Mary Wollstonecraft

No verbete desta semana, Sarah Bonfim faz uma introdução ao pensamento de Mary Wollstonecraft, uma filósofa inglesa conhecida como grande defensora dos direitos das mulheres. Ao empreender uma divisão temática dos escritos de Wollstonecraft em dois grandes temas, pedagógicos e políticos, a autora nos mostra como, desde os escritos sobre educação — Pensamentos sobre a Educação das Meninas (1786) e Mary, uma Ficção (1787) — as questões a respeito do desenvolvimento intelectual das mulheres e da sua posição na sociedade já eram objeto de questionamento da filósofa.

Posteriormente, em seus escritos políticos, Wollstonecraft se opôs aos pensamentos de filósofos como Edmund Burke, em  Reivindicação dos Direitos dos Homens (1790), e Jean-Jacques Rousseau, em Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792). Em Reivindicação dos Direitos da Mulher ela questiona o modelo feminino pensado por Rousseau e a ideia de que constância e virtude não podem ser alcançadas pelas mulheres. Para a filósofa, todos os seres humanos são dotados de razão e podem se tornar virtuosos. O verbete nos mostra ainda como, em Pensamentos sobre a Educação das Meninas (1786), a ideia é a de que cabe à educação tornar possível o desenvolvimento racional não apenas dos homens, mas também das mulheres.

Sarah Bonfim é doutoranda em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estuda o projeto educacional de Mary Wollstonecraft, com enfoque nas interfaces entre educação, liberdade e cidadania, tendo como mote o debate empenhado com Jean-Jacques Rousseau. Tem interesse nas áreas de filosofia política, ética, teorias feministas e humanidades digitais.

Ficou curiosa para saber mais a respeito dessa interessante filósofa inglesa do século XVIII? Então leia o verbete aqui e acesse a entrevista com a autora aqui.

Mary Wollstonecraft

(1759-1797)

Por Sarah Bonfim – membra do projeto New Voices, do Grupo de Filosofia Política da Unicamp e doutoranda em Filosofia (Unicamp), bolsista Fapesp processo 2021/02257-5 – Lattes.

PDF – Mary Wollstonecraft

Pintura: John Williamson (previamente atribuído à British School), 1791, Walker Art Gallery, Liverpool, Inglaterra.

Vida

Mary Wollstonecraft, filha de Elisabeth e Edward, nasceu em 27 de abril de 1759, em Londres, na Inglaterra. Segunda filha de um total de seis Wollstonecraft, desde muito cedo, assume o papel de protetora. Ela protege sua mãe das agressões de seu pai, que tinha problemas com álcool, e é quem cuida dos irmãos pequenos, papel que desempenha por grande parte da vida, principalmente com suas irmãs, Eliza e Everina.  

Como é esperado de uma moça de classe média no século XVIII, Wollstonecraft frequenta uma escola para meninas, onde aprende um pouco de aritmética, geografia, um pouco de francês, música e dança (Brody, 2000, p. 17). O seu desenvolvimento intelectual deve muito aos amigos que fez durante a vida. A começar por Henry Clare, um reverendo Dissidente (não alinhado ao Anglicanismo do rei) vizinho dos Wollstonecrafts, que percebe o interesse dela por livros e a convida para frequentar a sua biblioteca. 

É na biblioteca de Clare que Wollstonecraft tem seu primeiro encontro com grandes nomes da filosofia. Em especial, ela fica muito impressionada pelos escritos de John Locke (1632-1704) contra a tirania. No retrato do tirano feito por Locke, a jovem identifica semelhanças com o comportamento de seu pai (cf. Gordon, 2020). Inspirada pela definição de liberdade de Locke, ela decide assumir o governo de sua própria vida. Isso significaria tomar decisões por conta própria — e arcar com as consequências. A coragem dela é extraída da teoria. Nas palavras da biógrafa Charlotte Gordon:

“Mary extraía coragem das teorias de Locke e das obras de Rousseau, que desenvolvia um pouco mais as ideias de Locke, argumentando que a liberdade era o que mais importava, e que a obediência e a subordinação eram sintomas de opressão social.” (Gordon, 2020, p. 68). 

