Estados Unidos: a próxima União Soviética?

Salve, Pessoal! Um amigo me mandou um link para uma matéria que é uma tradução de uma entrevista com um historiador e demógrafo, publicada originalmente pelo jornal francês Le Figaro (eu não sei como essa matéria me escapou, mas, felizmente, eu tenho bons amigos). A matéria é de conteúdo explosivo e, como esse amigo diz:
Esta entrevista com Emmanuel Todd expõe possíveis implicações profundas do despreparo estadunidense para lidar com o Katrina
http://www.truthout.org/docs_2005/091205H.shtml
Emmanuel Todd é historiador e demógrafo, na década de setenta publicou artigos prevendo, com precisão, detalhes de como se daria o declínio soviético nas décadas seguintes baseado em análise comparativa de dados demográficos da mortalidade infantil na URSS.
Recentemente ele escreveu um livro chamado 'Après l'empire" (depois do império), no qual sugere, apontando evidências demográficas e histórico-econômicas, o porvir de uma condição não-hegemônica dos EUA.
Como este amigo não publicou, ele mesmo este texto, preferindo mandar por email, eu vou tomar a liberdade de omitir minha fonte, apresentando apenas a tradução (da tradução — eu não localizei a matéria original no Le Figaro). Se ele quiser assumir a paternidade, sinta-se livre para fazê-lo. Lá vai:

Emmanuel Todd: O Espectro de uma Crise no Estilo Soviético
Por Marie-Laure Germon and Alexis Lacroix
Le Figaro
2ª feira, 12 de Setembro de 2005
De acordo com este demógrafo, o Furacão Katrina revelou o declínio do Sistema Americano.
Engenheiro de pesquisas no Instituto Nacional de Estudos Demográficos, historiador, autor de “Après l’empire” (“Após o Império”), publicado pela Gallimard em 2002 – um ensaio em que ele prevê o “desmoronamento” do sistema americano – Emmanuel Todd faz uma revisão para Le Figaro das sérias falhas reveladas pela tempestade.
Le Figaro – Qual é a primeira lição moral e política que se pode aprender da catástrofe provocada por Katrina? necessidade de uma modificação “global” em nosso relacionamento com a natureza?
Emmanuel Todd – Vamos nos precaver de uma interpretação extrapolada. Não devemos perder de vista o fato de que estamos falando de um furacão de intensidade extraordinária que teria porduzido danos monstruosos em qualquer lugar. Um elemento que surpreendeu a muitos – a erupção da população negra, uma grande maioria neste desastre – não me surpreendeu pessoalmente, já que eu realizei um grande estudo sobre os mecanismos da segregação racial nos Estados Unidos. Eu sabia, há muito tempo, que o mapa da mortalidade infantil nos Estados Unidos é sempre uma cópia exata da densidade das populações negras. Por outro lado, eu fiquei surpreso que os espectadores desta catástrofe subitamente se deram conta de que Condolezza Rice e Colin Powell não são ícones particularmente representativos das condições da América negra. O que realmente fez eco a minha representação dos Estados Unidos – como desenvolvido em Après l’empire – foi que os Estados Unidos ficaram desabilitados e ineficazes. O mito da eficiência e do super-dinamismo da economia americana estão em perigo.
Nós pudemos observar a inadequação dos recursos técnicos, dos engenheiros, das forças militares no local, para confrontar a crise. Isso levantou o véu sobre uma economia americana, percebida como muito dinâmica, beneficiária de uma taxa de desemprego baixa, creditada com uma sólida taxa de crescimento do PIB. Em confronto com os Estados Unidos, a Europa é tida como praticamente patética, esmagada pelo desemprego endêmico e golpeada com um crescimento anêmico. Mas o que as pessoas não queriam ver é que o dinamismo dos Estados Unidos é um dinamismo de consumo.
LF – O consumo doméstico americano é artificialmente estimulado?
ET – A economia americana está no coração de um sistema econômico globalizado e os Estados Unidos funcionam como uma notável bomba de circulação financeira, importando capital em um nível de 700 a 800 bilhões de dólares ao ano. Esses fundos, após a redistribuição, financiam o consumo de mercadorias importadas – um setor realmente dinâmico. O que tem caracterizado os Estados Unidos, por anos, é a tendência de inflar o monstruoso déficit das contas externas, que agora está perto dos 700 bilhões de dólares. A grande fraqueza desse sistema econômico é que ele não se apoia em uma fundação de real capacidade industrial doméstica.
