Cristina da Suécia

Cristina da Suécia

(1626 – 1689)

 

por Ethel Menezes Rocha,

professora titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Lattes

 

PDF – Cristina da Suécia

 

Sébastien Bourdon, Cristina da Suécia, óleo sobre tela, 1653

Cristina da Suécia (Kristina av Sverige) ou Cristina da Vasa ou Cristina Alexandra, também referida como Rainha Cristina, nasceu em Estocolmo no dia 8 de dezembro de 1626, segundo o calendário Juliano, então ainda em uso na Suécia, que tem um atraso de 10 dias com relação ao calendário Gregoriano. Segundo o calendário Gregoriano, Cristina da Suécia nasceu em 18 de dezembro de 1626, portanto. Filha única de Gustavo II Adolfo, rei da Suécia no período de 1611 até sua morte em 1632, e de Marie Eleonore, ela é fruto da quarta gestação após a morte de três filhos. Nasceu empelicada, condição rara na qual a criança permanece envolta na bolsa amniótica após sair de dentro da mãe, ocultando a evidência definitiva acerca de seu sexo. No momento do nascimento, foi declarado que a criança era um menino, o que ia de encontro às expectativas da corte por um herdeiro rei guerreiro. Horas mais tarde, quando o erro foi desfeito, o rei, segundo a própria Cristina da Suécia, que várias vezes disse ter ouvido os relatos de sua tia, não expressou qualquer decepção, nem mesmo surpresa, declarando imediatamente que “A menina terá o mesmo valor para mim que um menino…Ela será inteligente, pois nos enganou a todos”. Há conjecturas (por exemplo, Veronica Buckley (2009)) de que o erro acerca de seu sexo se deu porque, apesar de experientes, as parteiras se viram diante de uma criança com genitália ambígua; outros, (por exemplo, Susan Flantzer (2021)) atribuem o erro ao fato da criança recém nascida ter chorado com voz forte e rouca e ser muito peluda. 

Criada como príncipe, Cristina da Suécia, desde o dia de seu nascimento, foi considerada a herdeira do trono. Em novembro de 1632, na batalha de Lützen, o rei Gustavo foi morto e, assim, com quase seis anos, ela herdou o trono, sendo a partir de então chamada de “menina rei”. Aos dezoito anos, foi oficialmente coroada Rainha da Suécia. O teólogo Johannes Matthiae Gothus tornou-se seu tutor, com quem teve aulas de religião, filosofia, grego e latim. O chanceler Oxenstierna, então chefe do Conselho Real da Suécia, ensinou-lhe política e a admitiu pela primeira vez em reuniões do Conselho quando ela tinha apenas 14 anos. Oxenstierna dizia com orgulho que a menina não se parecia com mulher e que ela tinha uma inteligência brilhante. Além de sueco, grego e latim, ela aprendeu pelo menos oito outras línguas: alemão, holandês, dinamarquês, francês, italiano, árabe e hebraico e dominava as disciplinas consideradas essenciais para um rei guerreiro: hipismo, esgrima e estratégia militar.

Cristina da Suécia logo adquiriu para sua biblioteca uma série de valiosas obras e manuscritos raros. O inventário elaborado na época menciona uma centena de livros de arte de diferentes tipos, entre eles dois manuscritos mundialmente famosos: o Codex Argenteus, a famosa Bíblia de Prata, escrita em Ravena no século VI e o Codex Gigas, conhecido como a Bíblia do Diabo, atualmente considerado o maior manuscrito medieval existente no mundo, criado no início do século XIII, na Boémia. Ela trouxe para Estocolmo pinturas, estátuas de mármore e de bronze, moedas e medalhões, peças de cristal, instrumentos científicos, manuscritos e livros. A rainha se interessava também por teatro, especialmente pelas peças de Pierre Corneille, sendo ela própria uma atriz amadora. A partir de 1638, contratou uma trupe de balé francês sob o comando de Antoine de Beaulieu, que também teve a função de lhe ensinar a movimentar-se com elegância. O poeta da corte Georg Stiernhielm escreveu várias peças na língua sueca, tendo Cristina da Suécia no papel principal. Em 1651, o cabalista Menasseh ben Israel tornou-se seu bibliotecário para livros e manuscritos hebraicos. Dentre os ilustres estudiosos que a visitaram nesse período estão: Claude Saumaise, Johannes Schefferus, Olaus Rudbeck, Johann Heinrich Boeckler, Gabriel Naudé, Christian Ravis, Nicolaas Heinsius e Samuel Bochart, René Descartes, Pierre Daniel Huet e Marcus Meibomius. E dentre os que mantinham correspondência com a rainha estão Pierre Gassendi e Blaise Pascal. Segundo escreve Goldsmith (1935) “seu desejo de reunir homens de conhecimento ao seu redor, bem como livros e manuscritos raros, tornou-se quase uma mania”. 

