Anna Rosa Termacsics dos Santos
(1821-1886)
por Cristiane Ribeiro, mestra em História pela Universidade Federal
de Juiz de Fora e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas – Lattes
Verbete Anna Rosa Termacsics dos Santos – PDF
Anna Rosa Termacsics dos Santos foi uma escritora que nasceu e viveu ao longo do século XIX, entre São Paulo e Rio de Janeiro. Até o momento não temos uma imagem sobre o seu rosto. O único documento que existe é o passaporte de seu pai, um homem descrito como alto, de olhos claros, testa grande e cabelos russos (Registro Polícia da Corte, 1828, Arquivo Nacional), o que pode dar indicativos sobre os seus traços. A sua história só foi possível de ser desvelada pela pesquisa histórica, que encontrou em rastros tão longínquos informações importantes sobre a luta das mulheres pela produção intelectual e reivindicação por seus direitos. A imagem acima mostra a única obra de sua autoria de que temos conhecimento, o Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar, publicado em 1868 pela Tipografia Paula Brito, no Rio de Janeiro. Na circunstância da publicação a autoria apareceu apenas pelas iniciais de seu nome – A. R. T. S.
Nascida em 1821 na região do antigo Império Austríaco, que hoje compreende os países Hungria, Áustria e Croácia, Anna Rosa Termacsics dos Santos era filha de um produtor e comerciante de vinhos: Antônio Termacsics. Não temos nenhuma informação sobre a sua mãe. Sabemos apenas que o senhor Termacsics veio para o Brasil com as três filhas em 1828 e se instalou em São Paulo, momento que Anna Rosa Termacsics dos Santos tinha aproximadamente sete anos de idade. O motivo da vinda? A perda de um processo de fortuna e a tentativa de se reerguer financeiramente em um país recém independente (O Farol Paulistano, 1829, Ed. 260, p. 3).
A família Termacsics era detentora de uma boa posição social quando da residência na Europa. Todavia, quando aqui chegaram, possuíam diminutos recursos e tentavam se reerguer através da produção de vinho em solos paulistas. A única coisa que os distinguia era a descendência europeia, o letramento e a cor, o que não era pouco em um país escravocrata. Essa informação sobre a classe social explica, em parte, a formação intelectual de Anna Rosa Termacsics dos Santos, que pôde contar com o incentivo do pai nas aulas que obteve e nos espaços que frequentou, com grandes interesses literários e políticos. Os negócios com a produção de vinho não deram certo, o que fez com que a família recorresse ao que tinham de melhor — a instrução —, abrindo um estabelecimento educacional em que as filhas assumiriam papel de destaque.
Em 1836, o jornal O Novo Farol Paulistano anunciava o estabelecimento de educação da família Termacsics, em que as filhas ensinavam a tocar piano, costurar, marcar, recortar, cortar vestidos de senhoras e bordar (O Novo Farol Paulistano, 1836, Ed. 458, p. 4). Foi então em São Paulo que Anna Rosa Termacsics dos Santos assumiu a função de lecionar aprendizados variados com apenas quinze anos, ofício que a acompanhou até o fim de seus dias. Como de praxe, os ensinamentos ofertados a meninas eram vinculados à construção de uma feminilidade associada às funções do âmbito doméstico, nada além. Tendo conhecimento dos escritos formulados por ela anos depois, sabemos o quanto ela elaborou um pensamento contrário a tais virtudes.
Ao lado de Anna Rosa Termacsics dos Santos trabalharam as suas duas irmãs: Teresa Rosa Termacsics dos Santos e Amália Luíza Termacsics, sobre as quais temos pouquíssimas informações. De todo modo, a partir do Segundo Reinado, as três irmãs estavam no Rio de Janeiro, e acreditamos que a transição tenha relação com a busca por mais oportunidades de trabalho e circulação após o falecimento do pai. A Corte carioca, em meados do século XIX, era um local em ebulição para discussões intelectuais e circulação de pessoas com prestígio social, e a busca por mestras estrangeiras para lecionar, sobretudo para as escolas privadas e para as aulas particulares, era cada vez maior. As irmãs podem ter migrado com essa informação em mente, almejando alcançar maiores conquistas profissionais.
