Catharine MacKinnon

Catharine MacKinnon

(1946-)

 

Por Camila Palhares Barbosa

Professora Substituta na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Lattes

Catharine MacKinnon – PDF

 

Joanna Tarlet-Gauteu/  Philosophie magazine

Catharine MacKinnon é uma jurista, teórica feminista e professora de Direito estadunidense conhecida por seu trabalho pioneiro sobre igualdade de gênero e violência sexual. Nascida em 1946, em Minneapolis, Minnesota, é filha de Elizabeth Valentine Davis e George E. MacKinnon. Catharine Mackinnon tem forte participação no debate sobre assédio sexual e pornografia, que ela defende serem formas de discriminação de gênero. MacKinnon ajudou a definir o assédio sexual como uma violação dos direitos civis nos EUA e foi uma das principais vozes no movimento antipornografia. A colaboração com a escritora e ativista Andrea Dworkin (1946-2005), especialmente no contexto da chamada “Guerra do Sexo” (Sex Wars), promoveu, nos anos 1980, leis antipornografia como a Ordenança de Direitos Civis Antipornografia, que propunha que mulheres prejudicadas pela pornografia poderiam processar os produtores por violação de direitos civis.

Atualmente MacKinnon é a Professora de Direito Elizabeth A. Long na      Universidade de Michigan, onde é titular desde 1990, e Professora Visitante de Direito James Barr Ames e em  Harvard. De 2008 a 2012, foi conselheira especial de gênero do Procurador do Tribunal Penal Internacional. Seu trabalho combina direito, teoria feminista e ativismo social, o que influenciou tanto legislações como a teoria feminista.

1. Assédio sexual e discriminação

 

O ativismo e o engajamento de MacKinnon com a teoria feminista têm como ponto de partida o debate sobre leis de assédio sexual, especialmente contra mulheres trabalhadoras da indústria do sexo. MacKinnon tem proposto que o assédio sexual deve ser entendido no âmbito jurídico como discriminação sexual. Na obra Sexual harassment of working women [Assédio Sexual de Mulheres Trabalhadoras] (1976), argumenta que o assédio sexual, de forma similar ao estupro, é resultado da erotização da dominação masculina enquanto sexualidade, ou seja, é resultado material das práticas normalizadas de dominação heterossexual. MacKinnon define assédio sexual como “a imposição indesejada de exigências sexuais no contexto de uma relação de poder desigual” (1976, p. 162). 

Ao analisar as relações de dominação na esfera do trabalho e no contexto universitário, ela distingue duas formas gerais em que o assédio sexual ocorre. Primeiro, há casos em que uma pessoa em situação de poder oferece um quit pro quo [troca de favores] entre atenção sexual e benefícios básicos concedidos, como, por exemplo, uma promessa de promoção em contraposição a uma situação de assédio. Em segundo, num sentido mais amplo, há o que a autora chama de “condições de trabalho”, em que é o próprio ambiente sexista que dá permissibilidade para constantes e recorrente insultos, convites e importunações sexuais, que ao serem ‘naturalizados’ nesses espaços, retiram a percepção de necessidade de fornecer algum benefício direto de quit pro quo. Ao tratar do assédio como discriminação sexual, a autora consolida a crítica central de suas obras: a compreensão do gênero como expressão de um status desigual. Para MacKinnon, o status desigual de mulheres na esfera social implica uma dificuldade de tratar as relações entre os gêneros como simetricamente constitutivas. 