Wollstonecraft desde cedo já possuía uma lucidez sobre sua condição social e as opressões dela decorrentes, mesmo que ainda não pudesse nomeá-las apropriadamente. Oriunda de uma família de classe média trabalhadora, precocemente conjecturou sobre as suas possibilidades de subsistência. Como não recebeu a herança deixada pelo avô paterno, seu destino seria o casamento ou empregos de pouco status e baixa remuneração. Tendo clareza do que significava o casamento para uma mulher, isto é, estar vulnerável a uma série de violências, tal como aconteceu com sua mãe, Wollstonecraft optou por buscar um emprego. Ela decidiu deixar a casa de seus pais e partiu para Bath, onde trabalhou como acompanhante. No entanto, por conta do adoecimento da mãe, retornou para casa. Após a morte da mãe, Wollstonecraft permaneceu com suas irmãs, acompanhando-as. Ao perceber que uma delas, Eliza, estava sofrendo violência doméstica do marido, Wollstonecraft fugiu com ela, deixando o cunhado e o bebê para trás. Com o intuito de ajudar as irmãs financeiramente e ao mesmo tempo realizar um sonho, Wollstonecraft abre sua escola em Newington Green. 

A localização é um pedido de Hannah Burgh, viúva de James Burgh (1714-1775), educador inglês que pleiteou o sufrágio universal e a liberdade de expressão. Hannah financia o projeto de Wollstonecraft, que toma lugar nessa vizinhança ao norte de Londres e que também é morada de proeminentes figuras políticas da época como, por exemplo, Richard Price (1723-1791), que se torna um importante mentor para Wollstonecraft. Pastor Dissidente, Price tinha ideias progressistas e era um ativista político, sempre reivindicando cidadania completa a todos, independente do sexo ou da classe social. Nele Wollstonecraft encontra inspiração e amizade, principalmente pelo papel que ambos atribuíam à educação. Reciprocamente, ele acompanha de perto Wollstonecraft e o seu projeto escolar. 

A escola em Newington Green tem em seu quadro de funcionárias as irmãs de Wollstonecraft, Everina e Eliza, e a amiga de longa data, Fanny Blood (1758-1785). Embora nenhuma delas tenha uma formação que as qualificasse como professoras, elas sabem ler e escrever e a educação é uma maneira digna de se ganhar algum dinheiro. Wollstonecraft se considera uma boa professora, pois é “paciente, razoável e afetuosa” (Brody, 2000, p. 46). Divide entre suas irmãs e a família de Fanny o dinheiro que angaria com a matrícula dos alunos. O projeto educacional de Newington Green é o de fomentar a autonomia de pensamento bem como tratar os alunos como indivíduos dotados de vontade, razão e experiências. Com respeito, ternura e misturando diferentes idades e ambos os sexos, Wollstonecraft fomenta a criatividade, a integridade e a autodisciplina. Todavia, a escola não se sustenta por muito tempo por dois motivos. O primeiro, a falta de engajamento de Eliza e Everina. O segundo, o casamento de Fanny, que a levou a deixar a escola e se mudar para Portugal. 

Fanny Blood é uma pessoa pela qual Wollstonecraft nutre grandes sentimentos. Amigas de longa data, Wollstonecraft não mede esforços para ir até Fanny quando sabe que a amiga está com problemas na gestação. Wollstonecraft, então, se dirige até Lisboa para acompanhar o parto de Fanny. Complicações decorrentes do parto foram o motivo da morte de Fanny, que deixa o marido e o filho recém-nascido. Muito abalada pela morte da amiga, Wollstonecraft retorna a Londres e percebe que não é possível que a escola permaneça funcionando, em função do mal gerenciamento de suas irmãs durante a sua ausência. Com a perda de Fanny e o fechamento da escola, John Hewlett (1762-1844) decide ajudar Wollstonecraft e a apresenta a Joseph Johnson (1738-1809), um editor londrino que sugere que ela escreva uma obra educacional, uma vez que já possui experiência na área com práticas originais e progressistas. Ela acata a sugestão e o resultado desse incentivo é Pensamentos sobre a Educação das Meninas [Thoughts on the Education of Daughters], publicado por Johnson, em 1786.

Embora a publicação marque os primeiros passos de Wollstonecraft como escritora, essa atividade ainda não é capaz de custear as dívidas que ela possui com o fechamento de sua escola. Para saná-las, aceita uma posição de governanta na família do Lorde Kingsborough, assumindo a responsabilidade pela educação das filhas. Aqui é importante notar que a vaidade e a superficialidade dos costumes que ela observa na casa dessa família são, a seu ver, razão para a corrupção de qualquer possibilidade de virtude. Em poucos meses, ela os deixa, prometendo a si mesma nunca mais “trabalhar em situação tão degradante” (Wollstonecraft apud Gordon, 2020, p. 133). 

