Patricia Hill Collins

No mais novo verbete da Enciclopédia Mulheres na Filosofia, você vai saber mais sobre a vida e a obra de Patricia Hill Collins, uma importante escritora e professora universitária americana de sociologia da Universidade de Maryland, Estados Unidos. Ela nasceu em 1948 na Filadélfia (Pensilvânia). Filha única de pais da classe média trabalhadora, Hill Collins sempre estudou em escolas públicas. Em 1965, iniciou seus estudos em Sociologia na Universidade de Brandeis (Massachusetts). Posteriormente, cursou seu mestrado na Universidade de Harvard e o doutorado também na Universidade de Brandeis. De 1982 a 2005 atuou no departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Cincinnati, mas desde 2005 integra o departamento de Sociologia da Universidade de Maryland.

Ao longo de sua trajetória, Patricia Hill Collins se dedicou aos estudos de raça, gênero, interseccionalidade, teoria crítica, teoria social e pensamento feminista. Entre as principais obras de Hill Collins destacadas no verbete escrito por Dulcilei da Conceição Lima está Pensamento Feminista Negro, livro de 1990 escrito como “uma busca pela reconquista de sua voz que se perdeu por força do racismo a que foi submetida nos espaços institucionais que frequentou”. E, como nos mostra a autora do nosso verbete desta semana, o livro possui uma característica marcante de ser um “trabalho intelectual que dialoga tanto com a comunidade acadêmica quanto com a comunidade negra não acadêmica. Tal posicionamento é reconhecível em seus artigos e livros pelo modo cuidadoso com que a autora organiza seu texto e discorre sobre sua pesquisa, conclusões, reflexões, de forma clara e didática, buscando ser compreendida por um público amplo”.

Além de discorrer sobre Pensamento Feminista Negro, o verbete desta semana também discute a importância do conceito de interseccionalidade e da noção de imagens de controle no pensamento da autora.

 

Sobre a autora do verbete: Dulcilei da Conceição Lima é Pesquisadora em Ciências Sociais e Humanas no Centro de Pesquisa e Formação – Sesc/SP. Professora na disciplina “Comunicação e Opinião Pública” no curso de pós-graduação lato sensu “Mídia, política e sociedade” (2024-2025) na FESPSP. Integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFABC (NEAB-UFABC). Pesquisa feminismo negro, relações raciais, gênero e ativismo negro nas redes sociais e integra a pesquisa Caleidoscópio das Ações Afirmativas: Avaliações, Experiências e Alcances das Políticas de Cotas nas Universidades Públicas (CNPq), sob a coordenação do prof Paulo Sergio da Costa Neves (UFABC).

Se você quiser saber mais sobre a vida e o pensamento de Patricia Hill Collins, não deixe de ler o verbete aqui e acessar a entrevista com a autora aqui!

Patricia Hill Collins

Patricia Hill Collins

(1948)

por Dulcilei da Conceição Lima,

doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC.

Pesquisadora em Ciências Sociais e Humanas no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc – SP – Lattes

Patrícia Hill Collins – PDF

Patrícia Hill Collins. Fonte: University of Maryland.

Em novembro de 2018, Patricia Hill Collins visitava o Brasil pela primeira vez a convite do Sesc SP, ocasião em que ministrou uma palestra na mesa de abertura do Encontro Internacional Nós Tantas Outras. Naquele momento, nenhum dos seus livros havia sido traduzido para o português, mas haviam alguns artigos: “Como alguém da família: raça, etnia e o paradoxo da identidade nacional norte-americana” na Revista Gênero, volume 8 de 2007, traduzido por Maria Isabel de Castro Lima; “Em direção a uma nova visão: Raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão”, publicado em 2015 nos cadernos Reflexões e práticas de transformação feminista da SempreViva Organização Feminista, sob a organização de Renata Moreno com tradução de Júlia Clímaco; “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”, traduzido por Juliana de Castro Galvão e publicado no volume 31 da revista Sociedade e Estado em 2016; “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória”, traduzido por Bianca Santana e publicado no volume 5 da revista Parágrafo em 2017 e “O que é um nome? Mulherismo, Feminismo Negro e Além disso”, traduzido por Angela Figueiredo e Jesse Ferrell, publicado no volume 51 do Cadernos Pagu em 2017. 