Por isso, MacKinnon tensiona duas maneiras de tratar da discriminação sexual: a “hipótese da diferença” e a “hipótese da desigualdade” (1991, p. 1291). O problema da visão legal pautada pela concepção de diferença sexual é a naturalização e normalização das instâncias de opressão e discriminação. MacKinnon é categórica ao entender que diferença sexual é resultado das dinâmicas sociais e estruturais de dominação que promovem as desigualdades entre homens e mulheres. Em Reflections on Sex Equality under Law [Reflexões sobre Igualdade de Gênero perante a Lei] (1991), ela argumenta que “um relato da desigualdade sexual sob a lei nos Estados Unidos deve começar com o que os homens brancos fizeram e não fizeram, porque eles criaram o problema e se beneficiaram dele, controlaram o acesso para resolvê-lo e colocaram o baralho contra sua solução” (1991, p. 1284). Para MacKinnon, a jurisprudência masculina e a linguagem normativa da “igualdade” e da “diferença” reforçam a exploração de mulheres, como se “o sistema jurídico não tivesse sexo, como se as mulheres fossem pessoas de gênero neutro temporariamente presas pela lei em corpos femininos” (1991, p. 1286). Ao aplicar os termos de “igualdade” e “diferença”, o sistema legal deixa de considerar a realidade do status de gênero: a discriminação baseada no sexo. 

A abordagem da desigualdade sexual não visa apagar o quanto as experiências generificadas podem ser distintas, contudo, pretende pôr em questão a estruturação normativa e social que articula discursos sobre igualdade e diferença para manter as desvantagens de mulheres no sistema político e cultural. MacKinnon defende uma jurisprudência voltada para garantia de equidade sexual a partir da percepção e reversão da soberania masculina nas instituições político-sociais, instrumentos legais e pensamento cultural. 

Desde início dos anos 1970, os esforços de McKinnon em oferecer um debate legal sob o viés da discriminação de gênero partem do enfoque na constituição social do gênero como categoria material política, formada através da hierarquia para exploração e dominação, e não pautada por um argumento da diferença. Ou seja, 

 

é essa hierarquia que define qualquer diferença, e não o contrário, e derrota até mesmo a maioria dos sonhos de humanidade comum. Quanto à dimensão do ser mulher na qual isso é vivido, o que acontece parece menos ‘baseado no sexo’ [diferença sexual] do que no fato de elas serem mulheres. (1991, p. 1281)  

2. Dominação sexual e o status de gênero

 

Em Toward a feminist theory of the state [Para uma teoria feminista do Estado] de 1989, MacKinnon constrói uma teoria feminista que busca definir as formas de opressão contra mulheres e conceber uma teoria da dominação masculina. Assim, uma teoria feminista precisa desenvolver uma teoria sobre dominação sexual, assim como as teorias marxistas precisaram desenvolver uma teoria sobre dominação de classe. MacKinnon afirma que a “sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que um sujeito mais tem, e o que lhe é mais alienado” (1989, p. 3). A sugestão metodológica é de uma teoria pós-marxista que vai similarmente desenvolver uma descrição da realidade material de exploração que é construída socialmente, historicamente específica e que constitui uma universalidade material através da exploração e dominação organizada e reproduzida. Uma teoria feminista é pautada na estruturação em classes sexuais, que funcionam para o controle político, social e econômico de uma categoria sob a outra. Gênero é a base das dinâmicas de exploração resultado da alienação da sexualidade. A obra de 1989 busca a construção de um método de análise feminista que seja capaz de diagnosticar e criticar as formas de opressão contra mulheres, e estabelecer uma teoria sobre a heterossexualidade enquanto a estrutura de sustentação da relação assimétrica de poder, “exigindo uma análise em seus próprios termos” (1989, p. 12).

O método feminista que critica a dominação masculina também pautará a compreensão de outras instâncias de discriminação e desigualdade da realidade material. Não se trata de conceber a categoria de gênero como uma forma primária de opressão, senão a elaboração de uma gramática própria capaz de compreender uma estruturação hierárquica que compartilha de certas instâncias de dominação. Em From Practice to Theory, or What is a White Woman Anyway? [Da prática à teoria, ou O que é uma mulher branca, afinal?] (1991), afirma que 

 

falar de tratamento social ‘como mulher’ não é, portanto, invocar qualquer essência abstrata ou tipo genérico ou ideal homogêneo, não é postular nada, muito menos algo universal, mas sim referir-se a essa realidade material concreta, diversa e generalizada de significados e práticas sociais. (1991, p.15)

 

Ainda, a sua tentativa é de definir que a opressão de gênero é pautada na sexualidade heteronormativa como meio de dominação. Defende que a categoria analítica “mulher” se refere a um conjunto de práticas articuladas pelo discurso dominante que permitem que as dinâmicas de desigualdade se perpetuem. 