É nesse momento que ela recebe a proposta de Johnson para dedicar-se à editora, trabalhando como resenhista na revista Analitycal Review. Em 1787 Wollstonecraft volta a Londres, onde se dedica exclusivamente a sua escrita. Começa a escrever o conto Cave of Fancy [Caverna da Imaginação] e a coletânea de textos de apoio para a educação feminina intitulada The Female Reader [Leitora Feminina]. É nesse período que ela lança Original Stories from Real Life [Histórias Originais da Vida Real], inspirando-se em sua vivência na casa dos Kingsborough. As vendas deste último foram um sucesso, garantindo a Wollstonecraft a possibilidade de se sustentar apenas com a sua escrita (cf. Brody, 2000, p. 66). 

À medida que Wollstonecraft demonstra seus talentos para a escrita, Johnson confere a ela cada vez mais responsabilidades. Uma delas é a tradução de obras educacionais em outros idiomas. Mais uma vez, Wollstonecraft demonstra habilidade autodidata: aprende os idiomas sozinha e realiza traduções de obras do francês e do alemão. Um fato curioso das traduções feitas por Wollstonecraft é o de que ela subverte alguns dos conteúdos presentes nas obras. Um exemplo dado por Charlote Gordon (2020, pp. 142-3) é o da obra Moralisches Elementarbuch nebst einer Anleitung zum nützlichen Gebrauch desselben [no português Elementos de moralidade para o uso de crianças], do alemão Christian Salzmann (1744-1811), no qual Wollstonecraft reescreve passagens inteiras que se referem à defesa da aristocracia e à educação das meninas. Apenas recentemente essa intervenção foi notada. Essa estratégia brilhante, como nota Gordon, já anuncia a posição da filósofa desde muito jovem: a de enfrentar teses de grandes escritores. 

Ainda que clandestinamente, atitudes como essa são fundamentais dentro de sua carreira de escritora. Para Gordon (2020, p. 144), o fato de ninguém ter descoberto a intervenção de Wollstonecraft fez com que ela se encorajasse ainda mais para expressar suas opiniões. Assim, ela caminha a passos largos para se tornar a grande filósofa reivindicatória, tanto da Reivindicação dos Direitos dos Homens (1790) como da Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792). 

Wollstonecraft, agora como autora de obras notáveis, é também frequentadora de espaços que permitiriam encontros com pessoas como o filósofo anarquista William Godwin (1756-1836). Obstinada em observar de perto a França pós-revolucionária, Wollstonecraft se muda para Versalhes no final do ano de 1792. Nessa mudança, ela conhece Gilbert Imlay, norte-americano com quem tem sua primeira filha, Fanny — nome dado em homenagem a sua amiga. Nesse período são escritos e lançados An Historical and a Moral View about the Origin and Progress of French Revolution [Uma Visão Histórica e Moral sobre a Origem e o Progresso da Revolução Francesa] (1794) e Letters written during short residence in Sweden, Norwegen, and Denkmark [Cartas Escritas Durante uma Breve Residência na Suécia, Noruega e Dinamarca] (1795).

Em 1795 ela volta a Londres e, apesar de ter conquistado boa parte dos seus anseios intelectuais, Wollstonecraft ainda tem que lidar com muitas perdas e complicações da vida ordinária, como é o caso de ser abandonada por Imlay, que a deixa sozinha com a pequena Fanny. A tristeza a leva a tentar suicídio e, felizmente, isso não se concretiza. Johnson se reaproxima de Wollstonecraft e a traz novamente para o círculo intelectual dos Dissidentes. É nesse espaço que Wollstonecraft se reencontra com William Godwin e se envolve romanticamente com ele. 

Ao engravidar pela segunda vez em 1797 e temerosa das consequências práticas do abandono masculino — como foi o caso com Imlay —, Wollstonecraft casa-se com Godwin. A princípio, ambos moram em casas separadas e mantêm uma vida independente. O nascimento da bebê, que mais tarde ficaria famosa por ser a escritora de Frankenstein sob o pseudônimo de Mary Shelley, acontece no começo de setembro de 1797. A recém-mãe acabou sucumbindo às complicações do parto, vindo a falecer em 10 de setembro de 1797, em Londres. 