A indústria americana foi sangrada até o fim e é o declínio industrial que, acima de tudo, explica a negligência de uma nação confrontada com uma situação de crise: para gerenciar uma catástrofe natural, você não precisa de técnicas financeiras sofisticadas. ou de advogados especializados na extorsão de fundos em nível global, mas você precisa de material, engenheiros e técnicos, bem como de um sentimento de solidariedade coletiva. Uma catástrofe natural em teritório nacional confronta um país com sua identidade mais profunda, com suas capacidades de resposta tecnológica e social. Agora, se a população da América pode muito bem concordar em consumir juntos – o nível de poupança doméstica é praticamente nulo – em termos de produção de material, de prevenção e planejamento de longo prazo, ela se provou desastrosa. A tempesatade mostrou os limites de uma economia virtual que identifica o mundo com um vasto video-game.
LF – É lícito relacionar o sistema americano de margem de lucro – esse “neo-liberalismo” denunciado pelos comentaristas europeus – e a catástrofe que atingiu Nova Orleans?
ET – A gerência da catástrofe teria sido muito melhor nos Estados Unidos do passado. Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos asseguravam metade da produção dos bens produzidos no planeta. Hoje em dia, os Estados Unidos se mostram com pontas soltas, atolado em um Iraque devastado que eles não conseguem reconstruir. Os americanos levaram um longo tempo para blindar seus veículos, para proteger suas próprias tropas. Eles tiveram que importar munição leve. Que diferença dos Estados Unidos da Segunda Guerra que, ao mesmo tempo, esmagou o exército japonês com sua frota de porta-aviões, organizou os desembarques na Normandia, reequipou o Exército russo com material leve, contribuiu magistralmente para a libertação da Europa e manteve as populações européia e alemã, libertas de Hitler, vivas. Os americanos sabiam como dominar a tempestade nazista com uma maestria de que hoje se mostram incapazes em uma única de suas regiões. A explicação é simples: o capitalismo americano daquela era foi um capitalismo industrial, com base na produção de bens; em resumo, um mundo de engenheiros e técnicos.
LF – Não seria mais pertinente reconhecer que, virtualmente, não há mais desastres puramente naturais, em uma definição rigorosa, em virtude da falta de moderação das atividades humanas? Não seria o caso de que o “American Way of Life” deva se auto-reformar? Por exemplo, aceitando as limitações do Protocolo de Kyoto?
ET – As sociedades e incorporações socias da Europa e dos Estados Unidos são radicalmente diferentes. A Europa é parte de uma economia agrícola muito antiga, acostumada a tirar sua subsistência do solo com dificuldade em um clima relativamente temperado, a salvo das catástrofes naturais. Os Estados Unidos são um tipo de sociedade inteiramente nova que começou trabalhando um solo virgem e fértil no coração de um ambiente natural mais hostil. Seu clima continental, muito mais violento, não constituiu um problema para os Estados Unidos enquanto eles desfrutaram de uma real vantagem econômica, isto é, enquanto eles detinham os meios técnicos para dominar a natureza. No presente, a hipótese de uma dramatização humana da natureza, nem é mais necessária. A simples deterioração da capaciade técnica de uma economia americana, não mais produtiva, criou a ameaça de que a Natureza faça nada mais do que retomar seus direitos (naturais).
Os americanos precisam de mais aquecimento no inverno e mais ar-condicionado no verão. Se nós formos, um dia, confrontados com uma penúria, não mais relativa, mas absoluta, os europeus vão se adaptar a ela melhor porque seu serviço de transporte é muto mais concentrado e econômico. Os Estados Unidos foram concebidos, com respeito ao consumo de energia e espaço, de uma maneira quase caprichosa, não bem pensada.
Não vamos apontar nossos dedos para o agravamento das condições naturais, mas preferencialmente para a deterioração econômica de um sociedade que tem que se confrontar com uma natureza muito mais violenta. Os europeus, como os japoneses, demonstraram sua excelência com respeito à economia de energia, durante os antecedentes “choques do petróleo”. Era de se esperar: as sociedades européia e asiática se desenvolveram gerenciando a escassez e, ao final, várias décadas de abundância de energia vão parecer um breve parênteses em um dia de sua história. Os Estados Unidos foram construídos na abundância e não sabem gerenciar a esacassez. Dessa forma, eles agora são confrontados com o desconhecido. Os passos iniciais dessa adaptação não se mostraram muito promissores: os europeus têm estoques de gasolina, os americanos têm estoques de petróleo cru – eles não construiram uma só refinaria desde 1971.