MacKinnon afirma que sexualidade é “a hierarquia social do homem sobre a mulher”, ou seja, é a expressão da dominação masculina. O ponto de conexão da experiência generificada é que as dinâmicas sociais que estão atravessadas pelo sexual, os papéis sociais de gênero, implicam numa posição em que o homem está assimetricamente no polo de dominação, que classifica e significa as dimensões da sexualidade, ao tornar a desigualdade “erótica”. A sexualidade é “uma construção social do poder masculino: definida pelos homens, imposta às mulheres e constitutiva do significado de gênero” (1989, p. 128). A submissão da mulher se dá pela alienação das instâncias da sexualidade, através da construção do gênero “mulher” como objetificado. É no corpo sexuado objetificado enquanto o significado da sexualidade em si pelo qual “a dominância erotizada define os imperativos de sua masculinidade, a submissão erotizada define sua feminilidade” (1989, p. 130).

Ao tratar a sexualidade como a erotização da objetificação, MacKinnon entende que a hierarquia de gênero funciona para classificação da mulher como sub-humana. Sua constituição para “uso sexual”, faz com que os discursos sociais e políticos sobre os sexos sejam substanciais para a desigualdade social de gênero. São nas interações da sexualidade que ocorrem as experiências similares do significado social “mulher”. Analisar tais experiências, a fim de transformá-las, exige olhar as experiências que são formadas a partir das relações de poder que produzem e reproduzem o gênero no dia a dia (1989, p. 129). A heterossexualidade, enquanto uma instituição política, é formada para posicionar papéis de gênero, especialmente de um ideal de “mulher”. A naturalização não é apenas da diferença sexual, mas da erotização que constitui o significado da heterossexualidade: “‘fizemos sexo três vezes’ normalmente significa que o homem penetrou a mulher três vezes e teve orgasmo três vezes” (1989, p. 133). 

Para MacKinnon, uma metodologia e transformação feminista estão centradas na temática do poder, visto que o sistema patriarcal é estabelecido pela dominação masculina que reflete no âmbito político, do Estado, da normatividade, e que mantém a realidade de desigualdade entre os sexos. Em Feminism unmodified [Feminismo não modificado] (1987), MacKinnon adverte que o feminismo necessita modificar radicalmente o status da mulher e reverter as assimetrias de poder (1987, p. 8), o que começa com uma reformulação da construção legal que sustenta a diferença sexual e a hierarquia de gênero. Pois, “buscar uma sexualidade igualitária sem transformação política é buscar a igualdade em condições de desigualdade” (1989, p. 154).

3. Reivindicando uma jurisprudência feminista

 

Uma vez que a categoria de gênero é um sistema social que hierarquiza o poder, ela deve também ser entendida enquanto um sistema político, que estruturalmente articula a materialidade da condição das mulheres nas esferas econômicas, da família, do Estado e da sociedade como um todo. As relações de homens e mulheres, como um todo, são relações políticas. Uma crítica ao papel do Estado na manutenção da política sexual passa a ser uma reivindicação fundamental de uma teoria feminista. Para tanto, não basta o reconhecimento da diferença e a demanda de igualdade, é preciso questionar de maneira mais estrutural como gênero constitui-se de forma hierárquica.  

A questão para MacKinnon é como seria um Estado de um ponto de vista feminista. Tendo em vista que a suposta neutralidade do Estado e da justiça frente às categorias de gênero servem para a manutenção do ponto de vista masculino, a demanda pelo ponto de vista feminista oferece uma refutação à tese de que a política pode se dar em termos descorporificados e abstratos (1989, p. 162). A racionalidade objetiva implementada pela estrutura masculina reforça a hierarquia sexual na medida em que, nas bases normativas, a suposição da neutralidade em si já supõe que as relações de desigualdade entre os gêneros não existem, que todos podem ser apreendidos no mesmo discurso da lei. MacKinnon reivindica que a jurisprudência atual não é suficiente, pois:

 

enquanto o domínio masculino for tão efetivo na sociedade que seja desnecessário impor a desigualdade sexual por meio da lei, de modo que apenas as desigualdades sexuais mais superficiais se tornem de jure, nem mesmo uma garantia legal de igualdade sexual produzirá igualdade social. (1989, p. 164) 

 

Porque as “relações de jure estabilizam as relações de fato” (1989, p. 167), as formas de intervenções da lei na liberdade de mulheres servem também como formas políticas de manter o status hierárquico. A separação do assédio do debate sobre sexualidade e o nível elevado da pobreza feminina são fatos que servem a manutenção das mulheres como ‘reprodutoras’ que dependem dos homens. De fato, “estupro, pornografia, prostituição, incesto, agressão, aborto, direitos dos gays e das lésbicas: nenhuma dessas questões foi objeto de igualdade sexual nos termos da lei” (1989, p. 168). Os debates que versam sobre equidade nesses casos mantêm o estatuto do gênero intacto, o que torna a discriminação sexual em si quase inexistente aos olhos da lei, pois pressupõe que o direito que está acessível aos homens também está para mulheres. No caso do estupro, o debate se dá em torno do consentimento e da privacidade comparativa, entretanto, o significado do consentimento é radicalmente diferente entre os gêneros: “a lei do estupro considera a resposta usual das mulheres à coerção aquiescência – a resposta desesperada à falta de esperança diante da desigualdade de chances – e chama isso de consentimento” (1989, p. 169). A lei não reconhece precisamente os termos nos quais a desigualdade ocorre de fato, pois trata a sexualidade como privada e não política. 

O problema central para MacKinnon é que o discurso da diferença e da igualdade codifica as distinções epistemológicas constituídas pela hierarquia sexual. Tanto na afirmação ou na negação da diferença, mantém-se o fato de que os termos do gênero são – por definição – constituídos pela desigualdade. Nessa gramática, a igualdade abstrata significa ser como homem, como os homens se entendem, a diferença é vista como algo simplesmente dado, mascarando que o elemento que compõe a diferença é a discriminação e a desigualdade, não algo estabelecido a priori. É pela desigualdade e análise comparativa das categorias sexuais que as disparidades substantivas e materiais entre os gêneros podem ser identificadas. Assim, “a única maneira de fazer valer uma reivindicação como membro do grupo de mulheres socialmente desiguais, em vez de tentar fazer valer uma reivindicação contra a participação no grupo de mulheres, é buscar tratamento com base na discriminação sexual” (1989, p. 230). A análise feminista, portanto, trataria das circunstâncias sociais substanciais nas quais o gênero enquanto construto produz interesses distintos, percepções e significados de racionalidade.

MacKinnon enfatiza a necessidade de reinterpretar o direito a partir da perspectiva das mulheres, de modo a considerar como elas vivenciam a desigualdade e a opressão. Para tanto, a autora defende uma leitura feminista partindo de dois conceitos fundamentais: da tomada de consciência (consciousness raising) e da experiência. 

4. Consciência e experiência feminista

 

 Segundo MacKinnon, o feminismo é uma metodologia na medida em que oferece ferramentas de análise da realidade social através da categoria de gênero enquanto hierarquia da diferença sexual e da constituição da  sexualidade como força produtiva da hierarquização. A teoria feminista organiza metodologicamente uma forma de ver o mundo. Para a autora, se não há uma teoria marxista sem classe, também não há uma teoria feminista sem sexo como categoria analítica, o que implica comprometer-se com a investigação das categorias de gênero, entendido como hierarquia social do sexo, como um dos eixos centrais de análise, e cuja compreensão é necessária para descrever a realidade material desde essa perspectiva. MacKinnon afirma que “em vez de se engajar no debate sobre o que veio (ou vem) primeiro, sexo ou classe, a tarefa da teoria é explorar os conflitos e as conexões entre os métodos que acharam significativo analisar as condições sociais em termos dessas categorias em primeiro lugar” (1982, p. 257). 