Além das obras mencionadas, algumas obras receberam edições inéditas ou revisadas postumamente por William Godwin, tais como o conto The Cave of Fancy [Caverna da Imaginação] (1787), a coletânea de textos The Female Reader: Or Miscellaneous Pieces in Prose and Verse; Selected from the Best Writers, and Disposed under Proper Heads; for the Improvement of Young Women [A leitora feminina: ou miscelânea de trechos em prosa e verso; seleções dos melhores escritores e dispostas sob títulos apropriados; para o aperfeiçoamento de jovens mulheres] (1789) e Mary, a Fiction [Mary, uma Ficção] (1796).

Obra

Wollstonecraft é uma escritora versátil, que transita entre diversos gêneros textuais. Cartas, panfletos, histórias infantis, manual de conduta, romance e tratado filosófico são alguns deles. O estilo de escrita dela também é marcante, pois ela não poupa o uso da ironia, do cotejamento direto das obras e da primeira pessoa. É uma escritora autodidata, que aperfeiçoa o ofício da escrita na medida em que desenvolve os seus trabalhos. É, também uma escrita apaixonada e, em geral, feita no compasso da impressão: Reivindicação dos Direitos dos Homens e Reivindicação dos Direitos da Mulher, foram escritos e publicados em 3 e 6 semanas, respectivamente. A fim de facilitar uma introdução ao pensamento de Wollstonecraft, apresento alguns trabalhos selecionados divididos em dois grandes temas: pedagógicos e políticos, com destaque para a liberdade e opressão. No primeiro grupo, destacam-se as sugestões de Wollstonecraft para educação de crianças e jovens e, no segundo grupo, as impressões, críticas e sugestões referente aos direitos das mulheres, em especial, a educação.

  1. Escritos pedagógicos

A primeira publicação de Wollstonecraft é a obra Thoughts on the Education of Daughters: with reflexions about female conduct in the more importante duties of life [Pensamentos sobre a Educação das Meninas: com reflexões sobre a conduta feminina nos mais importantes deveres da vida] de 1786. Nessa obra, já é possível observar a formação de um tema perene no trabalho de Wollstonecraft: o desenvolvimento intelectual das mulheres e a necessidade de se rever como as meninas são tratadas na sociedade. O destaque da obra é a disputa da ideia do que seria uma Dama Adequada, isto é, qual deveria ser o modelo ideal feminino a ser difundido através da literatura de conduta. Outras obras, tais como A Father’s Legacy to his Daughters [Legado de um pai para suas filhas], do Dr. John Gregory (1724-1773), que são mais conservadoras, advertiam que o papel das mulheres era apenas o de obedecer aos seus maridos e esbanjar docilidade. Wollstonecraft não concorda com essa visão e acredita que seria possível conciliar a atividade do cuidado com o desenvolvimento intelectual. Mesmo que ela adote um padrão conservador de literatura — como é o caso da literatura de conduta – ela inova ao apresentar comportamentos diferentes do que eram esperados para as mulheres, como a escrita, a leitura e a elaboração de opiniões próprias (cf. Bonfim, 2021).  

 A segunda publicação de Wollstonecraft, Original Stories from Real Life; with Conversations Calculated to Regulate the Affections and Form the Mind to Truth and Goodness [Histórias Originais da Vida Real; com Diálogos Planejados para Regular os Afetos e Formar a Mente para a Verdade e a Bondade] de 1787, é voltada para o público infantil, composta por pequenas histórias que têm alguma lição a ser ensinada, tal como caridade, paciência e respeito aos animais. Desde a introdução, Wollstonecraft deixa claro que o intuito do livro é o de apresentar as situações forjadas que servem para que as crianças aprendam através delas, uma vez que exemplos são mais eficientes para o ensino infantil do que apenas teoria. A grande inovação de Histórias Originais da Vida Real é ter duas meninas no centro do processo de aprendizagem, sem se limitar a ensinar-lhes “coisas de meninas”. Wollstonecraft faz questão de que suas personagens, Mary e Caroline, aprendam tudo o que deveria ser acessível a qualquer ser humano, independente do sexo biológico e de suas implicações. Histórias Originais da Vida Real se manteve como uma obra essencial no aconselhamento sobre o desenvolvimento moral infantil por quase cinquenta anos (Gordon, 2020, p. 141). 