Desde 2012, grupos de feministas negras nas redes sociais, como o Feminismo Negro Interseccional (Neves, 2020), em ações de tradução livre e solidária, vertiam textos de Collins para língua portuguesa e os distribuíam, gerando leituras e reflexões compartilhadas, prática comum entre feministas que transitam em blogs e comunidades nas redes sociais. Ações como essa colaboraram para a popularização no Brasil do pensamento de Patricia Hill Collins, assim como de outras intelectuais negras como bell hooks, Audre Lorde e Angela Davis. 

No ano seguinte à sua primeira visita ao Brasil, chegava ao público brasileiro a primeira edição em português da principal obra de Collins: Pensamento Feminista Negro, quase trinta anos após a publicação original nos EUA.

Patricia Hill Collins é natural da Filadélfia (EUA), nasceu em 1º de maio de 1948, filha única de Eunice Randolph Hill e de Albert Hill. É casada com Roger Collins, com quem tem uma filha. 

Os pais de Collins pertenciam a uma classe média trabalhadora, sua mãe foi secretária e o pai um trabalhador fabril veterano da Segunda Guerra Mundial. Com um estilo de vida modesto, Patricia Hill Collins fez toda sua formação básica em escolas públicas. Foi uma estudante aplicada, trompetista, mas bastante quieta. Na primeira edição de Pensamento Feminista Negro a socióloga relata de forma breve o seu percurso escolar, e o modo como foi pouco a pouco se tornando mais silenciosa até se transformar numa adolescente calada. Justifica a existência do livro como uma busca pela reconquista de sua voz que se perdeu por força do racismo a que foi submetida nos espaços institucionais que frequentou.

Foi como grande admiradora de Pauli Murray — mulher negra, reverenda e ativista que em 1938 lutou pelo direito de ingressar na Universidade da Carolina do Norte — que a jovem Patricia Hill Collins iniciou, em 1965, os seus estudos na Universidade de Brandeis (Massachusetts), onde se graduou em Sociologia. Seu interesse pela área se deu por compreender a Sociologia como um campo de estudos interdisciplinar que dialoga com áreas diversas como a Filosofia, a Educação e as ciências empíricas. Pela mesma razão se aproximou da Sociologia do Conhecimento, onde vislumbrou a possibilidade de articular campos teóricos variados. Ainda na graduação, tendo como base teórica a Escola de Frankfurt e intelectuais judeus que discutiam e disputavam direitos após o Holocausto, Collins começou a formular a noção de justiça social que passa a mobilizar especialmente a partir da segunda edição de Pensamento Feminista Negro e que permeará toda sua produção. 

Patricia Hill Collins cursou mestrado em Harvard e o doutorado também na Universidade de Brandeis. Ao longo de vinte e três anos atuou na Universidade de Cincinnati (1982 – 2005), no departamento de Estudos Afro-Americanos. Desde 2005 integra o departamento de Sociologia da Universidade de Maryland. Foi presidente da Associação Americana de Sociologia, primeira mulher negra a ocupar esse posto. Ao longo de toda sua carreira se dedicou aos estudos de raça, gênero, interseccionalidade, teoria crítica, teoria social e pensamento feminista. Foi contemplada com vários prêmios ao longo de sua carreira, sendo o mais recente em 2023, quando foi agraciada com o prêmio Berggruen Prize for Philosophy & Culture por sua contribuição no avanço de ideias que moldam o mundo.

Enquanto cursava o mestrado em Harvard, Patricia Hill Collins iniciou projetos educacionais comunitários junto à população negra de Boston, ministrando aulas e colaborando na formulação do currículo da St. Joseph´s School. Essa experiência foi marcante em sua trajetória, pois colaborou para o aperfeiçoamento de sua perspectiva sobre justiça social e de seu papel enquanto educadora. A socióloga percebeu o quão fundamental era possibilitar aos estudantes o desenvolvimento da compreensão crítica de sua realidade social. Acerca de sua experiência na St. Joseph´s, Collins nos oferece o seguinte relato:

O que me fascina é como essa experiência fundamental na escola comunitária de St. Joseph moldou as abordagens temáticas e as perspectivas teóricas da minha pesquisa e da minha carreira. Eu nunca pretendi ser uma professora universitária, mas o alto nível que defini para mim mesma ao preparar planos de aula para alunos do ensino médio em um contexto que envolvia múltiplas tradições de justiça social moldou o tipo de acadêmica e professora que me tornei. St. Joseph permitiu-me explorar as conexões entre a pedagogia crítica, a pesquisa engajada e as políticas de produção de conhecimento, atrasando por uma década o enfraquecimento do ethos “publicar ou perecer” do ensino superior. Em vez disso, me colocou em caminho diferente de ser uma pesquisadora rigorosa e uma intelectual pública com um olho para as tradições de justiça social. Seja da elite do HGSE, dos meus espirituosos alunos do ensino médio ou de uma comunidade mais ampla de cidadãos afro-americanos de classe trabalhadora, sedentos por análises sofisticadas, mas acessíveis de desigualdade, aprendi que os projetos de justiça social exigem processos dialógicos de bolsas de estudos para prosperar (Collins, P.H. Apud Bueno, 2020, p.54).