Já instalada no Rio de Janeiro, Anna Rosa Termacsics dos Santos dedicou os seus dias à docência. Esse trabalho foi muito importante em toda a sua trajetória. Por meio dele, ela pôde manter sua subsistência com moradia, alimento e lazer, o qual aqui está relacionado a sua constante busca por conhecimento na compra de livros e na realização de viagens, que demandavam altos custos. Um outro dado que complexifica a necessidade constante do trabalho é o fato de ela ter permanecido solteira até o falecimento, sem qualquer tutela masculina. Ela residiu sempre em domicílios localizados no centro do Rio de Janeiro e suas imediações: pequenos sobrados alugados em ruas como a Sete de Setembro, Lavradio, Inválidos, Misericórdia, Alfândega, das Flores, Conde d’Eu, Luiz de Vasconcelos e Monte Alegre. Todos esses logradouros anunciados na imprensa como indicados para “pequena família” ou “senhoras sós”.
Como uma mulher solteira, Anna Rosa Termacsics dos Santos criticou enfaticamente o matrimônio como a única possibilidade oferecida às mulheres para o resto de suas vidas. Segundo suas palavras, “é absurdo negar a todas as mulheres os direitos civis porque os cuidados da casa consomem todo o seu tempo: de algumas, mas não de todas” (Santos, 2022, p. 44), provavelmente se referindo a si mesma. Todo o seu embasamento seguiu a sua experiência individual, mas também se ancorou em contestar dados históricos e formulações intelectuais coletivas que referendavam como natural o destino e os lugares dados às mulheres dentro do espaço privado.
Anna Rosa Termacsics dos Santos anunciava desde 1850 os seus serviços como professora na imprensa carioca, seja nos jornais diários, como o Jornal do Commercio e o Correio Mercantil, como igualmente no impresso anual Almanak Laemmert. Com os recursos alcançados com as aulas, ela pôde viajar, por exemplo, para a França e a Inglaterra, países que consideramos fundamentais para a formulação de suas ideias. As saídas e entradas nos portos de suas viagens foram sempre anunciadas na imprensa. Em 1853, entre os meses de março e agosto, ela desembarcou em Harvre, na França (Jornal do Commercio, 1853, Ed.75, p. 4), e depois em Souphton, na Inglaterra (Correio Mercantil, 1853, Ed. 222, p. 4). Pouco tempo depois, em 1857, ela esteve novamente na Inglaterra e, em 1858, passou pelo Chile e pela Argentina (Jornal do Commercio, 1858, Ed. 101, p. 3).
Nesses países, manteve contatos e relações que possivelmente refletiram fortemente em suas opiniões e formulações intelectuais, conhecendo outras mulheres que também ambicionavam os mesmos direitos que ela. Para manter as despesas com as viagens, sabemos que, além do dinheiro angariado com as aulas, Anna Rosa Termacsics dos Santos teve que vender muitos pertences — móveis, livros, piano —, todos anunciados na imprensa momentos antes de seu embarque. Tudo isso fez com que ela também anunciasse rapidamente as aulas quando retornasse, pois tinha que arcar com os custos de organizar novamente a sua moradia.
A formação recebida por meio da família teve reflexo no amplo círculo de conhecimento obtido por ela, que exerceu um variado leque de ensinamentos — piano, canto, primeiras letras, corte, costura e línguas. O seu trânsito constante pelas ruas, as idas e vindas de casas de alunas, papelarias e livrarias para dar cumprimento com as obrigações das aulas não deve ter sido fácil. Do mesmo modo, o acúmulo com o número de aulas particulares, os anúncios de aulas para meninas moradoras dos subúrbios, a constante desvalorização de seus serviços e o lugar ocupado por mulheres naquela sociedade devem ter sido mais um dos motivos que levaram Anna Rosa Termacsics dos Santos a questionar o sistema e toda a desigualdade de gênero que excluía as mulheres (Ribeiro, 2022). Em alguns momentos da sua vida, a necessidade laboral foi tamanha que encontramos também ela atuando como preceptora e governanta, indicativos sobre sua classe social.