Mary, a Fiction (1787) [Mary, uma Ficção] é um romance com elementos autobiográficos. A personagem principal demonstra agência sobre suas ações, bem como contraria o que é esperado de uma mulher — sendo, por exemplo, uma figura oposta à Sofia, personagem de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) (cf. Wollstonecraft, 2004, p. 5). Assim como em Pensamentos sobre a Educação das Meninas, nessa obra Wollstonecraft também demarca a sua posição antagônica ao que era socialmente esperado das mulheres, como é o caso do casamento e do desenvolvimento da razão. Inclusive, é por ter aprendido a refletir que a personagem Mary é tão melancólica no decorrer da história: ela não consegue compreender o motivo do casamento compulsório para as mulheres — e no caso dela, arranjado. Ela resiste em permanecer fechada em casa e busca alternativas, como viagens e interações sociais. No entanto, o romance acaba com Mary casada e dependente de seu marido. A frase que fecha o romance imagina um mundo em que há outras cenários possíveis para as mulheres: “ela pensou estar se apressando para um mundo onde não terá de se casar nem ceder ao casamento” (Wollstonecraft, 2004, p. 53)

2. Escritos políticos 

Wollstonecraft inicia a temática de equidade social na obra Vindication of the Rights of Men [Reivindicação dos Direitos dos Homens], de 1790. Em formato de carta, cujo remetente é Edmund Burke e as suas Reflexões sobre a Revolução Francesa (1790), Wollstonecraft aborda temas como a importância da razão no governo das paixões, a virtude como sustentáculo social e uma fervorosa oposição à escravidão.

É importante destacar que a oposição que Wollstonecraft marca com relação à Burke é dupla, isto é, é de ordem estética e política. É estética porque ela se opõe ao uso de uma retórica floreada, que Burke utiliza ao apelar para o sentimentalismo de seus leitores e não à racionalidade deles. De acordo com Wollstonecraft, a “indignação” que ela diz sentir ao ler a obra de Burke “foi despertada pelos argumentos sofísticos”, que a cada momento atravessavam-na, “na forma questionável de sentimentos naturais e bom senso” (Wollstonecraft, 1993, p. 3). Além disso, é uma oposição política porque Wollstonecraft questiona Burke sobre a defesa que ele faz de determinada organização social, na qual o costume e a tradição funcionam como embasamento das leis. 

Por exemplo, em determinado ponto de Reivindicação dos Direitos dos Homens, ao recusar obediência cega aos reis — defendida por Burke como uma “constituição moral [oriunda] do coração” — Wollstonecraft argumenta que os governantes merecem respeito e não devoção de seus súditos. Ela também defende a separação entre a razão e as paixões. As paixões de início não são nem boas nem ruins, porém devem ser submetidas à razão a fim de garantir que colaborem no aperfeiçoamento da virtude das pessoas (1993, p. 31). Dessa maneira, ao contrário do que Burke defende, não deve ser tarefa das paixões ditar a moral, mas da razão. 

A razão, em constante aperfeiçoamento, permite que a moral fique cada vez mais adequada. Um exemplo é a escravidão. Wollstonecraft rebate Burke afirmando que, em algum momento da história, o tráfico de pessoas foi amparado pela lei e pela moral, porém, não deve mais ser tolerado de modo algum, pois não é racionalmente justificável que um ser humano seja considerado uma propriedade e que seja impedido de ser livre (cf.: 1993, p. 51). 

A questão de determinada moral que não faz mais sentido também figura nas páginas de Reivindicação dos Direitos da Mulher, onde, no entanto, como já sugere o título, ela é especificada para o caso das mulheres. Inspirada por Catharine Macaulay, Wollstonecraft argumenta que o pacto social não é justo pois não é esperado que homens e mulheres tenham a mesma conduta em termos de aperfeiçoamento das virtudes (cf. Wollstonecraft, 2016, p. 219). Em especial, ela salienta que os costumes e a tradição ditam como as mulheres deveriam se portar, não em termos de virtudes, isto é, qualidades que elevam o ser moral, mas sim em virtudes negativas que ditam comportamentos e outras qualidades efêmeras, tais como a beleza física. 