Em Intersecctionality as method: a note [Interseccionalidade como método: uma nota] (2013), MacKinnon lê o termo “interseccionalidade”, tal como desenvolvido por Crenshaw (1989), como “intrinsecamente desmarginalizador”, na medida em que Crenshaw não estava adicionando variáveis à análise de opressões, mas estava propondo “uma posição dinâmica em uma ordenação hierárquica do mundo real que, quando compreendida e alterada, inflama e transforma o conceito baseado no sexo” (2013, p. 1026). Para MacKinnon, o método interseccional revela como a dominação masculina branca é interseccional e consolida-se por diversos nichos sociais e institucionais da realidade, pois revela o sistema de opressão nas suas complexidades. Ainda, opera para desmantelar esse sistema de dominação desde ângulos distintos, o que para MacKinnon permite transformar a realidade social de forma mais significativa. A interseccionalidade, para MacKinnon, ao capturar as relações co-constitutivas entre desigualdades e partir de experiências vividas por categorias de pessoas em relações de hierarquia, como de raça, gênero e classe, tem mudado a forma como as pessoas pensam sobre a desigualdade. É “uma correção categórica […] que adiciona a especificidade de sexo e gênero a de raça e etnia, e as especificidades de raça e etnia as de sexo e gênero” (2013, p. 1020)

Pensando nas categorias de análise, em Feminism, Marxism, Method, and the State: an agenda for a theory [Feminismo, Marxismo, Método e o Estado: uma agenda para a teoria] (1982), MacKinnon defende uma metodologia propriamente feminista que pode integrar-se no modo de pensar a interseccionalidade, na medida em que seu “desafio é demonstrar que os feminismos convergem sistematicamente para uma explicação central da desigualdade entre os sexos por meio de uma abordagem distinta de seu tema, mas aplicável a toda a vida social, incluindo a classe (e demais intersecções)” (1982, p. 528). O método feminista de MacKinnon implica confrontar e mudar as experiências vividas e concretas de mulheres, enquanto categorias de gêneros que são definidas pela sexualidade, isto é, pela sexualização da desigualdade como correlata à heterossexualidade. Nesses termos, o significado de uma experiência de gênero precisa se revelar em como os grupos são codificados e normas emergem de maneira a manter o status que constitui a existência dessas categorias e em que a hierarquização se dá como forma de identificação social e identitarismo. As experiências vividas de mulheres permitem apontar como as desigualdades de gênero são constituídas pela dominação masculina, determinando conjuntamente em nós complexos o significado social ‘ser mulher” e ‘ser mulher negra’. Por exemplo, “as mulheres percebem que o assédio sexual se assemelha muito a uma iniciativa heterossexual comum sob condições de desigualdade de gênero” (1982, p. 532).

É nessa perspectiva que a tomada de consciência é estabelecida por MacKinnon como um processo feminista por excelência, na medida em que toma as experiências e percepções de mulheres como um grupo coletivo, e não como um conjunto individual somado ou de ideais subjetivos (1989, p. 84). A tomada de consciência nos coloca ao lado das determinações sociais que constituem a materialidade e realidade das experiências, desvela situações específicas das dinâmicas hierárquicas constitutivas da categoria mulher, e revela o significado da situação das mulheres como uma forma de saber que é compartilhado enquanto grupo. Para MacKinnon, “o que leva as pessoas a se conscientizarem de sua opressão como algo comum, em vez de permanecerem no nível de sentimentos ruins, a verem sua identidade de grupo como uma necessidade sistemática que beneficia outro grupo, é a primeira questão da organização” (1989, p. 86). Por isso “as particularidades se tornam facetas do entendimento coletivo no qual as diferenças constituem, em vez de minarem, a coletividade” (1989, p. 86). Grupos de tomada de consciência permitiram aproximar mulheres através da identificação de experiências generificadas.