Em seu texto é possível percebermos o quanto ela expressava o seu incômodo com uma sociedade que tratava mulheres como objetos dos homens e incapazes de qualquer cidadania. A decisão pela escrita do Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar se deu como reflexo disso, provavelmente junto às suas experiências com as viagens e o contato com o movimento de mulheres nos países que visitou. A amplitude do seu conhecimento, acumulado ao longo de anos de estudo, também influenciou e deu solidez a todo o seu argumento. Em 1868, Anna Rosa Termacsics dos Santos tinha 47 anos, ou seja, ela publicou a obra em uma idade em que já acumulava um amadurecimento e algumas experiências vividas. A decisão pela publicação tinha um objetivo explícito: argumentar que a exclusão das mulheres da educação, do trabalho e da política tinha raízes sólidas na legislação e no Estado, que era todo composto por homens.
Um outro incentivo que consideramos crucial para a publicação da obra foi a proposta pelo direito ao voto feminino levada ao parlamento inglês, em 1867, por John Stuart Mill. O filósofo e político conseguiu mobilizar 73 votos favoráveis ao direito de as mulheres participarem da política, número ainda não suficiente comparado aos 194 votos contrários. Esse ocorrido foi comentado mundialmente como inusitado, fazendo com que jornais considerassem-no de tamanha “audácia”. No Brasil não foi diferente, o Diário do Rio de Janeiro logo que soube publicou a informação a descrevendo como “um fato muito curioso” (Diário do Rio de Janeiro, 1867, Ed. 158, p. 1). Talvez Anna Rosa Termacsics dos Santos tenha sido influenciada por Stuart Mill, colocando-se como porta-voz de uma mobilização que se ampliava mundialmente e gradualmente, ainda que ela não soubesse da dimensão do movimento nas décadas seguintes.
O que mais chama a atenção em sua formulação intelectual ao longo da leitura do Tratado é o debate colocado sobre o direito ao voto e a elegibilidade para as mulheres, junto a uma defesa irrestrita do trabalho feminino como meio de emancipação. Por muito tempo, no Brasil, acreditou-se que essa discussão só tivesse ganhado forma com o movimento sufragista das primeiras décadas do século XX, sendo o século antecedente marcado por uma imprensa feminina que tinha como objetivo prioritário o direito educacional (Karawejczyk, 2013). Isso contribuiu para que se consolidasse uma ideia de que no século XIX esse não era um debate importante para as mulheres, que se mobilizaram apenas pelo direito educacional. A obra de Anna Rosa Termacsics dos Santos é a prova de que o debate pela participação política das mulheres vinha germinando em terras brasileiras ainda no século XIX.
Para que o texto final chegasse às livrarias, uma série de procedimentos foi necessária, e consideramos que o principal é o tempo dedicado aos estudos para embasamento de seu argumento. Dividida em três seções, a obra, de 128 páginas, é toda fundamentada em pensadores bastante conhecidos, fazendo com que as suas ideias tivessem inseridas em debates reconhecidos no âmbito do pensamento ocidental. A leitura atenta da obra indica um número considerável de personalidades, totalizando 112 nomes desde reis, rainhas, políticos, filósofos e escritores/escritoras mundo afora, desde a Grécia Antiga até aqueles contemporâneos à autora. Dos filósofos clássicos é possível encontrarmos citações diretas a Platão, Aristóteles, Cícero e Demóstenes, sobretudo quando o tema era referente à educação. Entre os autores mais contemporâneos, há referências a Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Condorcet, Stuart Mill, Byron, Friedrich Schiller, Locke, Tocqueville e William Godwin.
O texto é escrito em terceira pessoa, apenas em alguns momentos a autora deixa sua posição individual transparecer, apontando para uma proposta coletiva experimentada também por outras mulheres com as quais ela dialogava. Francesas como Madame de Stael e George Sand foram tidas como modelos femininos a serem seguidos. Anna Rosa Termacsics dos Santos não foi a única voz em prol de uma ampliação de direitos para as mulheres no Brasil, estando inserida em um círculo que tinha adeptas mundialmente. Dentro da própria imprensa no século XIX, outras mulheres vinham se fazendo presentes e se colocando, ainda que aos poucos, no debate público sobre a emancipação feminina (Ribeiro, 2023). A autora pode ter sido uma das poucas que teve a coragem de publicar uma obra, mas estava longe de ser a única. Nomes como Joana Paula Manso, Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco e Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar são algumas das que lançaram jornais com o debate da emancipação feminina, porém sem tocarem no direito ao voto.