Com o objetivo de nivelar o terreno sobre o qual devem se assentar as virtudes, Wollstonecraft estabelece um princípio que serve de alicerce para o seu argumento pela equidade feminina. Razão, virtude e conhecimento, para ela, são as “verdades mais simples” (Wollstonecraft, 2016, p. 31) e devem ser as reguladoras do aperfeiçoamento. Atuando de maneira conjunta, essas concepções devem amparar o desenvolvimento humano — que acontece pelo intermédio da educação. Todos os seres humanos — independentemente de acidentes externos, isto é, aspectos biológicos, geográficos e sociais —, são dotados de razão, e possuem a capacidade de serem virtuosos, mesmo que em diferentes graus. A humanidade como um todo pode adquirir conhecimentos que, quando acumulados, tornam-se experiência. Acontece que Wollstonecraft constata que as mulheres não são incluídas nessa ideia de humanidade, uma vez que são tratadas de modo diferente pelo Estado, pelas Constituições e pelos teóricos. 

Se em Reivindicação dos Direitos dos Homens Wollstonecraft tem como oponente Edmund Burke, em Reivindicação dos Direitos da Mulher esse oponente é Jean-Jacques Rousseau, especificamente sobre o que ele escreveu na obra Emílio ou da Educação (1762). É fato que ela partilha de várias das posições de Rousseau. No entanto, como bem define Barbara Taylor (2017), em Reivindicação dos Direitos da Mulher, Wollstonecraft é mais uma “discípula enfurecida do que uma inimiga intelectual” do genebrino (p. 216). E o motivo da fúria de Wollstonecraft é o modo com que Rousseau constrói a personagem Sofia, esposa de Emílio, que, embora cativante, é, de acordo com Wollstonecraft, totalmente “inatural” (2016, p. 45). Em especial Wollstonecraft também se indispõe com o modo com o qual Rousseau trata da faculdade racional no caso das mulheres. Para ele, a capacidade de razão das mulheres é apenas de ordem prática, isto é, seriam incapaz de abstrair e generalizar. Nas palavras dele: 

“A procura das verdades abstratas e especulativas, dos princípios, dos axiomas nas ciências, tudo o que tende a generalizar as ideias não é da competência das mulheres, seus estudos devem todos voltar-se para a prática; cabe a elas fazerem a aplicação dos princípios que o homem encontrou, e cabe a elas fazerem as observações que levam o homem ao estabelecimento de tais princípios.” (Rousseau, JJ. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 565) 

Para Wollstonecraft, ao promover essa razão deficiente, Rousseau forja um ser quimérico e afasta as mulheres da possibilidade de adquirir conhecimento, tendo como consequência a impossibilidade de o gênero feminino alcançar a virtude. Nesse sentido, ela afirma que a constância e a virtude, que Rousseau alega não serem da alçada feminina, de fato serão vetadas às mulheres enquanto elas estiverem sujeitas a um sistema de educação que visa formar seres pela metade e não em desenvolvê-las como seres humanos integrais. Wollstonecraft questiona: como “pôde Rousseau esperar que elas [as mulheres] fossem virtuosas e constantes, quando não é permitido que a razão seja o fundamento de sua virtude nem a verdade o objeto de suas indagações?” (Wollstonecraft, 2016, p. 121). O erro de Rousseau é deter-se entre os seus próprios sentimentos, que ofuscaram suas virtudes e fizeram de sua imaginação uma faculdade fértil demais. O resultado é a manutenção de um sistema que mais oprime do que promove as mulheres, atrasando não só o desenvolvimento delas mas o da sociedade como um todo: 

“Todos os erros do pensamento de Rousseau, porém, surgiram da sensibilidade, e as mulheres estão sempre prontas a perdoar a sensibilidade a seus encantos! Quando deveria ter raciocinado, ele tornou-se apaixonado, e a reflexão inflamou sua imaginação, em vez de iluminar seu entendimento. Até mesmo suas virtudes levaram-no a conclusões errôneas; tendo nascido com uma constituição calorosa e uma imaginação fértil, ele foi levado pela natureza até o outro sexo com uma inclinação tão ávida que logo se tornou lascivo. Se tivesse dado vida a esses desejos, o fogo teria se extinguido de maneira natural, mas a virtude e uma espécie romântica de delicadeza o fizeram praticar a abnegação; ainda assim, quando o medo, a delicadeza ou a virtude o restringiram, ele abusou de sua imaginação e, refletindo sobre as sensações às quais a fantasia deu força, ele as traçou com as cores mais resplandecentes e as afundou no mais profundo de sua alma.” (Wollstonecraft, 2016, p. 121)