 Patricia Hill Collins investiu nas “análises sofisticadas, mas acessíveis” mencionadas em seu relato, dando início ao que seria uma característica marcante em sua carreira, o trabalho intelectual que dialoga tanto com a comunidade acadêmica quanto com a comunidade negra não acadêmica. Tal posicionamento é reconhecível em seus artigos e livros pelo modo cuidadoso com que a autora organiza seu texto e discorre sobre sua pesquisa, conclusões, reflexões, de forma clara e didática, buscando ser compreendida por um público amplo.  

A linguagem adotada por Collins é uma escolha política, mas também afetiva. No prefácio à edição brasileira, a socióloga afirma que escreveu um livro que gostaria que sua mãe pudesse ter lido e que se reconhecesse nele, de modo que a ajudasse a enfrentar melhor as intempéries da vida. Por meio do livro, Patricia Hill Collins dialoga com sua mãe e celebra sua memória. Ao fazer isso, ela estende esse fazer afetivo a todas as mulheres negras que acessam seus escritos.

Pensamento Feminista Negro

A mais significativa obra de Patricia Hill Collins, Pensamento Feminista Negro, foi publicada pela primeira vez em 1990 e teve uma segunda edição dez anos depois. Levaria mais dezenove anos após a segunda edição para chegar traduzida ao Brasil. Collins faz questão de ressaltar em textos e entrevistas que o livro é produto de um trabalho colaborativo realizado com suas alunas e muitas outras mulheres negras de suas relações. 

A passagem pelo departamento de Estudos Africanos da Universidade de Cincinnati foi de suma importância para a construção de Pensamento Feminista Negro, pois a partir dessa experiência, Patrícia Hill Collins definiu os temas que seriam abordados no livro, e ainda teve a colaboração de suas alunas como as primeiras leitoras e críticas dos textos que viriam a compor a obra. Mas seus primeiros anos na universidade foram desafiadores. Assim como outras intelectuais negras do período, a socióloga enfrentou obstáculos relacionados a baixa recepção dos estudos sobre mulheres negras nos departamentos de estudos negros e feministas.

Segundo Gloria Hull et al. (2015), os estudos sobre mulheres negras se desenvolveram lentamente ao longo dos anos 1970 e 1980, enfrentando os obstáculos de uma academia conservadora e as condições inóspitas de trabalho sob as quais atuavam intelectuais negras nas universidades (Hull et al, 2015). Pesquisas e cursos sobre mulheres, ministrados nas universidades, se debruçavam sobre as experiências de mulheres brancas, enquanto os estudos raciais se limitavam às vidas dos homens, ignorando, portanto, as mulheres negras. Racismo e sexismo interpunham sérios obstáculos para que as diferentes áreas das humanidades na academia considerassem a especificidade da realidade de mulheres negras em suas análises (Hull et al., p.9). Na universidade de Cincinnati, o Departamento de Estudos Feministas só viria a se abrir ao acolhimento de pesquisas interseccionais nos anos 1990, ocasião na qual Patricia Hill Collins passa a integrá-lo, o que permitiu o aperfeiçoamento de sua concepção sobre interseccionalidade (Bueno, 2020).

No prefácio à primeira edição de Pensamento Feminista Negro, Collins afirma “recusei-me explicitamente a basear minha análise em qualquer tradição teórica única” (2019, p.17). Adepta da articulação de campos do conhecimento, a autora mobilizou tradições teóricas diversas no desenvolvimento da obra, como “a filosofia afrocêntrica, a teoria feminista, o pensamento social marxista, a sociologia do conhecimento, a teoria crítica e o pós modernismo” (2019, p.16). No prefácio à segunda edição a autora revisa a nomenclatura para afrocentrismo e se posiciona contrária ao modo com o qual os adeptos dessas ideias na contemporaneidade lidam com as questões de gênero e sexualidade. Justifica por meio dessa discordância certas alterações no texto, onde reteve o sentido mais geral do termo, mas mudou outros termos. Como exercício de ativismo intelectual, a socióloga elege como centro da análise as experiências e pensamentos das mulheres negras, e embora cite outras intelectuais negras como Angela Davis, bell hooks, Gloria Hull, Barbara Smith, Anne McClintock, busca não dar ênfase a certos nomes em detrimento de outros, compreendendo a produção intelectual de mulheres negras como resultado de uma coletividade. Justifica essa escolha da seguinte forma:

[…] essa abordagem vai contra a tendência, em vigor na produção acadêmica dominante, de canonizar umas poucas mulheres negras como porta-vozes do grupo e recusar-se a ouvir qualquer outra que não essas eleitas. Embora seja tentador obter reconhecimento pelas próprias conquistas, minhas experiências como a “primeira”, “uma das poucas” e a “única” me mostraram que escolher uns poucos e usá-los para controlar muitos pode ser eficiente para asfixiar subordinados (Collins, 2019, p.17).

No livro, a autora defende que a produção de conhecimento entre as mulheres negras se dá de maneira distinta do padrão acadêmico, pois pode assumir a forma de criação artística, como nas poesias, músicas, contação de histórias, louvores. A longa e rica tradição do pensamento de mulheres negras não se encontra, portanto, somente em textos escritos e entre acadêmicas, mas em mulheres de origens e trajetórias diversas, que por meio de múltiplas formas manifestam o conhecimento produzido nos enfrentamentos cotidianos às situações de subordinação racial, de gênero e de classe. Tal aprendizado adquirido na vivência dessas opressões fomenta a criação e transmissão de um conhecimento subalternizado que se constitui, por sua vez, em uma teoria social crítica das mulheres negras. Collins define teoria social como a articulação entre análise crítica e ação social. Na perspectiva da autora, a teoria social crítica explica as desigualdades ao mesmo tempo que as critica. É partindo dessa premissa que define a produção de conhecimento das mulheres negras como uma teoria social crítica, pela capacidade dessa produção em articular a crítica social junto ao ativismo, que busca corrigir as desigualdades 

O pensamento coletivo das mulheres negras, bem como de outros grupos oprimidos, foi forjado na oposição à opressão e orientado a encontrar maneiras de escapar à violência, se opor à injustiça social e econômica, buscar formas de garantir a sobrevivência em meio inóspito. O cerne da crítica feminista negra é, de acordo com Collins (2019), o compromisso com a justiça para as mulheres negras, mas também para outras coletividades igualmente subalternas dentro e fora do território estadunidense.

Esse conjunto de ideias produzido por mulheres negras no cotidiano de sobrevivência, somado ao conhecimento acadêmico, deve estar compromissado com a busca por formas de intervenção positiva nas vidas de tais mulheres, melhorando suas experiências. Collins acredita que o pensamento feminista negro pode oferecer às mulheres negras uma visão alternativa à hegemônica a fim de possibilitar o surgimento de uma nova identidade coletiva pautada por uma consciência forjada nesses saberes subalternizados (Collins, 2012).

Na perspectiva de Patricia Hill Collins, o pensamento feminista negro deve ser lido como uma teoria social crítica por desafiar a concepção hegemônica sobre a inabilidade de grupos oriundos das classes populares em desenvolver pensamento crítico, contrariando os pressupostos de que tais grupos seriam incapazes de compreender e agir sobre sua própria subordinação.

Patrícia Hill Collins tem o mérito de demonstrar em seu trabalho os múltiplos caminhos que mulheres negras percorrem na construção de sua maneira singular de pensar e de produzir conhecimento. Tais caminhos atravessam também muitas formas de ação política, como a participação em protestos, atuação em organizações comunitárias, campanhas eleitorais, movimentos sociais. Tal forma única de construir conhecimento é demonstrada pela socióloga por meio de sua própria experiência de quem cresceu em meio às lutas pelos direitos civis nos EUA e a emergência do movimento de mulheres negras nos anos 1970. Os eventos ocorridos naquele momento marcaram profundamente a percepção da autora e seriam mais tarde os elementos que impulsionariam suas escolhas acadêmicas. Além do ativismo e outras experiências da vida cotidiana, a produção cultural negra foi igualmente determinante nas formulações de Collins sobre o pensamento feminista negro. A música, a poesia, a dança, livros como O olho mais azul, de Toni Morrison, ou The Black Woman [A mulher negra], de Cade Bambara, causaram forte impacto na vida e na obra da pesquisadora.