LF – Então não é só no sistema econômico que você põe a culpa?
ET – Eu não estou fazendo um julgamento moral. Eu focaliso minha análise no apodrecimento de todo o sistema. Après l’impire desenvolve teses que, em seu todo, eram bem moderadas e que eu me sinto tentado a radicalizar hoje. Eu predisse o colapso da do sistema soviético com base no aumento das taxas de mortalidade infantil, durante o período de 1970 a 1974. Agora, os últimos números publicados sobre este tema pelos Estados Unidos – os de 2002 – demonstram um recrudescimento das taxas de mortalidade infantil para todas as, assim chamadas, “raças” americanas. O que se pode deduzir a partir disso? Em primeiro lugar, que devemos evitar o enforque estritamente racial na interpretação da catástrofe do Katrina e trazer tudo à conta do problema dos negros, em particular a desintegração da sociedade local e o problema dos saques. Isso constituiria um problema de esconde-esconde ideológico. O saque dos supermercados é só uma repetição nos escalões mais baixos da sociedade, do sistema predatório que está no coração do sistema social americano de hoje.
LF – O sistema predatório?
ET – Este sistema social não se assenta mais sobre a ética Calvinista dos “Founding Fathers” (“Pais Fundadores”) e seu gosto pela poupança – mas, ao contrário, em um novo ideal (eu não ouso falar em ética ou moral): a busca da maior remuneração em troco do mínimo de esforço. Dinheiro adquirido rapidamente, por especulação e, por que não, por roubo. A gangue de negros desempregados que saqueia um supermercado e o grupo de oligarcas que tentam organizar o seqüestro do século das reservas de hidrocarbonetos do Iraque, têm um princípio de ação em comum: predação. As disfunções em Nova Orleans refletem certos elementos centrais da cultura americana presente.
LF – Você postula que o gerenciamento do Katrina revela uma preocupante fragmentação territorial, acrescida do pouco caso do aparato militar. O que devemos então temer no foturo?
ET – A hipótese do declínio, desenvolvida em Après l’empire, evoca uma possibilidade do simples retorno dos Estados Unidos ao normal, certamente associado a uma queda no padrão de vida de 15 a 20%, porém garantindo para a população um nível de consumo e de energia “padrão” no mundo desenvolvido. Eu só estava atacando o mito da superpotência. Hoje, eu tenho medo de ter sido muito otimístico. A inabilidade dos Estados Unidos em responder a uma competição industrial, seu grande déficit em bens de alta tecnologia, o recrudescimento das taxas de mortalidade infantil, a perda de eficiência (e prática ineficiência) do aparato militar, a persistente negligência das elites, incitam-me a considerar a possibilidade de uma real crise do tipo soviético nos Estados Unidos.
LF – Seria uma tal crise uma conseqüência da política da Administração Bush, que você estigmatiza por seus aspectos paternalísticos e de Darwinismo social? Ou seriam suas causas mais estruturais?
ET – O neo-conservadorismo americano não deve ser culpado sozinho. O que me parece mais chocante é a maneira como esta América que encarna o absoluto oposto da União Soviética, está ao ponto de causar a mesma catástrofe pela caminho oposto. O comunismo, em sua loucura, supôs que a sociedade era tudo e o indivíduo não era nada, uma base ideológica que causou sua própria ruína. Hoje, os Estados Unidos nos asseguram, com uma fé cega tão intensa como a de Stálin, que o indivíduo é tudo, o mercado é o suficiente e que o Estado é odioso. A intensidade da fixação ideológica é totalmente comparável à fixação do delírio comunista. Esta postura individualista e inequalitária desorganiza a sociedade americana para a ação. O mistério real, para mim, reside aí: como pode uma sociedade renunciar ao bom-senso e pragmatismo a um tal ponto, e entrar em um tal processo de auto-destruição ideológica? É um beco-sem saída histórico para o qual eu não tenho resposta e o problema não pode ser abstraído das políticas da atual administração somente. É toda a sociedade americana que parece estar se lançando em uma política de escorpião, um sistema doentio que termina se aplicando seu próprio veneno. Este comportamento não é racional, mas, ao mesmo tempo, ele não contradiz a lógica da história. As gerações pós-guerra perderam a familiaridade com a tragédia e com o espetáculo dos sistemas auto-destrutivos. Mas a realidade empírica da história humana é que isto não é racional.

Apavorante, não?…

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