Em sua autobiografia, Drottning Cristinas Sjiilvbiograji [A vida da rainha Cristina] (1681), Cristina da Suécia afirma sentir “uma aversão insuperável pelo casamento” e “por todas as coisas que mulheres falavam e faziam”. Ocupava-se principalmente com seus estudos, e dormia de três a quatro horas por noite. Vestia roupas e calçava sapatos masculinos e seu cabelo rebelde era sua marca registrada. A seu respeito, também em sua autobiografia, ela diz: “Tenho desprezado demais as boas maneiras que pertencem ao meu sexo, que muitas vezes me fazem parecer pior do que realmente sou … e eu rio com frequência demais e muito alto e ando muito rápido … uma consequência da minha natureza impulsiva”.

Cristina da Suécia passava a maior parte de seu tempo livre com Ebba Sparre, com quem compartilhava, segundo ela própria em sua autobiografia “um companheirismo íntimo de longa data” e que foi apresentada ao embaixador inglês Whitelocke como sua inteligente e bela “companheira de cama”. Embora tenha sido um tema frequentemente tratado pelos historiadores de sua vida, não há consenso acerca de se ao longo de sua vida a rainha manteve relações heterossexuais, não sexuais, lésbicas, bissexuais e/ou intersexuais. 

Apesar de sua extravagância e do luxo de sua corte, em seu reinado a Suécia desenvolveu-se bastante: foi fundado o primeiro jornal sueco (1645), Ordinari Post Tijdender, atualmente o mais antigo jornal publicado no mundo; surgiu o primeiro regulamento escolar nacional; a ciência e a literatura foram incentivadas; o comércio, as fábricas e a mineração também deram grandes passos. Em toda a Europa a chamavam de “Semíramis do Norte”, em alusão à lendária rainha da Assíria, fundadora da Babilônia.

Em 1657, a popularidade de Cristina da Suécia sofreu um grande abalo quando, em Fontainebleau, ordenou a execução do marquês Gian Rinaldo Monaldeschi, ex-líder do partido francês em Roma e seu mestre em cavalaria. Depois de dois meses de suspeita da deslealdade de Monaldeschi e de secretamente ler sua correspondência, ela ordenou sua morte. Apesar de não ter sido a primeira por ela ordenada, essa foi uma execução sem processo legal, sem juízes e não foi cumprida pelo Estado. A mando da rainha, Monaldeschi foi esfaqueado por seus criados — principalmente Ludovico Santinelli — no estômago e no pescoço. Após a execução, o papa Alexandre VII, negou-se a receber Cristina da Suécia quando esta voltou a Roma e a descreveu como “uma mulher nascida de um bárbaro, educada barbaramente e vivendo com pensamentos bárbaros […] com um orgulho feroz e quase intolerável” (Signac, 2021). Cristina da Suécia hospedou-se por um período no Palazzo Farnese e, para alívio do papa, por um contrato assinado pelo cardeal Azzolino, seu amigo e contador, em julho de 1659 mudou-se para o Palazzo Riario (hoje o Corsini, no Lungara em Roma), em Trastevere, onde viveu o resto de sua vida, embora algumas vezes viajando para outros países como França, Suíça e Suécia.

Culta, inteligente, irreverente e carismática, amante das artes, da literatura e dos cavalos, temperamental e vingativa. Uma das mulheres mais espirituosas e instruídas de sua época, Cristina da Suécia é lembrada por seu pródigo patrocínio às artes e influência na cultura europeia. Quando estabeleceu sua corte em Roma, ela dedicou-se especialmente às artes, às ciências e à cultura. O Palazzo Riario continha a maior coleção de pinturas da escola veneziana já montada, bem como esculturas e outras pinturas notáveis, que incluíam desenhos de Rafael, Michelangelo, Caravaggio, Ticiano, Veronese e Goltzius e retratos de seus amigos Azzolino, Bernini, Ebba Sparre, Descartes, embaixador Chanut e doutor Bourdelot. Tornou-se ponto de encontro de intelectuais e músicos. Tanto em seu primeiro ano (1656) no Palazzo Farnese, quanto nos anos que se seguiram, no Palazzo Riario, em sua Accademia Reale havia regularmente discussões sobre diversos temas. Fundou a Accademia dell’Arcadia para filosofia e a literatura, que ainda existe em Roma, e por seu incentivo foi inaugurada a primeira casa de ópera pública em Roma, a Tordinona. Foi, além, disso, patrona da Accademia degli Stravaganti, da Accademia dei Misti e emprestou seu Palazzo para os encontros iniciais de fundação da Accademia dell’Esperienze de Giovanni Ciampinis. Sua biblioteca, após sua morte, continha cerca de 4500 livros e 2200 manuscritos do período medieval ao renascimento. 