A socióloga é taxativa ao afirmar que a singularidade da produção de conhecimento por mulheres negras produziu um feminismo igualmente singular, que não deve sua origem ao feminismo branco, mas à crescente e urgente necessidade da análise interseccional de forma a situar melhor a condição das mulheres negras na sociedade americana e no interior do ativismo negro.

Ainda dentro da discussão sobre a singularidade da produção de mulheres negras, cabe abordar a singularidade da posição das intelectuais negras no universo acadêmico da carreira sociológica. Em “Aprendendo com a outsider within”, Collins discorre sobre o modo como intelectuais negras se inserem na Sociologia. A autora define como insiders sociológicos o tipo padrão na sociedade, ou seja, homens brancos. A Sociologia seria, portanto, um espaço configurado a partir da perspectiva da masculinidade e da branquidade. As mulheres negras sendo o outro dessa mesma sociedade, com experiências e perspectivas de mundo distintas do padrão hegemônico se constituem como outsiders. Dessa forma, “para se tornar um insider sociológico, as mulheres negras precisam assimilar um ponto de vista que é bastante diferente do seu próprio” (Collins, 2016, p.117). Sendo outsiders inseridas no espaço sociológico hegemônico, essas intelectuais negras se tornam outsiders within (algo como estrangeiras de dentro). 

Embora como outsiders within, as sociólogas negras enfrentem inúmeros desafios, a contribuição de Collins nessa discussão reside em demonstrar como a condição de estrangeiras pode contribuir para o avanço da pesquisa sociológica na medida em que as experiências das mulheres negras permite que elas enxerguem as anomalias nos paradigmas sociológicos hegemônicos como a produção de generalizações sobre a população negra e ofereçam perspectivas criativas e inovadoras a partir de suas experiências como mulheres negras.

Muitas feministas negras estão abraçando o potencial criativo de seu status de outsider within e usando-o de forma sábia. Ao fazê-lo, aproximam-se de si mesmas e associam suas disciplinas à visão humanista implícita de seus trabalhos – isto é, a liberdade tanto de ser diferente como de fazer parte da solidariedade humana (Collins, 2016, p.123).

Patricia Hill Collins crê que outros indivíduos que se enquadram no status de outsiders within, como homens negros, mulheres brancas, pessoas de outras nacionalidades, povos originários, pessoas LGBTQIA+ podem aprender muito com as estratégias e experiências das mulheres negras.

Interseccionalidade

Um dos conceitos mais caros do pensamento feminista negro é a noção de interseccionalidade. Patrícia Hill Collins tratou do assunto em vários de seus textos, vindo a escrever os livros Interseccionalidade, em co-autoria com Sirma Bilge, publicado no Brasil em 2021, e Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica, lançado em português em 2022, ambos pela editora Boitempo.

A socióloga busca, na história das mulheres negras estadunidenses, as origens da articulação entre as categorias classe, gênero e raça, atribuindo às ativistas negras do século XIX, como Sojourner Truth, Maria W. Stewart, Ida B. Wells, Anna Julia Cooper e Mary McLeod Bethune a origem do pensamento interseccional. A atuação dessas mulheres negras na causa abolicionista e pelos direitos das mulheres levou Collins a propor a existência de duas ondas do feminismo negro estadunidense: a primeira no século XIX e a segunda iniciada nas últimas décadas do século XX até os dias atuais. Maria Stewart, uma das ativistas do século XIX, teria sido a primeira a afirmar a potência da aliança entre mulheres negras como propulsora de ativismo e autodeterminação, um vislumbre do que viria a ser o feminismo negro. Entretanto, essas intelectuais e suas ideias se perderam no tempo, o que faz Collins questionar em Pensamento Feminista Negro (2019) as razões pelas quais tal tradição intelectual teria sido descontinuada.

Apesar de feminismo negro e interseccionalidade serem indissociáveis, Collins afirma que é um equívoco atribuir a circunscrição do conceito apenas às mulheres negras, pois outros grupos de mulheres, como as latinas, indígenas e asiáticas estavam — nos anos 1970 e 1980 — igualmente envolvidas na reivindicação da “inter-relação de raça, classe, gênero e sexualidade em sua experiência cotidiana” (Collins, 2017, pp. 8-9).