Em Feminism Unmodified [Feminismo não modificado] (1987), MacKinnon usa seu debate com a conversadora Mrs. Schlafly, na Stanford Law School (1982), para explicitar o sentido da experiência da mulher pressuposta em sua teoria. Ambas, ela e Mrs. Schlafly, estão a falar desde um ponto de vista “da experiência da mulher”. Entretanto, por experiência da mulher a Mrs. Schlafly reafirma a naturalização da diferença sexual como ponto de partida para reivindicar o reconhecimento de “mulheres enquanto mulheres” (1987, p. 22). Essa premissa está implicada na gramática da diferença/igualdade criticada por MacKinnon, que reforça uma essência sexual e biológica ao ser mulher. Para MacKinnon a questão não é a diferença sexual e de gênero, algo que é dado enquanto uma experiência necessária de mulheres, mas se trata da diferenciação que o gênero faz – experiências de gênero vividas por mulheres enquanto uma categoria social – e como essas categorias podem mudar. Assim, a consciência da experiência desde um ponto de vista feminista implica na luta pela abolição da subordinação de mulheres a homens, entendidos enquanto grupos sociais (1987, p. 28-29). 

Em A Feminist Defense of Transgender Sex Equality Rights [Uma defesa feminista dos direitos de igualdade sexual de transgêneros] (2023), MacKinnon se opõe aos argumentos de feministas anti-trans, conhecidas como TERFs (Trans Exclusionary Radical Feminists), de que “direitos sexuais de mulheres” estão em perigo com as novas garantias institucionais concedidas à população transgênero. Para a autora, na jurisprudência e no Estado masculino, não há ‘direitos sexuais’ para mulheres, pois a lei e a justiça, tidas como abstratas e objetivas, não reconhecem a sexualidade como uma instância de sua constituição. MacKinnon afirma que “mulheres encarceradas não têm ‘direitos baseados no sexo’ para serem encarceradas em prisões só para mulheres [..] Elas são separadas por sexo por motivos de segurança, gerenciamento e administração do poder estatal e policial” (2023, p. 89). Assim, são a violência e insegurança que permanecem sendo a forma institucional com que o Estado administra esses locais e a forma como a diferença de gênero permanece hierarquicamente constituída. A questão feminista está na dimensão política e “as mulheres trans são, politicamente, mulheres. Elas também são nosso povo” (2023, p. 92). Porque a definição de gênero de Mackinnon se dá pela desigualdade – ser mulher é ser socialmente subordinado e ser homem é ser socialmente dominante (em termos de situação) – a tomada de consciência da experiência de objetificação e erotização da hierarquia sob o signo da sexualidade é o ponto de partida da crítica feminista, o que pode ser posto em termos transativistas. 

5. Prostituição e Pornografia

 

A violência contra mulher e sua expressão através da sexualidade está no cerne da investigação de MacKinnon, pois considera que “a maneira como a lei trata as questões da sexualidade das mulheres é um indicador e determinante crucial do status das mulheres como sexo” (2017, p. 13). Temas como assédio, estupro e questões em torno da prostituição e pornografia são cruciais para a compreensão das violências materiais que permeiam a hierarquização dos gêneros. 

Ao tratar de violências sexuais, MacKinnon busca não as considerar como uma expressão da dominação apenas no seu acontecimento, isto é, não é só quando ocorre um estupro, assédio ou violência que as faces da hierarquia dominante masculina se mostram. Antes, a ideia da sexualidade é constituída de tal forma que está sempre a um passo de tornar essas violências materiais. A sexualidade forma um mundo social em que esse tipo de violência é permissível, na medida em que torna a hierarquia algo erótico. A perversidade da dominação masculina é tornar prazerosa a desigualdade, e chamar essa prática de sexo. MacKinnon afirma que “as mulheres sabem, por meio de nossas próprias vidas, sobre a construção cotidiana da relação sexual. Dizem-nos que o sexo é algo que os homens fazem com as mulheres – os homens o iniciam. As mulheres, no máximo, aprovam essa iniciação ou não” (2017, p. 14). Na medida em que as assimetrias são componentes de uma estrutura social mais geral, grupos dominantes são caracterizados pelo poder de materializar e expandir dinâmicas violentas e, principalmente, com a naturalização, sair ilesos. Com isso em vista, a problemática proposta pela autora em torno dos temas da prostituição e pornografia ganha uma dimensão complexa. Se “falar de atitudes masculinas não é falar do físico ou do natural”, senão do “que eles pensam” (2017, p. 15), o problema está em quais condições o pensamento masculino sobre o sexo e o prazer está pautado pela estrutura hierárquica e desigual dos sexos tornada erótica nas dinâmicas heterossexuais e de gênero.