O fato de ter sido educada como um menino destinado a reinar, provavelmente ajudou Cristina da Suécia a estabelecer sua autoridade e conferiu-lhe a capacidade de quebrar os códigos de conduta e escrita que algumas mulheres de sua posição ainda propagavam acerca da fragilidade de seu sexo. E o fato de nunca deixar de militar por coerência entre discursos e ações, opções teóricas e escolhas da vida, caracteriza sua filosofia, antes de tudo, como uma filosofia prática, moral e política que, segundo alguns historiadores, explica, inclusive, sua conversão ao catolicismo. Em suas Máximas (1626-1689), ela comenta: “É preciso conhecer o mundo moralmente, não apenas fisicamente ou matematicamente”. 

 

Abdicação

 

Cristina da Suécia abdicou de seu trono em 6 de junho de 1654, aos 27 anos, em favor de seu primo Carlos X Gustavo. Durante a cerimônia de abdicação no Castelo de Uppsala, ela vestiu suas insígnias, que foram cerimonialmente removidas dela, uma a uma. Porque Per Brahe, recusou-se a remover a coroa da ex-rainha, ela mesma o fez. Deixou a Suécia logo após seu primo ser coroado. Em virtude da tensão nas relações entre a Suécia e a Dinamarca, por segurança, Cristina da Suécia cavalgou em traje de homem como Conde Dohna da Dinamarca, passando pela Alemanha e Holanda, estabelecendo-se finalmente em Antuérpia, na Bélgica.

 

Conversão 

 

No ano de 1651, Cristina da Suécia teve longas conversas com o jesuíta Antonio Macedo, secretário e intérprete do embaixador de Portugal. Nessas conversas, os temas que mais a interessavam eram as visões católicas sobre o pecado, a imortalidade da alma, a racionalidade e o livre arbítrio.  Em agosto desse mesmo ano, Macedo levou consigo uma carta secreta de Cristina da Suécia para o Superior Geral da Companhia de Jesus em Roma. Como resposta, dois jesuítas viajaram para a Suécia em missão secreta, disfarçados e utilizando nomes falsos. Apesar de ter sido educada na religião luterana, decidia-se a converter-se ao catolicismo. Nesse mesmo ano, trabalhando pelo menos dez horas por dia, ela teve o que alguns interpretaram como um colapso nervoso. Por uma hora ela pareceu estar morta. Como tratamento, o médico francês Pierre Bourdelot aconselhou-a a estudar e trabalhar menos e buscar mais prazer na vida. 

Em 24 de dezembro de 1654, converteu-se à fé católica na presença dos dominicanos Juan Guêmes, Raimondo Montecuccoli e Pimentel, mas não declarou sua conversão em público, o que foi feito só no final de 1655. Teve então sua viagem para Roma planejada pelo Vaticano e sua entrada oficial em Roma ocorreu no dia 20 de dezembro de 1655, através da Porta Flaminia, hoje conhecida como Porta del Popolo. Recebeu, então, a confirmação do papa na Basílica do Vaticano que lhe deu seu segundo nome, Alexandra.

Com base em algumas declarações de Cristina da Suécia, autores como Cassirer (1997) sustentam que Descartes teria sido o exemplo moral influente sobre ela para que esta se identificasse com o catolicismo. Uma dessas declarações é uma resposta de Cristina da Suécia, tempos depois da morte de Descartes, na ocasião do transporte de seus ossos a Paris, em 1667. Quando lhe perguntaram se os livros de Descartes (então constantes no Index dos livros proibidos) realmente pertenciam à fé católica, ela teria respondido que Descartes teria lhe dado as primeiras luzes sobre o catolicismo. Uma outra é quando, dez anos mais tarde, 1677, ela escreve que é grata a Descartes por certas coisas que tornaram mais fácil superar as dificuldades da religião católica.

Susanna Akerman (1991), a partir de opúsculos produzidos em Bruxelas, Paris e Roma no ano de 1655, sustenta que Cristina da Suécia se converteu ao catolicismo por razões políticas e que a rainha adota uma filosofia libertina. Esses opúsculos, que apresentam discussões sobre abdicação e filosofia libertina, evidenciam, segundo a autora, o quanto as opiniões de Cristina da Suécia influenciavam o início da formação de uma subcultura encabeçada, sobretudo, por escritores que faziam oposição à religião e ao Estado. Akerman considera cruciais alguns elementos no desenvolvimento filosófico de Cristina da Suécia que sustentam suas práticas na alquimia, seu misticismo quietista e sua conversão ao catolicismo: suas ideias sobre a imortalidade, sua tese de um único espírito universal, sua doutrina sobre a alma do mundo e sua adoção do atomismo espiritual inspirado no hermetismo.