Ainda na década de 1980, há um trânsito entre movimentos sociais e a academia propiciado pela inserção de ativistas dos movimentos sociais nas universidades, especialmente nos programas dedicados aos estudos da perspectiva crítica, de mulheres, negros, sexualidade, pós-coloniais e culturais. É nesse período que Kimberlé Crenshaw (1991) produz o trabalho onde elaborou o termo interseccionalidade definindo uma nomenclatura para o fenômeno em curso entre mulheres ativistas. A interseccionalidade, como uma “forma de investigação crítica e de práxis […] forjada por ideias de políticas emancipatórias de fora das instituições sociais poderosas” (Collins, 2017, p. 7), favoreceu a conexão entre esses dois campos de produção de conhecimento, aquele cuja produção é desenvolvida por “indivíduos com menos poder, que estão fora do ensino superior, da mídia e de instituições similares de produção de conhecimento” (Collins, 2017, p. 7) e dos espaços de saber legitimados, como as universidades e instituições análogas.

A interseccionalidade como projeto de conhecimento expandiu-se na academia desde o início dos anos 2000 e abrange um vasto campo disciplinar das ciências humanas, “obtendo crescente aceitação no campo de ciências sociais tão diversas como a sociologia, a psicologia, a economia e a ciência política” (Collins, 2017, p. 12). Collins afirma que essa expansão é marcada pela prevalência da interseccionalidade como conhecimento emancipatório em detrimento da interseccionalidade como política emancipatória. A autora, ainda, considera prejudicial essa cisão por passar ao largo de uma das principais razões de ser da interseccionalidade, a preocupação com a justiça social (Collins, 2022).

Na última década, os feminismos em atuação na internet deram novo fôlego à interseccionalidade como política emancipatória, aspecto ainda pouco explorado entre teóricos que a discutem. Um dos poucos trabalhos a abordar esse aspecto é o já mencionado livro de Collins e Bilge, Interseccionalidade (2021). Nele, as autoras destacam a notável presença do conceito de interseccionalidade nas esferas digitais, principalmente nas plataformas de mídia social onde é possível produzir conteúdo. As autoras afirmam que a internet mudou o perfil do feminismo, que conta hoje com forte presença de mulheres jovens, inclusive adolescentes.

Em Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica, Patricia Hill Collins argumenta que a interseccionalidade se expandiu rapidamente por muitos campos do conhecimento e vem sendo acionada tanto dentro quanto fora do ambiente acadêmico. Afirma ainda que atualmente há uma disputa em torno das “origens da interseccionalidade, da parcialidade de sua lista crescente de categorias, se ela é uma teoria ou uma metodologia, sobre suas ligações com o trabalho em prol da justiça social e até mesmo uma reflexão sobre se estamos em uma fase pós-interseccionalidade” (Collins, 2022, p. 39). Passando ao largo desses debates, a socióloga opta nessa obra em se concentrar na potencialidade que a interseccionalidade oferece como teoria social crítica devido a posição privilegiada que ocupa entre a produção acadêmica e a ação social.

Imagens de controle

Outro elemento fundamental na obra de Patricia Hill Collins é a noção de imagens de controle. Tais imagens — que historicamente têm sido utilizadas como forma de cerceamento das mulheres negras — têm como propósito manipular a opinião pública a respeito das mulheres negras perpetuando sua desumanização e exploração. Algumas dessas imagens, como a Mammy e a Jezebel, podem ser associadas a estereótipos femininos bem conhecidos no Brasil como a Mãe Preta e a mulata. A primeira sempre representada como uma mulher negra dócil, submissa e servil. A segunda, dotada de uma sexualidade agressiva. Há outras imagens igualmente reducionistas e perversas que destituem as mulheres negras de sua dignidade e reforçam a ideia de uma incapacidade intelectual.

Entretanto, Collins alerta para a distinção entre estereótipos e imagens de controle. Estereótipos correspondem a concepções equivocadas sobre determinados grupos sociais que padecem com os preconceitos gerados por essas visões errôneas, como a crença na falta de inteligência ou inclinação de pessoas negras ao crime. A correção dessa distorção se daria por meio de processos educativos que provocassem a mudança de percepção sobre os grupos discriminados, solução considerada ineficaz pela socióloga (Costa; Pereira, 2021).

As imagens de controle se referem às relações de poder e à forma como estruturam relações sociais e interpessoais atuando no controle dos comportamentos dos grupos sociais enfocados por elas. Um dos exemplos utilizados por Collins para elucidar como funcionam as imagens de controle é o da prostituta, o conjunto de significados pejorativos associados às profissionais do sexo servem como mecanismo de controle do comportamento de mulheres.