Na medida em que a experiência de opressão de mulheres perpassa as esferas pública e privada, “para as mulheres, a autoridade do homem se estende à intimidade e à privacidade, ao interior do corpo, no sexo e na reprodução” (1988, p. 19). Já que a autoridade se estabelece não apenas nas dinâmicas, mas também nas instituições, MacKinnon vê o fato de a lei considerar pornografia como uma questão de privacidade e moralidade, e não de desigualdade e discriminação de gênero, uma forma de perpetuar a hierarquização do sexo. O abismo entre teoria e prática serve aos discursos dominantes para desarticular as violências e malefícios da indústria pornográfica e da prostituição, ao invés de focar nas práticas atuais e em quem são os grupos marginalizados que essas práticas vulnerabilizam. 

Centrando sua análise desde o ponto de vista prático, MacKinnon quer transformar juridicamente essas práticas ao considerá-las como discriminatórias. Desafiando a tese de que dinâmicas entre os gêneros fazem parte da sexualidade e do romance, coloca-as como expressão da dominação. A lei está mudando “os sentimentos das mulheres em relação ao que temos de suportar” (2017, p. 19). O reconhecimento jurídico de que questões generificadas envolvem discriminação, oferece a possibilidade da tomada de consciência e dá voz às experiências materiais de mulheres, oferecendo um vocabulário para que as formas de dominação masculina, anteriormente vistas como ‘normais’, passem pela análise crítica feminista. MacKinnon aposta que “o sistema jurídico pode ser um meio de legitimar a indignação das mulheres e de promover a resistência ao nosso status [e], se formos criativos, ele pode fazer parte do empoderamento das mulheres” (2017, p. 22). 

Uma jurisprudência feminista visa permitir a transformação social ao evidenciar e criticar as assimetrias de gênero desde o ponto de vista da experiência prática das mulheres, pois “precisamos desenvolver uma definição autônoma de nossa própria direção, buscar fóruns, meios e doutrinas de luta em nome da igualdade das mulheres que não possam ser voltados contra nós ou retirados” (2017, p. 22). 

A pornografia passa especialmente por tal análise, pois está no cerne da expressão da sexualidade, e ganha sua dimensão mais prejudicial na medida em que torna a violência real em simbólica e erótica. A pornografia constitui e dissemina a expectativa do que a mulher deve ser, no caso, ser para o homem. Porque “nós não somos permitidas a sermos mulheres nos nossos próprios termos” e somos medidas por uma definição que não é própria (1987, p. 71), a experiência pornográfica para mulheres permanece subjacente a uma lógica que, na melhor das hipóteses, permanece problemática. Assumindo o gênero definido como hierarquia e a sexualidade como seu meio de dominação, há um problema do sexo em sua definição – algo que homens fazem com mulheres –, que se põe antes mesmo da pornografia como ato. 

 

Não é que as mulheres não tenham experiências de vida pornográficas. Não é que essas representações de nossos corpos sejam pornográficas porque são sempre extraordinariamente violentas ou excepcionalmente qualquer coisa. O fato é que o material não apresenta o que as mulheres experimentam nessas condições: o uso, o abuso, o acesso, a humilhação, a violação. (2017, p. 20)

 