 

Filosofia

 

Os escritos de Cristina da Suécia incluem uma vasta correspondência com autoridades políticas e religiosas, a maioria em torno dos episódios de sua abdicação e de sua imediata conversão do protestantismo ao catolicismo. Suas cartas estão reunidas nos dois volumes das Lettres choisies de Christine de Suède [Cartas escolhidas de Cristina da Suécia], publicadas originalmente em 1759, em Villefranche, por Hardi Filócrates. São cartas endereçadas a Gassendi, Grotius, Pascal, Louis XIV, Mademoiselle de Montpensier, Mademoiselle Lefevre, Condessa de Bregi, Príncipe de Condé, Duque de Orléans, e outros. Há apenas uma carta de agradecimento a Descartes por ter respondido suas questões enviadas via Chanut. Muitos de seus escritos refletem conversas e estudos feitos com personalidades reconhecidas do mundo erudito, incluindo os filósofos René Descartes, Pierre Gassendi, Blaise Pascal. Cristina da Suécia é autora de uma importante, embora inacabada, autobiografia, Drottning Cristinas Sjiilvbiograji [A vida da rainha Cristina. Autobiografia], dedicada a Deus, iniciada em Roma em 1681. Sua filosofia moral é exposta em um conjunto de 1300 máximas, escritas no período de 1671-7, não publicadas durante sua vida, que incluem comentários sobre as Máximas de La Rochefoucauld e máximas pessoais: Les Sentiments Héroiques e L’Ouvrage de Loisir: Les Sentiments Raisonnables [Sentimentos heróicos e Livros de lazer: sentimentos razoáveis]. Dentre seus escritos mais importantes há também uma biografia de Alexandre, o Grande, Réflexions diverses sur la vie et les actions du grand Alexandre [Reflexões sobre a vida e as ações de Alexander o Grande] e reflexões sobre as virtudes e vícios de César, Réflexions sur la vie et l’œuvre de César [Reflexões sobre a vida e o trabalho de Cesar], textos em que exalta o que ela considerava o modelo ideal do monarca; uma homenagem a Ciro II, o Grande, além de alguns versos líricos sobre amor. Cristina da Suécia fez, ainda, esboços de equipamentos de laboratório e iniciou uma obra maior: Paradossi Chimici [Paradoxos Químicos].

As preocupações filosóficas de Cristina da Suécia são principalmente de natureza ética e política e, em grande parte, giram em torno da questão da autoridade, do amor e da amizade. Sua teoria da virtude se concentra nas virtudes heroicas que ela acredita essenciais para o governante bem-sucedido. Sua teoria política e sua filosofia religiosa enfatizam o uso legítimo do poder. Embutidas em sua filosofia moral estão preocupações epistemológicas e metafísicas secundárias.

Em suas Maximes et pensées [Máximas e pensamentos], que incluem críticas às máximas de La Rochefoucauld e duas coleções de máximas pessoais, Sentimentos Razoáveis e Sentimentos Heróicos, Cristina da Suécia expõe sua filosofia moral, que tem como foco questões de psicologia moral, como as virtudes e as paixões, além de preocupações políticas. Em algumas passagens de seu comentário sobre as máximas de La Rochefoucauld, ela concorda com sua posição cética em relação à virtude, mas em muitas outras passagens ela esboça uma teoria alternativa. Cristina da Suécia discorda do relato negativo de La Rochefoucauld sobre as paixões e as considera o ápice da perfeição humana. “A paixão muitas vezes transforma o homem mais brilhante em um tolo e muitas vezes torna os maiores tolos brilhantes. Acho que a paixão aperfeiçoa tudo” (Máxima no.1). Ainda em oposição a La Rochefoucauld, ela nega que a emoção desordenada possa causar ou fortalecer a virtude moral e enfatiza o poder do amor e sua presença na estrutura fundamental do ser humano. Ainda em seu comentário às máximas de La Rochefoucauld, afirma ser a traição de um amigo uma injustiça tão grave que justifica uma profunda desconfiança com relação ao ex-amigo. “Há momentos em que se pode e se deve desconfiar dos amigos sem ofender nenhum amigo ou amizade. Ser traidor é a vergonha de quem trai, mas sofrer a traição é a nossa vergonha” (Máxima nº 34). 

O foco central da filosofia política de Cristina da Suécia é a questão da autoridade e sua relação com a soberania. A prosperidade do Estado, segundo ela, depende do caráter e da habilidade de seu governante. O regime absolutista em que o governante adquire virtudes heroicas é o regime político ideal. “É o mérito pessoal, não as diferenças entre Estados, o que explica a diferença entre reis” (Sentimentos heróicos no 30). “Os príncipes devem amar a sua grandeza acima de todas as coisas” (Sentimentos heróicos nº 315).

