética e plural, necessária à apreensão mais rica da experiência do poder vivida por mulheres.  

Em The Politics of Ourselves: Power, Autonomy and Gender in Contemporary Critical Theory (2008), encontramos a tentativa de integrar a teoria do poder desenvolvida na obra anterior com preocupações teórico-normativas centradas na ideia de autonomia. Com isso, Amy Allen procura não apenas conjugar impulsos teóricos desagregados na história do pensamento feminista como também reabilitar um debate teórico-político que, segundo sua avaliação, encontra-se há décadas paralisado por cisões perseverantes entre crítica normativa e pós-estruturalista. A despeito do ecletismo de The Power of Feminist Theory, Allen concentra-se aqui na dimensão subjetiva do poder – vale dizer, no poder como sujeição, entendido como o processo ambivalente por meio do qual o sujeito é constituído pela “subordinação a normas disciplinares”, ao mesmo tempo em que nele adquire sua “capacidade de agir”. (Allen, 2008, 72) A autora atribui a Judith Butler o impulso definitivo para compreender a sujeição como processo formador das identidades de gênero; sobretudo, são encontrados em Butler os recursos teóricos melhor acabados para “um diagnóstico plausível sobre a subordinação recalcitrante de mulheres depois de décadas de crítica feminista e ativismo político” (Allen, 2008, 80).  

Entretanto, se Butler confere os recursos teóricos mais apropriados a um diagnóstico da subordinação de gênero, atento sobretudo aos motivos de fixação da identidade pessoal a normas subordinantes, ele é visto como limitado naquilo que se refere ao “esclarecimento das condições de possibilidade necessárias a uma prática feminista efetiva de resistência individual e coletiva à sujeição” (Allen, 2008, 74). Vale dizer, a teoria butleriana do poder acabaria transformando sujeição e subordinação em categorias indistintas, tratando a subordinação de gênero como uma necessidade inelutável e a resistência feminista, por sua vez, como uma prática improvável ou fundamentalmente ineficaz. Nesse sentido, Allen defende a necessidade de se combinar o modelo da sujeição com referenciais normativos dedicados ao delineamento de formas não subordinantes de reconhecimento e, sobretudo, à expectativa de autonomia delas decorrentes. Para combiná-las à compreensão do poder como sujeição, entretanto, as heranças normativas dedicadas à autonomia pessoal têm de ser depuradas de seus excessos racionalistas – evitando a expectativa de controle racional pleno sobre normas, valores e significados que dirigem o comportamento, bem como um modo de exercício desse controle que supõe o distanciamento reflexivo dos sujeito em relação a seus respectivos corpos e contextos de formação. Em função disso, a autora irá se voltar à concepção de Self narrativo de Seyla Benhabib, cujos desenvolvimentos permitiriam manter o projeto de situar e corporificar o self sem a anulação de suas capacidades de ação e juízo prático. 

Segundo essa concepção, o self é considerado não uma agência racional que determina seus campos de ação por meio de um juízo independente de seus corpos e contextos, mas como a geração de sentido na composição de uma narrativa pessoal que parte de recursos simbólicos que não se domina plenamente. Ao interpretar a célebre frase de Freud “o eu não é mestre em sua própria casa” como “nossa casa não é apenas habitada por nós” (Benhabib, 2017, p. 159), Benhabib assinala o caráter radicalmente intersubjetivo do processo de subjetivação. Para Allen, porém, o modelo narrativo de Benhabib não cumpriria completamente a tarefa a que se propôs, pois, se de um lado, “constrói o núcleo da identidade como uma habilidade de fazer sentido e não como uma substância”, de outro, permaneceria preso a resquícios racionalistas, uma vez que o núcleo do self seria entendido como uma capacidade de narrar que não é ela própria generificada (Allen, 2008, pp. 162-3). 

Apesar dessas críticas, Allen não pretende descartar as contribuições de Benhabib e Butler para suas reflexões. Conforme dito anteriormente, seu projeto é antes o de buscar uma reconciliação entre posições a seu ver complementares – neste caso, o potencial explicativo da teoria da subordinação de gênero com o ímpeto emancipatório das teorias feministas normativas, retomando um programa que Nancy Fraser havia iniciado na década de 1980 com seu artigo “Foucault on Modern Power: Empirical Insights and Normative Confusions”. 

Em sua obra seguinte, The End of Progress: Decolonizing the Normative Foundations of Critical Theory (2016), Allen parece se distanciar do tipo de síntese que buscou em The Politics of Ourselves para defender uma incorporação mais efetiva do pensamento pós- e decolonial na teoria crítica contemporânea. Mais especificamente, trata-se de combater a ideia de progresso como pressuposto central aos principais modelos normativos da teoria crítica mais recente, denunciando nele a persistência de resquícios imperialistas que alimentariam a compreensão de povos não-brancos e não-europeus como civilizatoriamente atrasados, o que justificaria a persistência  de sua opressão e dominação geopolítica: “a linguagem do progresso e do desenvolvimento é a linguagem da opressão e da dominação para dois terços da população mundial” (Allen, 2016, p. 3). 