A postura crítica que Wollstonecraft assume com relação ao modelo feminino rousseauista permite com que ela imagine outras possibilidades para as mulheres para além do espaço doméstico, como, por exemplo, a possibilidade de se tornarem profissionais da saúde, (cf. 2016, p. 228) e até representarem outras mulheres politicamente (cf. 2016, p. 190). Wollstonecraft busca, desde Pensamentos sobre a Educação das Meninas (1786), estender às mulheres aquilo que Rousseau defende no Emílio, mas restringe aos homens. Em poucas palavras, ela tem por objetivo proporcionar às meninas uma educação que desenvolva hábitos de virtude e autonomia, e que seja capaz de garantir a perfectibilidade da razão de todos os seres humanos, sem distinção. 

A questão da perfectibilidade da razão é um importante argumento tanto em Reivindicação dos Direitos dos Homens como em Reivindicação dos Direitos da Mulher.  O dever de desenvolvimento da razão ganha relevância na Reivindicação de 1792, ao partir de um quadro teórico-metafísico, no qual Wollstonecraft afirma que homens e mulheres possuem uma razão a desenvolver, cujo propósito deve ser a perfectibilidade, isto é, o aperfeiçoamento da faculdade de razão. A consequência desse aperfeiçoamento vai desde o plano pessoal até o social. Por serem perfectíveis, os seres humanos devem se desenvolver e é papel de um Estado que é virtuoso garantir isonomia entre os cidadãos — independentemente do sexo, para que esse objetivo comum seja atingido 

 Embora em Reivindicação dos Direitos da Mulher Wollstonecraft passe muito rapidamente sobre o papel do Estado para o desenvolvimento das virtudes dos indivíduos, é em An Historical and a Moral View of the Origin and Progress of French Revolution [Uma Visão Histórica e Moral da Origem e Progresso da Revolução Francesa] (1794), que ela desenvolve uma tese fundacionista da sociedade, bem como extrai diagnósticos sobre a condição na qual se encontram tanto a França quanto a Inglaterra após a Revolução de 1789.  É nessa obra, também, que ela pôde se deter em explicar como as formas de governo impactam na capacidade de virtude de uma população. Por exemplo, ao favorecer os mais ricos e não proteger os mais pobres e vulneráveis, para Wollstonecraft, o Estado estaria indo de encontro a um de seus princípios mais fundamentais. De acordo com ela:

“Tendo a natureza tornado os homens desiguais, dando poderes físicos e mentais mais fortes a uns do que aos outros, o objetivo do governo deveria ser destruir essa desigualdade protegendo os fracos. Em vez disso, sempre se inclinou para o lado oposto, desgastando-se por desconsiderar o primeiro princípio de sua organização.” (Wollstonecraft, 1993, p. 289).

O que Wollstonecraft defende é que os governos sejam justos no trato com os seus cidadãos, não permitindo que poderes individuais impliquem na diminuição do bem-estar geral. O papel do governo seria o de garantir que ninguém tivesse um poder maior do que outra pessoa baseando-se apenas em elementos hereditários. E é nessa direção que em Uma Visão Histórica e Moral ela reitera o que já afirmara em Reivindicação dos Direitos dos Homens: a faculdade da razão e não o costume deveria ser a base das leis civis. Comparado à Reivindicação dos Direitos da Mulher, Uma Visão Histórica e Moral mantém a ideia de que a razão, e não o decoro ou a tradição, deve guiar a mulher em suas decisões da vida privada e pública. Em suma, a razão é um tema perene que possui um papel central na literatura de Wollstonecraft, sendo a pedra angular que embasa uma perspectiva tanto do ponto de vista generificado (isto é, do sexo biológico) quanto da espécie humana. 