Assim como sua filosofia política, a filosofia religiosa de Cristina da Suécia se concentra na questão da autoridade. A verdade do catolicismo decorre de sua autoridade dada por Deus. A salvação é encontrada apenas na submissão à autoridade da Igreja. “Deus só explica Sua vontade por seu único oráculo, que é a Igreja Católica Romana, fora da qual não há salvação. Devemos nos submeter cegamente e sem reservas a todos os seus decretos” (Sentimentos heróicos no1). Ecoando o movimento quietista que a interessou por um tempo, Cristina da Suécia defende o abandono à providência divina: “É preciso resignar-se cegamente à vontade de Deus no tempo e na eternidade” (Sentimentos razoáveis nº 349). Apesar de seu entusiasmo pelo catolicismo em muitas máximas, ela denuncia a hipocrisia dos excessivamente devotos: “Os preconceituosos preocupam-se muito com os pecados do próximo, mas pouco se preocupam com os seus próprios” (Sentimentos razoáveis nº 374). 

Tradicionalmente considera-se a interação filosoficamente mais significativa de Cristina da Suécia a que manteve com Descartes. O diálogo filosófico entre ela e Descartes é travado inicialmente por meio do embaixador francês Chanut, amigo de Descartes, que em 1646 lhe escreve transmitindo as questões da rainha: O que é o amor? A Luz natural nos ensina a amar Deus? O que é pior, o mau uso do amor ou o mau uso do ódio? Questões que, segundo Chanut, envolviam o termo “amor” no sentido em que os filósofos usam e não “como frequentemente soa nos ouvidos das meninas” (Chanut a Descartes 1/12/1646). 

Em sua longa resposta de oito páginas, Descartes remete a questão à sua metafísica dualista e à questão teológica acerca de alma e matéria, sustentando que o mau uso do amor pode ser pior do que o mau uso do ódio porque a força do amor nos cega mais do que o ódio. Cristina da Suécia volta a questionar Descartes, e no novo questionamento coloca duas questões, segundo ela, críticas ao pensamento de Descartes, que mostram a incompatibilidade entre o que seria a tese cartesiana da infinitude do mundo criado por Deus e o que diz as Sagradas Escrituras: A) Se admite-se a infinitude da matéria do mundo, então deve-se admitir também a infinitude de todas as suas partes e assim, deve-se admitir um conflito com as teses das Escrituras Sagradas da criação e do fim do mundo. B) Se o mundo é assim tão vasto quanto afirma Descartes, o ser humano não pode ter um lugar privilegiado na criação e ter o mundo feito para ele, mas, ao contrário, deve considerar-se em conjunto com todo o universo, devendo mesmo pensar que as estrelas têm habitantes ou que seres mais inteligentes e melhores do que ele habitam as terras em torno das estrelas (a Chanut para Descartes 11/5/1647). Em resposta, Descartes pretende esclarecer o mal-entendido de Cristina da Suécia (a Chanut 6/6/1647). Retomando a distinção feita nos Princípios da Filosofia (I, 26) entre infinito e indefinido, Descartes de início pontua que, segundo seu vocabulário, só Deus é infinito, porque só no caso de Deus entendemos positivamente não haver limite sob nenhum aspecto; sendo indefinido tudo aquilo sobre o que não encontramos limite. Visto que, no caso da matéria que compõe o mundo, é impossível provar ou mesmo conceber algum limite já que é apenas extensão em largura, longura e profundidade, a matéria é indefinida e não infinita. Ao compreender a extensão do mundo desse modo, afirma Descartes, é preciso admitir apenas que não há tempo imaginável antes da criação do mundo no qual Deus poderia ter criado o mundo ou não. Não é necessário negar que tenha havido o ato de criação, mas apenas que o Criador está na eternidade e não no tempo da matéria, que não é infinita e sim indefinida. Quanto à segunda questão, Descartes responde retomando o que afirma nos Princípios da Filosofia (III, 2), que não somos obrigados a crer que o ser humano é o fim da criação: “Devemos cuidar para não sermos tão arrogantes a ponto de pensarmos que entendemos os propósitos de Deus ao criar o mundo. Seria o máximo da arrogância se imaginássemos que todas as coisas foram criadas por Deus simplesmente para nosso benefício […]”. Descartes acrescenta que qualquer ser pode atribuir a si próprio uma posição privilegiada, o que explica que no livro da Gênesis, escrito por um ser humano, o ser humano apareça em lugar privilegiado.