Relações sexuais podem ser problemáticas. Isso não significa que todas as relações sexuais envolvam estupro, assédio e violência, mas que a forma como o sexo é socialmente compreendido pela dominação masculina materializa um mundo social em que tais ações podem ocorrer, e que sua ocorrência é muitas vezes articulada enquanto uma expressão da sexualidade per se. A luta por um ponto de vista feminista que passe pela experiência de mulheres é central não apenas para pensar a experiência pornográfica situada em outro lugar, mas também para recolocar a vida sexual e erótica em outros termos. Obras como In Harm’s Way: The Pornography Civil Rights Hearings [Em Situação de Risco: As Audiências sobre Pornografia e os Direitos Civis] (1997), organizada por MacKinnon e Andrea Dworkin, buscaram dar voz às mulheres e demonstrar através de testemunhos uma documentação histórica dos prejuízos causados pela indústria e pela dominação masculina, a fim de refutar o discurso de exceção e individualização dos casos. É justamente por essa dominação e hierarquia de poder constituir a sexualidade, que os danos materiais causados às mulheres, crianças, pessoas não heterossexuais e não cisgêneras, são vistos como a exceção da regra, e não enquanto discriminação. Isso cria um desafio legal de pensar o sexo em outros termos, uma vez que questionar a heterossexualidade e sua fundamentação é impensável na estrutura patriarcal.

Os discursos em torno do debate sobre prostituição e pornografia tornam o tratamento de tais práticas discriminatórias uma ofensa a toda a dimensão da vida sexual. MacKinnon sugere que o debate legal sobre prostituição e pornografia pode servir como uma chave para ressignificar de forma mais ampla o gênero e o sexo. A obra Butterfly Politics [Políticas do Efeito Borboleta] (2017) quer demonstrar precisamente como as mudanças podem ser transformadoras e causar um ‘efeito borboleta’ na estrutura opressiva. No contexto norte-americano, a lei de assédio sexual (sexual harassment), segundo a autora, causou esse efeito: reconheceu um conjunto de práticas como discriminatórias e limitou dimensões do que antes era visto como um comportamento sexual natural masculino. 

O debate antipornografia tem um espaço central no pensamento de MacKinnon, visto sua premissa de que, ao tratar da pornografia, especialmente em termos de definições legais, um efeito cascata para as dimensões da sexualidade como dominação poderia refletir uma real transformação do significado social do gênero. Para as autoras, “a pornografia se torna irreal a fim de proteger o prazer, sexual e financeiro, daqueles que obtêm seus benefícios” (1988, p. 26) e é um meio através do qual a sexualização da opressão se mantém como algo prazeroso, privado e sem prejuízo aos envolvidos. MacKinnon e Dworkin compreendem o debate antipornografia como parte do movimento pelos direitos civis, especificamente como um movimento que se dedica a mudar as normas básicas para que o que era ilegal, marginal e impotente não o seja mais. Propostas como a Ordenança de Direitos Civis Antipornografia (1988) buscaram criar um meio legal para que as mulheres prejudicadas por materiais pornográficos pudessem processar judicialmente os produtores e distribuidores, através da alegação de danos à sua dignidade e à igualdade de gênero, visto que compreendem que a pornografia não é apenas um conteúdo sexual explícito, mas é principalmente uma forma de discriminação de gênero. A defesa de uma posição antipornografia e anti-prostituição pelas autoras se dá através da interpretação de que é a sexualidade generificada, hierarquizada enquanto erótica pela dominação masculina, que produz as condições materiais de discriminação de gênero, e que têm seus contornos mais danosos na indústria do sexo. Por isso, o argumento é que conceber juridicamente a pornografia e prostituição enquanto atos de discriminação de gênero pode “alterar a desigualdade das mulheres em relação aos homens, eliminando a subordinação das mulheres como norma” (1988, p. 30). Uma legislação que iguale prostituição e pornografia à discriminação de gênero permitiria que aquelas pessoas prejudicadas pela indústria do sexo tenham acesso e garantias legais, fundamentadas no argumento de direitos fundamentais de dignidade e de igualdade.

MacKinnon tem um impacto expressivo no debate legal, na articulação de uma jurisprudência feminista e sua definição de assédio sexual é utilizada pelas cortes norte-americanas. Sem dúvida, ela é uma pensadora fundamental para a compreensão dos debates feministas contemporâneos. Sua obra buscou consolidar o feminismo enquanto um campo metodológico central para compreensão do mundo social e das dinâmicas de poder, bem como tentou fornecer um arcabouço conceitual próprio capaz de abarcar uma tomada de consciência feminista sobre a situação hierárquica das experiências generificadas.

 

Referências Bibliográficas

 

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