A eficácia das imagens de controle reside na sua natureza não apenas negativa, mas também positiva. Dessa forma, uma imagem de controle positiva sobre homens, brancos, heterossexuais pode, conforme a autora, reforçar sua posição de poder na sociedade e fixá-los em uma masculinidade tóxica e dominadora, de modo que se tornam “controlados pela visão positiva da masculinidade branca e visam impor essa visão de sua superioridade ao usar essa imagem para controlar todos/as os/as outros/as” (Costa; Pereira, 2021).

Tal característica das imagens de controle, sendo tanto positivas quanto negativas, demonstra um aspecto crucial da estruturação dessa lógica: o pensamento binário. A operação desempenhada pelo pensamento binário é a de produzir categorias opostas inter-relacionadas. Dessa forma, há categorias que correspondem aos eixos dominantes e há as outras, que estão no seu oposto, ou seja, as categorias desviantes, sujeitas à discriminação, à objetificação e, por consequência, alvos de mecanismos de controle (Bueno, 2020).

Raça, classe, gênero e sexualidade são compreendidos por Patrícia Hill Collins como sistemas de opressão interconectados e não como categorias identitárias. O modo como as imagens de controle são manuseadas dentro desses sistemas de opressão é o que alicerça as práticas sociais denominadas por Collins como matriz de dominação (Bueno, 2020). Por meio da compreensão desses elementos é possível analisar as relações de poder interseccionais e hierárquicas entre os grupos sociais. Dominar o entendimento sobre o modo como as imagens de controle modelam as relações de poder é o caminho, na perspectiva da socióloga, para se alcançar a mudança social (Costa; Pereira, 2021).

As imagens de controle fornecem um modelo de comportamento social pelo qual devemos nos orientar. Dessa forma, confrontá-las exige o conhecimento do que as caracteriza e como operam nas relações de poder.

O processo de contestação de tais imagens e de revisão da autopercepção, favorecendo seus aspectos positivos (autodefinição e autoavaliação), é considerado por Collins (2016) como um dos elementos fundamentais da constituição do pensamento feminista negro:

Autodefinição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em imagens estereotipadas externamente definidas da condição feminina afro-americana. Em contrapartida, a autoavaliação enfatiza o conteúdo específico das autodefinições das mulheres negras, substituindo imagens externamente definidas com imagens autênticas de mulheres negras (Collins, 2016, p. 102).

Patricia Hill Collins admite que esse ponto do seu trabalho segue em desenvolvimento, de modo que ainda não possui respostas para determinados aspectos de como as imagens de controle operam (Costa; Pereira, 2021).

Uma intelectual ativista

Em 2012 foi publicado o livro On intellectual activism [Sobre ativismo intelectual], a publicação reúne palestras, ensaios e entrevistas que abrangem as principais abordagens da produção de Patrícia Hill Collins. Neste trabalho a autora também busca responder a perguntas sobre a potência do ativismo intelectual para a justiça social e como manter um ativismo intelectual frente aos obstáculos da política contemporânea da produção de conhecimento. São duas as estratégias consideradas pela autora. A primeira delas se refere a falar a verdade ao poder e, a segunda, a falar a verdade ao povo.

Falar a verdade ao poder é uma forma de ativismo intelectual que visa utilizar ideias que confrontam as relações de poder estabelecidas. Dessa forma, segundo a autora, devemos utilizar as ferramentas adquiridas no processo educacional hegemônico para confrontar a própria hegemonia e as verdades impostas por grupos poderosos a grupos sociais desfavorecidos. Falar a verdade ao povo consiste em nos valermos do conhecimento adquirido para colaborar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento ao poder.

Patricia Hill Collins se coloca como uma intelectual ativista que dedicou grande parte da sua obra a falar a verdade ao poder, mas que também dedicou parcela significativa do seu trabalho acadêmico a falar a verdade ao povo. A socióloga considera que Pensamento Feminista Negro exerce essa função de falar a verdade ao povo na medida em que valida as vivências de suas leitoras ao mesmo tempo que as coloca em contato com a experiência de outras.

Para falar a verdade ao povo, Patrícia Hill Collins adotou em suas publicações uma maneira clara e didática de expressar suas ideias de modo a atingir um público mais amplo para além da esfera acadêmica. A socióloga atribui aos estudos afro-americanos ou negros, aos estudos sobre mulheres e à sociologia, a obtenção de ferramentas que lhe permitiram arcar com o compromisso de dizer a verdade ao povo. A principal contribuição de sua obra reside em inspirar as pessoas a pensarem sobre suas realidades de outro modo, de forma que possam agir sobre elas.