Como uma mulher que afrontou as regras, Anna Rosa Termacsics dos Santos formulou uma paráfrase direta a Jean Jacques Rousseau, autor de Emílio, ao iniciar seu texto. Para a autora, “a mulher nasceu livre, a mulher geme em ferros”, indicando que conhecia a obra do filósofo, Do Contrato Social, onde ele expôs que “o homem nasceu livre e por toda a parte encontra-se sob ferros”. Talvez essa escolha tenha relação com o fato de Anna Rosa querer já deixar indicado o seu conhecimento sobre as discussões que tocavam na negativa dos direitos das mulheres, sobretudo aquelas com uma justificativa biológica e ligada a um construto natural. Para Anna Rosa Termacsics dos Santos a exclusão das mulheres dos espaços públicos se dava unicamente por uma legislação criada pelos homens. As reivindicações centrais presentes ao longo de todo o Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar podem ser resumidas por suas próprias palavras:
A geral questão dos direitos da mulher compreende sua educação literária, científica, artística, seus embaraços industriais, profissionais e comerciais, seus interesses pecuniários civis e políticos; em uma palavra, como indivíduo, nas funções como cidadã, a mulher tem sido condenada por sua delicadeza e organização física à inferioridade da cultura intelectual e moral e à renúncia dos grandes sociais e civis privilégios na relação: era idealmente aniquilada e escravizada em tudo quanto diz respeito a seus direitos pessoais e pecuniários (Santos, 2022, p. 56).
Em suma, Anna Rosa Termacsics pleiteava o exercício de uma cidadania para as mulheres, com plenos direitos em todos os âmbitos sociais. Um dos argumentos colocados era o de que as mulheres pagavam impostos e respondiam judicialmente por seus atos, logo, deveriam também ser vistas como iguais no mercado de trabalho e na política. Ao longo da leitura do texto encontramos indícios de que Anna Rosa Termacsics dos Santos escrevia em um momento em que acreditava na possibilidade de as pautas pelas reivindicações das mulheres chegarem até à Assembleia e serem discutidas pelos parlamentares, como sucedeu na Inglaterra. Para ela, “a ocasião é oportuna; na futura Assembleia ajudai, patrícios, a separar a luz da escuridão; dai sabiamente vossa proteção para determinar estes princípios, deliberar sobre o método e acabar os sucessos desta grande e santa questão” (Santos, 2022, p. 56). Porém, não temos qualquer comprovação de que isso veio a ser mobilizado oficialmente.
Sobre a sua condição de mulher solteira, na segunda seção, a qual ela intitula Funções públicas da mulher, encontramos um sólido argumento contrário ao destino das mulheres ser unicamente o trabalho doméstico. Em um tom irônico, Anna Rosa Termacsics dos Santos enfatiza sua insatisfação com mais essa desigualdade entre homens e mulheres: “as funções domésticas não são bastantes para a mulher: como se o homem não devesse ser mais que marido e pai. Depois que acabam os trabalhos domésticos, resta muito tempo ainda para outras coisas.” (Santos, 2022, p. 57). Ora, por que aos homens eram dadas oportunidades além de serem maridos e pais? Sabemos hoje que a constituição do patriarcado como um sistema de dogmas, crenças e privilégios inerentes aos homens é a explicação para isso (Lerner, 2019), a senhora Termacsics em meados do século XIX também. O problema era que aos homens não era privado nada, mesmo aqueles sem instrução, e esse era um argumento convincente que a autora mobilizava.
Neste país, a mulher não tem direitos políticos, não é cidadã, não pode administrar as leis, como eleger deputados, não pode ter empregos; mas o homem mal procedido, que se embriaga todos os dias, o jogador, todos estes podem votar, mesmo os que não têm caráter nem dinheiro, que vivem em uma posição dependente, que dançam como os outros assoviam: tudo isso não importa, é homem e basta. A mais nobre, a mais virtuosa, a mais instruída mulher não tem voz no Estado: o homem dá-lhe leis, dispõe de sua propriedade, da sua pessoa e de seus filhos: elas devem suportar com toda paciência (Santos, 2022, p. 65).