Ainda por meio de carta a Chanut, Cristina da Suécia pergunta as opiniões de Descartes sobre “o bem supremo entendido no sentido dos antigos filósofos” e pede que este lhe explique sua doutrina moral. Em resposta à rainha (20 /11/1647) Descartes define o bem soberano, que considera ser a única coisa que nos torna louváveis ​​ou condenáveis, como sendo “a firme e constante resolução de fazer exatamente todas as coisas que se julga serem as melhores, e empregar todos os poderes de sua mente para conhecê-los bem”. Tendo começado a ler a versão francesa dos Princípios de Filosofia, no início de 1649, ela convidou Descartes para ir à Suécia. Descartes deixou a Holanda em 1º de setembro de 1649 e logo no início de sua visita se viu desapontado com a atitude de Cristina da Suécia que nutria um “grande ardor” por “cultivar a língua grega” e “colecionar muitos livros dos antigos” ao invés de filosofia (a Elizabeth 9/10/1649). Em carta a Saumaise (9/3/1650), Cristina da Suécia deixa claro suas críticas a Descartes denunciando sua presunção insuportável nas discussões com seu professor Isaac Vossius. Longe de ser uma discípula dócil, que se contenta em repetir um mestre, ela apresenta-se como juíza intransigente, o que sugere que a filosofia de Descartes não exerce nela um papel formativo, mas, ao contrário, suscita crítica e oposição. Durante a visita de Descartes, ela lhe pediu que trabalhasse em um projeto para sua Academia, apresentado por ele em 1º de fevereiro de 1650. Segundo muitos historiadores, nesse mesmo período a rainha solicitou a Descartes um roteiro do balé “La Naissance de la Paix” [“O Nascimento da Paz”], para celebrar a paz que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, apresentando-a como a garantidora da paz em Vestfália. Recentemente, no entanto, Richard A. Watson (2007) argumentou que essa atribuição depende de uma leitura equivocada de documentos e que a verdadeira autora do balé foi a sindicalista e poetisa francesa Hélie Poirier.

Poucos dias após a morte de Descartes, Cristina da Suécia encomendou o então recém publicado trabalho de Gassendi sobre Epicuro Animadversiones in decimum librum Diogenus Laertii [Observações sobre o livro X de Diógenes Laércio], em que este pretende compatibilizar a doutrina epicurista sobre filosofia natural com o Cristianismo e exalta a virtude moral segundo Epicuro, a felicidade. Depois de farta correspondência entre Gassendi e Cristina da Suécia, em que ele escrevia longas cartas e a rainha curtas respostas, Gassendi declinou o convite para visitar Estocolmo. Além da influência de Gassendi, o atomismo de Cristina da Suécia toma a forma do neo-atomismo sustentado por Lucrecio que, dentre outras doutrinas, defende a tese de que o mundo tem alma e que esta não se identifica com Deus, mas é o calor universal que emana do Sol, ou é a energia vital inerente a todas as coisas. Esse novo atomismo, que parte da tendência da época pelo interesse nos segredos dos antigos, talvez explique a inclinação da autora por transmutações alquimistas.

 

Esoterismo

 

Ao contrário do desinteresse que demonstrava com relação aos encontros com Descartes em Estocolmo, e do mesmo modo como se interessava por comentários a textos platônicos e textos sobre atomismo, Cristina da Suécia interessava-se por alquimia, quietismo, hermetismo e cabalismo, como evidencia o conteúdo de sua rica biblioteca. Evidências de sua ampla e diversificada leitura são também os relatos dos Jesuítas que em 1651 se encontraram secretamente com ela antes de sua conversão ao catolicismo, segundo os quais ela estudava com afinco o pensamento dos antigos, dos judeus e dos heréticos. Na correspondência de Vossius, fica claro seu interesse pelos Neo-Platonistas Olimpiodoro de Alexandria, em especial os comentários ao Fédon e ao Filebo (comentários atualmente atribuídos a Damáscio) e Proclo Lício, por seus comentários ao Alcibíades e ao Parmênides. Segundo Vossius, Cristina da Suécia foi inicialmente levada ao platonismo pela leitura de Giovanni Pico della Mirandola, platonista do renascimento e cristão estudioso da cabala. O manuscrito Paradossi Chimici mostra que seus estudos da autora de textos herméticos, sua prática em alquimia e em previsão astrológica giravam sempre em torno de algumas mesmas questões: a incidência da alquimia sobre a criação da matéria, a constituição das estrelas e das mentes humanas, questões que envolvem, sobretudo, a doutrina hermética da Alma do Mundo que passara por inúmeras transformações desde a filosofia grega. 

A primeira evidência clara da prática sistemática alquimista de Cristina da Suécia é seu encontro em Roma, em 1665, com o alquimista Olaus Borrichius, que relatou ter com frequência conversado com a rainha sobre mistérios e experimentos. Em 1667, em Hamburgo, ela fez experiências com o profeta messiânico e alquimista, perseguido pela inquisição, Giuseppe Francesco Borri. Nesse mesmo ano, a rainha se correspondia com o alquimista e químico Rudolf Glauber, que descobrira o sal milagroso (ou o sulfato de sódio). A Glauber, Cristina da Suécia colocou 17 questões sobre a natureza de diversos estágios alquímicos como, por exemplo, de que cor é a matéria quando reduzida à sua perfeição última, se é mutável, se é afetada por líquidos e que doses utilizar em experimentos. Em sua coleção de manuscritos medievais, cerca de 40 são manuscritos em alquimia e livros de práticas alquimistas.