Publicações

Patricia Hill Collins possui uma vasta produção distribuída entre livros, artigos, conferências, entrevistas, de modo que não cabe aqui relatar todo esse montante, mas listo, por ordem cronológica, os livros lançados até a data de publicação deste texto:

  1. 1990. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment. Routledge. [Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento, Boitempo, 2019].
  2. 1992. Race, Class and Gender: An Anthology. Cengage Learning, 1992.
  3. 1998. Fighting Words: Black Women and the Search for Justice. University of Minnesota Press.
  4. 2004. Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism. Routledge [Política Sexual Negra. Boitempo, 2022].
  5. 2006. From Black Power to Hip Hop: Racism, Nationalism, and Feminism. Temple University Press [Do Black Power ao Hip Hop. Perspectivas, 2023].
  6. 2009. Another Kind of Public Education: Race, the Media, Schools, and Democratic Possibilities. Beacon Press.
  7. 2012. On Intellectual Activism. Temple University Press.
  8. 2016. Co-autoria com Sirma Bilge. Polity Press. [Interseccionalidade. Boitempo, 2021].
  9. 2019. Intersectionality as Critical Social Theory. Duke University Press.[Bem mais que ideias – a interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo, 2022].
  10. 2023. Lethal Intersections: Race, Gender, and Violence. Polity Press.

Referências Bibliográficas

Boitempo. Quem é Patrícia Hill Collins. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/03/10/quem-e-patricia-hill-collins/. Acesso em 13 nov. 2023.

Bueno, W. (2020). Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patrícia Hill Collins. Porto Alegre: Ed. Zouk.

Collins, P. H. (2007). Como alguém da família: raça, etnia e o paradoxo da identidade nacional norte-americana.  Tradução de Maria Isabel de Castro Lima. Revista Gênero. Niterói, volume 8, n.1, p.27-52. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/30959/18048. Acesso em 30 mai. 2024.

_______. (2015). Em direção a uma nova visão: Raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. Moreno, R. (org.) Reflexões e práticas de transformação feminista. Tradução de Júlia Clímaco. São Paulo: SOF, pp.13-42.

_______. (2017). O que é um nome? Mulherismo, Feminismo Negro e Além disso. Tradução de Angela Figueiredo e Jesse Ferrell. Cadernos Pagu, n. 51. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/P3Hpz4XQsPqSqJJLm9KH6tC/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 30 mai. 2024.

_______. (2012). On intellectual ativism. Filadélfia: Temple University Press.

_______. (2012). Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In Feminismos negros: Una antologia. Madrid: Traficantes de sueños.

_______. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Tradução de Juliana de Castro Galvão. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan./abr.

_______. (2019). Pensamento Feminista Negro. Tradução de Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo.

_______. (2017). Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Tradução de Bianca Santana. Parágrafo, v. 5, n. 1, pp. 7-17, jan-jun. 2017. Disponível em: <revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/download/559/506>. Acesso em: 10 nov. 2023.

Collins, P. H.; Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo.

Collins, P. H. (2022). Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica.  Tradução de Bruna Barros e Jess Oliveira. São Paulo: Boitempo.

_______. (2022). Política sexual negra: afro-americanos, gênero e o novo racismo. Tradução de Ana Carolina Correia Santos das Chagas. Rio de Janeiro: Via Verita.

Costa, J. B.; Pereira, B. C. J. (2021). O feminismo negro de Patrícia Hill Collins: uma conversa sobre conhecimento, poder e resistência. Entrevista. Revista Sociedade e estado, v.36, n.3, set-dez. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/7Nm7KmJy6Vc54JmRMSMd7qD/#. Acesso em 10 mar.2024.

UNIVERSITY OF MARYLAND. Biografia: Patrícia Hill Collins. Disponível em: 

https://socy.umd.edu/facultyprofile/collins/patricia-hill. Acesso em 20 out.2023.

Crenshaw, K. (1991). Mapping the margins: Intersectionality, Identity Politcs, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, n. 43, pp. 1241-1299.

Hull, G. T.; Scott, P. B.; Smith, B. (2015). All the women are white, All the blacks are men, But Some of Us Are Brave. 2a. ed. New York: Feminist Press at City University of New York.

Neves, T. (2020). Estamos em marcha! Escrevivendo, agindo e quebrando códigos. In Silva, T. Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: Olhares afrodiaspóricos. LiteraRua: São Paulo. 

Palestra na mesa de abertura do Encontro Internacional Nós Tantas Outras:  https://www.youtube.com/watch?v=IXFMyS3MyP8. Acesso em 03 jun. 2024.