“Para fazer com que a humanidade seja mais virtuosa e, claro, mais feliz, ambos os sexos devem agir de acordo com os mesmos princípios; mas como isto pode ser esperado quando apenas a um deles se permite enxergar a razoabilidade desses princípios? Para fazer com que o pacto social seja verdadeiramente equitativo e a fim de difundir esses princípios esclarecedores, os únicos capazes de melhorar o destino do homem, deve-se permitir às mulheres que lancem os alicerces de sua virtude no conhecimento, o que é muito pouco possível, a não ser que sejam educadas com as mesmas atividades que os homens.” (Wollstonecraft, 2016, p. 223-4)

Legado

A meu ver, a vida e a obra de Wollstonecraft se confundem, encontrando-se nos momentos de revolta e coragem. Há um enorme senso de responsabilidade com o contexto histórico e amor à liberdade. Wollstonecraft não recebeu o merecido reconhecimento de seus pares contemporâneos, permanecendo assim por todo século XIX. Já durante o século XX, ainda que seja retomada pelas sufragistas, ela fica à margem dos estudos acadêmicos. No Brasil, apenas em 2016 ela é retomada como uma teórica política, ao ter uma obra traduzida para a língua portuguesa, a Reivindicação dos Direitos da Mulher. Por ora, aguardamos outras traduções para o português de suas obras para a ampliação dos estudos.

Os escritos wollstonecraftianos ainda permanecem atuais e tanto sua obra quanto sua vida servem de inspiração para a contínua luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres. Que ecoem seus conselhos sobre enfrentar os desafios no caminho para a emancipação:

“Não deixe que algumas pequenas dificuldades a intimidem, eu imploro; — enfrente quaisquer obstáculos em vez de submeter-se a um estado de dependência — digo isso do fundo do coração. — Já senti o peso e gostaria que você o evitasse de todas as formas.” (Wollstonecraft apud Gordon, 2020, p. 88).

Referências

Obras de Wollstonecraft

Traduzidas

Wollstonecraft, M (2016). Reivindicação dos Direitos da Mulher. Tradução de Ivania Pocinho Motta. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial.

Ainda não traduzidas

Wollstonecraft, M (1993). A Vindication of the Right of Men and A Vindication of the Rights of Woman. Oxford: Oxford University Press.

Wollstonecraft, M (2018a). Thoughts on the Education of Daughters. Altenmuster: Jazzy Bee.

Wollstonecraft, M (2018b). Original Stories from Real Life; with Conversations Calculated to Regulate the Affections, and Form the Mind to Truth and Goodness. Altenmuster:

Jazzy Bee.

Wollstonecraft, M (2004). Mary and Maria. Nova York: Peckering and Chatto.

Wollstonecraft, M (2009). Letters written in Sweden, Norway, and Denmark. Oxford: Oxford University Press.

Sobre a vida de Wollstonecraft

Todd, J (2000). Mary Wollstonecraft: a Revolutionary Life. Nova York: Columbia University Press.

Todd, J (org.) (2003). The Collected Letters of Mary Wollstonecraft. Nova York: Columbia University Press. 

Brody, M (2000). Mary Wollstonecraft: mother of women’s rights. Oxford & Nova York: Oxford University Press. 

Godwin, W (1797). Memoirs of the author of Vindication of Rights of Woman, Londres.

Gordon, C (2020). Mulheres Extraordinárias: As Criadoras e a Criatura. Rio de Janeiro: Dark Side. 

Wolf, V (2015). “Quatro figuras: Mary Wollstonecraft”. In: Wolf, V. O valor do riso e outros ensaios (p. 221-229). São Paulo: Cosac Naify.

Sobre a obra de Wollstonecraft

Bergès, S (2013). The Routledge Guidebook to Wollstonecraft’s A Vindication of the Rights of Woman. New York: Routledge. 

Bergès, S & Coffee, A (orgs.) (2016). The Social and Political Philosophy of Mary Wollstonecraft. Oxford: Oxford University Press. 

Bergès, S. Botting, E. H. & Coffee, A (orgs.) (2019) The Wollstonecraftian Mind. New York: Routledge. 

Botting, E. H (2016). Wollstonecraft, Mill, & Women’s Human Rights. New Heaven & London: Yale University Press.

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Outros materiais

The Wollstonecraft Society. Organização sem fins lucrativos. Londres. https://www.wollstonecraftsociety.org/ 

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Boitempo. Mary Wollstonecraft e o documento fundacional do Feminismo: atualidades e limites. Debate com Eunice Ostrensky e Maria Lygia Quartim de Moraes e mediação de Sarah Bonfim. 07 de março de 2022. Disponível aqui.