O interesse de Cristina da Suécia pelo hermetismo é manifesto também pela diversidade de livros e manuscritos sobre o tema encontrados em sua biblioteca. Um desses manuscritos é, por exemplo, o diálogo Asclepius, atribuído a Hermes Trismegistus, que lamenta a chegada do cristianismo na Alexandria e contém uma profecia de que a religião Hermética triunfará. Dentre os livros da biblioteca da rainha estavam os 14 livros do Corpus Hermeticum, uma tradução parcial de um texto também atribuído a Hermes Trismegistus sobre o Divino no Timeu de Platão; o comentário do hermetista Marsilio Ficino sobre o Parmênides de Platão; a teurgia de Jâmblico; o manuscrito Hinos Órficos, que conta a cura da alma de Orfeu pela música; Steganographia de Johannes Trithemius sobre a comunicação entre anjos; Picatrix de Al-Magritti com a descrição da cidade Hermética ideal; uma tradução latina da obra Sefer-há-Raziel – Liber Razielis seu volumen secretorum Dei [Sefer-há-Raziel – O Livro de Raziel ou o volume dos segredos de Deus], sobre a sabedoria secreta de Adão e do Rei Salomão; o livro De occulta filosofia [Sobre filosofia oculta] de Heinrich Cornelius Agrippa em que este pretende controlar a influência celestial associando-se ao espíritos que habitam a escuridão; e o volume de Giordano Bruno, condenado pela Igreja, De triplico mínimo et mensura [Sobre triplo mínimo e medida] em que discute o que ele entende por mônada, a matéria mínima, e apresenta diagramas geométricos explicativos das possíveis combinações de superfícies.

 

Morte e legado de Cristina da Suécia

 

Cristina da Suécia morreu em 1689 aos 62 anos, em decorrência de uma pneumonia. Seu túmulo está na Basílica de São Pedro, em Roma, sendo ela uma das únicas três mulheres ali enterradas. Além de Cristina da Suécia, estão ali duas outras rainhas também consideradas pelo papado como exemplos de heroísmo e fé, Matilde de Canosa, senhora feudal e defensora do papado e Maria Clementina Sobieska, filha do rei da Polônia, que na luta entre católicos e protestantes pelo trono inglês, defendeu a fé católica. Cristina da Suécia pediu um enterro simples no Panteão, em Roma, mas o papa insistiu em que ela fosse exibida por quatro dias no Palácio do Riario. Ela foi embalsamada, coberta com brocado branco, uma máscara de prata, uma coroa dourada e um cetro. À semelhança dos papas, o seu corpo foi colocado em três caixões — um de cipreste, um de chumbo e um de carvalho. 

A vida e a personalidade complexa de Cristina da Suécia ao longo dos tempos têm sido inspiração para inúmeras óperas, peças, filmes, livros e homenagens dentre os quais, por exemplo, o Forte Cristina no rio que também recebeu seu nome, nos Estados Unidos, o distrito Kristiine, na Estônia, o município Kristinestad, na Finlândia; as óperas Cristina, regina di Svezia (1849) de Jacopo Foroni, Cristina di Svezia (1840) de Alessandro Nini, Cristina di Svezia (1841) de Giuseppe Lillo e Cristina di Svezia (1855) de Sigismond Thalberg; a peça Kristina (1901) de August Strindberg; os filmes Queen Christina (1933), com Greta Garbo, direção de Rouben Mamoulian, Love and Poison (1950/52), com Lois Maxwell, direção de Katell Quillévéré, The Abdication (1974) com Liv Ullmann, direção de Anthony Harvey e The Girl King (2012), direção de Mika Kaurismäki; os romances Heltekongens Datter (1975) e En Dronning Værdig (1976) de Herta J. Enevoldsen e Queen C (2002) de Laura Ruihonen; o musical The Lesbian and Gay History of the World Vol. 2. (2004) de Jade Esteban Estrada. Especula-se que é inspirada em Cristina da Suécia a personagem Imperatriz de A descrição sobre um novo mundo resplandecente (The Description of a new World, called the Blazing World) (1666) por ser uma personagem caracterizada por Margaret Cavendish como uma atomista que trabalha com alquimia e cabala e que criou uma Academia em seu Palácio para encontro de cientistas e humanistas. 

 

Referências Bibliográficas

 

  1. Alguns dos escritos de Cristina da Suécia

 

Discours sur les arts et les sciences [Discurso sobre Artes e Ciências] – escrito em 1682. 