Anna Rosa Termacsics dos Santos, ainda que tecesse críticas ao trabalho doméstico, não acreditava que ele fosse uma função masculina. Pelo contrário, ela defendia que os labores domésticos deveriam ser desempenhados pelas mulheres, porém, após o término deles, também restaria tempo para outras atividades. O descontentamento com o tratamento das leis e do Estado dado aos homens é expresso em diversas partes do texto, em que era inadmissível para a autora aquele homem pobre e analfabeto ter plenos direitos civis e políticos, enquanto as mulheres mais instruídas e eruditas eram privadas e dependentes.
Ao mesmo tempo em que o texto do Tratado sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar traz características transgressoras para o momento que foi escrito — como o debate sobre voto feminino, acesso as universidades, igualdade matrimonial e profissionalização —, ele igualmente mostra as problemáticas vivenciadas no período, em que a escravidão não pode ser desconsiderada. Anna Rosa Termacsics dos Santos, assim como tantos outros intelectuais da época, deu pouca atenção para a escravidão, especialmente às mulheres escravizadas. Ela apenas a descreveu como uma “mancha imensa para um país que se quer chamar civilizado” (Santos, 2022, p. 67) e utilizou da metáfora de que as mulheres brancas viviam em regime de escravidão, privadas de seus direitos e sem qualquer liberdade de participar das discussões públicas.
A divisão em três classes de mulheres, proposta pela autora, ilustra ainda mais essas contradições raciais do Oitocentos. Para Anna Rosa Termacsics dos Santos as classes seriam: 1) a da última pobreza, que se ocuparia apenas com trabalhos manuais; 2) a das bonecas, que existiam apenas para delícia dos olhos e 3) a das que se assemelhariam a “homens literatos”, estas sim, seriam boas donas de casa e mulheres públicas. Vale evidenciar que os trabalhos materiais eram desempenhados por mulheres escravizadas ou pretas livres que estavam longe de serem inseridas nos direitos pleiteados no Tratado. Para as mulheres negras, as reivindicações centrais eram a de viver sem as amarras da escravidão, poderem ter seus filhos sem serem vendidos, transitarem livremente sem correrem o risco de serem escravizadas novamente, alimentação e moradia dignas.
Em uma sociedade que era toda organizada pela escravidão de pessoas pretas, mulheres brancas como Anna Rosa Termacsics dos Santos normalizavam as práticas de coação e as divisões hierárquicas existentes. O Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar é fruto de sua época, em que os movimentos mais progressistas ainda assim eram condizentes com o modo de produção capitalista com a prevalência da escravidão.
Sabendo das prerrogativas relacionadas ao estranhamento da sociedade com as pautas colocadas, a autora dedicou-se, na terceira e última seção, a convencer seus leitores e suas leitoras. Para a senhora Termacsics, o principal obstáculo a ser enfrentado era o costume, apontando que a época era de novidades quanto à concepção de democracia e de participação popular. Em nenhum lugar do mundo as mulheres tinham o direito a participar da política. O seu conhecimento histórico e filosófico foi mobilizado incessantemente, e citações de exemplos passados eram recorrentes:
O mundo ainda é moço, principia agora a conhecer a sua injustiça. Assim como o absolutismo dos monarcas, o comércio dos escravos, como a nobreza hereditária, o despotismo sacerdotal, podemos admirar que ainda não fosse lembrada a libertação da mulher. (Santos, 2022, pp. 74-75).
O modelo de sociedade burguesa louvado em voga era criticado frente a tantas permanências do passado. As injustiças elencadas apresentam o intuito de inserir a exclusão das mulheres como mais uma dentre várias outras. As palavras finais de Anna Rosa Termacsics dos Santos são certeiras ao afirmar que “existem mulheres que brilham com o seu espírito, como os homens mais inteligentes do universo: só não tiveram a ocasião de exercerem como o homem” (Santos, 2022, p. 82). A sabedoria da escritora é notória do início ao fim. Ela até mesmo se precaveu quanto às críticas que receberia das muitas mulheres contrárias aos direitos ali pleiteados, e encontramos explicações históricas para essa recepção negativa a partir do modelo de socialização por gênero. A autora argumentava que séculos de submissão não poderiam resultar senão em um costume de submissão. Outra questão trata de que, ainda que um grupo de mulheres fosse contrário à emancipação, deviam-se dar oportunidades para aquelas que almejassem uma vida distinta do modelo pregado.