Apesar de denunciar o imperialismo colonial na teoria crítica, Allen encontra recursos teóricos para subvertê-lo no interior dessa mesma herança intelectual, especialmente na figura do filósofo Theodor Adorno. Sua leitura de Adorno, feita à luz do pensamento pós-colonial, busca levar adiante uma concepção de liberdade que nos remete não à “capacidade de perseguir um fim”, mas à “abertura ao desconhecido”. Com base nessa concepção de liberdade, Allen propõe um novo método para a teoria crítica: a genealogia problematizadora (Allen, 2016, pp. 204-205). Trata-se de um método comprometido com o que chama de uma “disposição de problematizar nosso ponto de vista”, uma disposição de aprender a desaprender, de cultivar uma atitude crítica em relação a nossos próprios comprometimentos normativos. Nesse sentido, nem mesmo Adorno e Foucault, utilizados como referências valiosas nesse projeto, são poupados da problematização genealógica de seus pressupostos eurocêntricos. 

Em paralelo ao projeto de “descolonizar a teoria crítica”, Allen tem direcionado sua pesquisa para a relação entre teoria crítica e psicanálise. Partindo da obra de Honneth (2007), Allen sustenta que a teoria crítica precisa da psicanálise por duas razões fundamentais. A primeira é de ordem metanormativa ou filosófico-antropológica, ou seja, diz respeito à necessidade de poder contar com uma noção de pessoa que considere seus conflitos inconscientes, evitando com isso “tendências direcionadas a um racionalismo excessivo e ao idealismo moral” (Allen, 2017, p. 201). A segunda razão, por sua vez, é de caráter explicativo, uma vez que considerada essa noção realista de pessoa que a psicanálise contribui para conceber, a motivação da crítica terá de ser desenvolvida com um repertório apropriado a sua ambivalência constitutiva, ou seja, de apreender o conflito entre “as forças psíquicas que vinculam sujeitos subordinados a modos de identidade (…) que os subordinam e ferem” (Allen, 2017, pp. 202-3).  

Embora seu modo de compreender o papel da psicanálise na Teoria Crítica seja fortemente inspirado em Honneth, Allen distancia-se dele no que se refere à escolha da teoria psicanalítica para esse fim, defendendo a teoria de Melanie Klein como a mais produtiva para seu modelo crítico. Isso porque Allen encontra em Klein uma teoria pulsional em que pulsões são concebidas “como predisposições a se relacionar com os outros de certas maneiras – seja amorosa ou destrutivamente” (Allen, 2017). Assim, além de não ser reduzida a impulsos antissociais biologicamente determinados, a concepção kleiniana de pessoa seria mais realista, na medida em que “seu foco na ambivalência (…) nos permite entender as forças psicológicas e motivacionais que sustentam tanto o desejo de dominar os outros como o desejo de se submeter à dominação” (Allen, 2017, p. 230). 

A contribuição de Allen para a Teoria Crítica feminista, como se vê, concentra-se sobretudo em reflexões sobre subjetivação em um percurso marcado por projetos interdisciplinares que desafiam as fronteiras entre perspectivas epistemológicas rivais. Mas sua porta de entrada nessas discussões foram as teorias feministas sobre poder, nunca efetivamente abandonadas ao longo de sua obra e a partir das quais passaria a problematizar resíduos sexistas, racionalistas e imperialistas na própria Teoria Crítica, explorando com isso novos sentidos e desafios para a continuidade de seu compromisso emancipatório (para uma recente, mas já acalorada recepção da autora no Brasil, cf. Frateschi, 2018; Marin, Cyfer, 2018; Mazzei, 2019.)  

 

Bibliografia 

Allen, A. (1999) The Power of Feminist Theory. Boulder: Westview Press.  

_____ The Politics of Our Selves: Power, Autonomy, and Gender in Contemporary Critical Theory. (2008) New York: Columbia University Press. 

_____ The End of Progress: Decolonizing The Normative Fundations of Critical Theor(2016). Nova York: Columbia University Press. 

_____. “Somos movidos por pulsões? Teoria Crítica e Psicanálise Reconsideradas” (2017). in Dissonância: Revista de Teoria Crítica (Dossiê Teoria Crítica e Psicanálise), n. 1. 

Frateschi, Y. “Sujeição, emancipação e poder: os limites da teoria feminista de Amy Allen e da sua aliança com Foucault”. (2018) in Schmidt, A. R., Secco, G., Zanuzzi, I. (orgs.) Vozes Femininas na Filosofia. Porto Alegre, Ed. UFRGS.  

Fraser, N. “Foucault on Modern Power: Empirical Insights and Normative Confusions” [1981] in Unruly Practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory. University of Minnesota Press, 1989, 33 . 

Benhabib, S. “Diferença  sexual  e  identidades  coletivas:  a  nova  constelação global.” (2017). Tradução de Ana Claudia Lopes. Cadernos de Filosofia Alemã, V. 22, n. 4. 

Honneth, A. “The Work of Negativity: A Psychoanalytical Revision of the Theory of Recognition.” (2007). In Recognition, Work and Politics: New Directions in French Critical Theory, edited by J-P. Deranty, D. Petherbridge, J. Rundell, and R. Sinnerbrink. Leiden: Brill. 

Marin, I.; Cyfer, Ingrid (org.) Dossiê Amy Allen, in Dissonância: Revista de Teoria Crítica.  V. 2, 2018. 

Mazzei, G. A., O sujeito político na teoria feminista: articulações entre poder e autonomia. (2019). Dissertação (Mestrado em Filosofia) – UFRGS. Porto Alegre. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/196050/001094605.pdf?sequence=1&isAllowed=y