 

Maximes et pensées [Máximas e Pensamentos] – Conjunto de aforismos e reflexões filosóficas publicado em 1682. 

 

Abdication de la reine Christine de Suède [A abdicação da Rainha Cristina da Suécia]. Memória sobre os eventos que levaram à abdicação.

 

Apologie de l’Abbé de Rancé [Defesa do abade of Rancé], escrito em defesa do abade francês Jean-Baptiste de la Salle, acusado de heresia.

 

Le livre des songes [O livro dos sonhos] – Coleção de sonhos e visões ao longo de sua vida.

 

Minnesteckningar öfver biskoparna i Skara stift [Memórias sobre os bispos da diocese de Skara] – Esboços biográficos dos bispos de Skara, escritos em 1660.

 

Anteckningar om mitt eget liv [Notas sobre minha vida] – Memórias escritas em 1670 sobre sua infância, seu reinado e sua decisão de abdicar e converter-se ao catolicismo.

 

Öfwer-gifwne tankar öfwer werldz-kriget [Comunicados de pensamentos sobre a Guerra Mundial] – conjunto de reflexões sobre guerra e política, escrito durante a Guerra dos Trinta Anos. 

 

Förklaring öfwer evangelium Johannis [Explicações sobre o Evangelho de João] – Comentário sobre o Evangelho de João, escrito na década de 1670. 

 

Laurentius Andreae’s lefwerne och wärk [A vida e a obra de of Laurentius Andreae] – Biografia de Laurentius Andreae, um teólogo e reformista, escrito na década de 1670.

 

Abdikations-tal [Discurso de Abdicação] – Escrito em 1654.

 

Inventarium över mina papper [Inventário de meus papéis] – Inventário de seus pertences pessoais (manuscritos, livros, joias, roupas, etc) escrito em 1689, pouco antes de sua morte. 

 

  1. Algumas publicações de sua obra

 

The Works of Christina Queen of Sweden (1753). Containing Maxims and Sentences, in Twelve Centuries; and Reflections on the Life and Actions of Alexander the Great. Now First Translated from the Original French. To which is Prefixed, an Account of Her Life, Character and Writings, by the Translator. London: trad. e publ. Wilson, D. & Durham,T. 

 

Lettres choisies de Christine de Suède. (1759), Villefranche: Hardi Filocrate.

 

Oeuvres Complètes de Christine de Suède (1996). Ed. Pierre-Antoine Fabre. Paris: Fayard.

 

Máximas (2001) – trad. Lourença Baldaque. Lisboa: Coleção Libelli, Fauve&Rouge.

 

  1. Bibliografia secundária

 

Akerman, S. (1991). Queen Christina of Sweden and Her Circle: The Transformation of a Seventeenth-Century Philosophical Libertine, Brill Academic Pub.

 

Antoine-Mahut, D. (2022/3). “Christine de Suède. Une philosophie de roi”. Philosophies: féminin pluriel. Anthologie de textes de femmes philosophes, dir. Anne-Lise Rey, Paris: Classiques Garnier.

 

Buckley, V. (2009). Cristina, Rainha Da Suécia. Ed. Objetiva.

 

Cassirer, E. (1937). Descartes: Descartes: An Introduction to His Philosophy, trad. E. H. Carr, Routledge & Kegan Paul.

 

________ (1997). Descartes, Corneille, Christine de Suède, Paris: Vrin.

 

Cavaillé, J-P (2010). “Masculinité et libertinage dans la figure et les écrits de Christine de Suède”. Les Dossiers du Grihl (online), URL: http://journals.openedition.org/dossiersgrihl/3965.

 

Franckenstein, C. G. (1697). Histoire des intrigues galantes de la Reine Christine de Suède et de sa Cour, pendant son séjour à Rome, Amsterdam: Jan Henri.

 

Flantzer, S. (2021). Unofficial Royalty. The site for royal information and news. URL: https://www.unofficialroyalty.com/christina-queen-of-sweden/

 

Goldsmith, M. (1935). Christina of Sweden: A Psychological Biography, Doran: Doubleday.

 

Watson, R. (2007). Descartes’s Ballet: His Doctrine of Will and His Political Philosophy, St. Augustine’s Press.

 

  1. Filmes online sobre Cristina da Suécia

 

Queen Christina (1933), direção de Rouben Mamoulian

https://m4uhd.tv/watch-movie-queen-christina-1933-233070.html

 

Love and Poison (1950/52), direção de Katell Quillévéré https://web.moviesjoy.sc/film/love-like-poison-2010/

 

The Abdication (1974), direção de Anthony Harvey

https://m4uhd.tv/watch-movie-the-abdication-1974-226545.html

 

The Girl King (2012), direção de Mika Kaurismäki 

https://www.bilibili.tv/en/video/2044807014

 

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