Os últimos parágrafos do Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar reforçam a ambição de Anna Rosa Termacsics dos Santos em clamar para que mais mulheres se juntassem a ela, após a apresentação de uma proposta intelectual coletiva na luta por direitos. Não temos como saber sobre as possíveis aliadas que a publicação alcançou, apenas é possível afirmar que ela incomodou bastante, como mostram algumas críticas publicadas na imprensa periódica. Afinal, falar sobre os direitos das mulheres em meados da década de 1860 no Brasil ainda era uma discussão que estava longe de ser disseminada.
No dia 15 de outubro de 1886 falecia Anna Rosa Termacsics dos Santos no Rio de Janeiro aos 65 anos de idade, em decorrência de problemas pulmonares. A escritora partiu sem ver suas reivindicações serem materializadas, que, apesar das conquistas recentes, ainda estão em curso. O seu nome, as suas ideias e a importância de sua luta para o feminismo permaneceram por mais de 150 anos desconhecidas, como reflexo de uma ciência masculina e hegemônica que marginalizou (e ainda marginaliza) histórias com significados importantes e interpretativos sobre a história de nosso país.
Anna Rosa Termacsics dos Santos pode hoje ser designada com termos que vão muito além de escritora e professora. Ela também foi historiadora, filósofa, militante política e grande conhecedora de línguas. Uma mulher erudita que muito contribuiu para o pensamento intelectual e o feminismo. Não existe até o momento nenhuma outra obra de sua pena descoberta pela pesquisa científica. A única que temos conhecimento — o Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar —, saiu publicada em uma versão inédita pela Edições Câmara em 2022, em que pela primeira vez o nome da autora aparece desvendado na capa, uma forma de valorizar a sua luta que ainda continua a nossa.
Referências Bibliográficas
Fontes
CORREIO MERCANTIL, 1853, Ed. 222, p. 4. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1867, Ed. 158, p. 1. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
JORNAL DO COMMERCIO, 1853, Ed.75, p. 4. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
JORNAL DO COMMERCIO, 1858, Ed. 101, p. 3. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
O FAROL PAULISTANO, 1829, Ed. 260, p. 3. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
O NOVO FAROL PAULISTANO, 1836, Ed. 458, p. 4. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Livros
Lerner, G. (2019). A criação do patriarcado: História da opressão das mulheres pelos homens. Editora Cultrix.
SANTOS, Anna Rosa Termacsics. Tratado Sobre a Emancipação Política da Mulher e Direito de Votar. Brasília: Edições Câmara, 2022. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/40710
Capítulos de livro e coletâneas
Ribeiro, C. de P. (2022). Anna Rosa Termacsics dos Santos. In: Memorial do Memoricídio: escritoras brasileiras esquecidas pela História, vol. 1. (org.) DUARTE, Constância L. Belo Horizonte: Editora Luas.
Artigos em Periódicos
Ribeiro, C. de P. (2022). “O trabalho da mulher é barato pela grande abundância que existe”: intelectuais e professoras na labuta cotidiana de seus ofícios (Rio de Janeiro, século XIX). SAECULUM, v. 27, p. 45-65. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/60193
Ribeiro, C. de P. (2022). “Chegou a hora de na imprensa apresentar-nos”: mulheres e os óbices profissionais no jornalismo, Rio de Janeiro, século XIX. Revista de História, v. 181, p. 1-25. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/194296
Ribeiro, C. de P. (2023). Mulheres jornalistas e as desigualdades de gênero – século XIX, Rio de Janeiro. Revista Maracanan, n. 34, p. 217-241. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/maracanan/article/view/77622
Dissertações e teses
Karawejczyk, M. (2013). As filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à conquista do sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). Tese (doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/72742
Ribeiro, C. de P. (2019). “A vida caseira é a sepultura dos talentos”: gênero e participação política dos escritos de Anna Rosa Termacsics dos Santos (1850-1886). Dissertação (Mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/9807