Juliana de Norwich

Juliana de Norwich

(c. 1342? – c. 1416?)

 

por Fernanda Cardoso Nunes,

professora Adjunta de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Estadual do Ceará) – Lattes

Verbete Juliana de Norwich – PDF

 

Juliana de Norwich – Igreja de Saint Julian – Norwich, UK
Fonte: https://www.catholic.org/saints/saint.php?saint_id=4124

Vida

A obra Revelations of Love [Revelações do Amor Divino] (1395) da mística Juliana de Norwich (Julian of Norwich) constitui o mais antigo texto conhecido de autoria feminina em língua inglesa. Nascida possivelmente na cidade de Norwich, Inglaterra, em aproximadamente 1343 ou 1342, e falecida provavelmente em 1416, a anacoreta relata que teve suas experiências místicas quando jovem. Segundo Michael Alexander, Juliana de Norwich é a primeira grande escritora da prosa inglesa e uma das mais refinadas da Idade Média inglesa (2007, p. 48). Seu estilo demonstra uma autora que devotava grande importância e cuidado em relação ao escrito que produzia.

Juliana de Norwich escreveu em inglês médio (Middle English) e não em latim, a língua oficial dos escritos católicos do século XIV, em seu texto A Revelation of Love (também conhecido por Shewings ou Vision, em sua versão inicial ou curta), cujas traduções em português têm o título de Revelações do Amor Divino, de aproximadamente 1395, apresenta as visões que teve da divindade durante a recuperação de uma séria doença que a teria deixado entre a vida e a morte por “três dias e três noites”.

Em meio a um contexto de sofrimento, Juliana teve uma série de visões a partir do dia 8 de maio de 1373 e logo as transcreveu. Na ânsia de compreender o que acontecia e saber como comunicar todas aquelas revelações aos outros, foi-lhe permitido que vivesse como reclusa, adotando a vida de anacoreta (anchoress), passando a viver numa cela anexa à pequena Igreja de Saint Julian of Le Mans em Norwich, da qual ela adotou seu nome de religiosa, Julian of Norwich, ou simplesmente Dame Julian, como também ficou conhecida.

Se pensarmos em Juliana de Norwich, uma mulher talvez leiga, talvez religiosa, escrevendo em vernáculo em um período de convulsões sociais, políticas e religiosas acerca de uma visão amorosa e feminina de Jesus Cristo, podemos encarar sua situação como, no mínimo, arriscada. Há poucos dados biográficos sobre a vida de Juliana de Norwich. 

Estudiosos discutem se ela entrou para a vida religiosa após ter as visões ou se já seria uma monja pertencente à Ordem beneditina da Carrow Abbey, que se localizava próxima a Norwich. Lembremos que são dessa época a heresia lolarda e suas traduções completas da Bíblia para o inglês médio. Talvez daí o silêncio acerca da obra da anacoreta inglesa durante quase três séculos, visto que seu primeiro editor conhecido, o monge beneditino Serenus Cressy, editou uma cópia do texto em 1623, ou seja, mais de duzentos anos após sua morte.

 

Contexto cultural

Ao lado de Christina de Markyate e Margery Kempe, Juliana de Norwich forma a tríade de místicas medievais inglesas. Lembrando que a English Mystical Tradition (Tradição Mística Inglesa) ainda seria composta pelos místicos: Richard Rolle (1290/1300-c. 1349), o autor de A Nuvem do Não-saber (The Cloud of Unknowing) e Walter Hilton (1340-1396). 

Liam Peter Temple (2016) discute a inclusão de Juliana nesse grupo; prefere colocá-la numa tradição continental mais ampla de experiência mística feminina. Para o estudioso, a obra das místicas inglesas estaria mais próxima de suas companheiras continentais, como Marguerite Porète, Marie de Oignies, Elizabeth da Hungria, Hildegarda de Bingen, Brígida da Suécia, Angela de Foligno, Metchild de Hackeborn, Metchild de Magdeburg, entre outras, do que mesmo dos místicos ingleses supracitados. Foram influenciadas mais por tradições espirituais femininas contemplativas já existentes no restante da Europa. Isso nos remete a uma genealogia de escritos medievais femininos. Juliana de Norwich e sua contemporânea Margery Kempe formaram a “contraparte inglesa” do movimento de produção literária feminina de teor místico que floresceu no medievo europeu. 

Juliana de Norwich apresenta em sua obra uma visão teológica bastante otimista, o que a diferenciou de outros religiosos medievais. Vivendo numa época de pestes (a Peste Negra devastou a Inglaterra várias vezes durante sua vida), guerras (a Revolta dos Camponeses, o início da Guerra dos Cem Anos), o Grande Cisma Católico, a heresia de John Wycliffe e os lolardos, o enfraquecimento dos monastérios, entre outras crises, surpreende a sua visão de que “tudo ficaria bem” (“all shall be well”). Além disso, seus escritos apresentam uma “transcendência dos fatos históricos”, como bem aponta John-Julian (2009, pp. 6-7). Para Juliana, não havia necessidade de lamentar circunstâncias e eventos históricos, pois o que quer que fosse estava dentro da vontade de Deus.

A reclusa da Igreja de St. Julian, portanto, traz uma visão completamente diferente de experiência da divindade e de concepção desta. Embora inserida num contexto adverso, ao manter uma visão otimista do caminho do cristão por um mundo marcado por pestes, fome, guerras e desiludido com o papel da Igreja enquanto consoladora, Juliana de Norwich, por meio das dezesseis visões descritas na obra composta por oitenta e seis capítulos, apresenta uma visão maternal de Deus através da figura de Jesus Cristo.

Podemos pensar na reação do público da poderosa cidade de Norwich, na região de Norfolk, que no final do século XIV era, depois de Londres, a maior cidade inglesa em termos de população total, poderio econômico e religioso. Esse ambiente de grande efervescência cultural e religiosa certamente contribuiu para a formação de Juliana. Talvez tenha tido uma educação beneditina, o que justifica o reconhecido conhecimento teológico presente em sua obra, mesmo que não saibamos se ela foi monja beneditina ou não antes de receber as revelações. Essa presença muito intensa da arte sacra na cidade de Norwich também deve ter impressionado a anacoreta e treinado seu olhar para a contemplação estética, visto que em seu texto as representações do corpo de Cristo, outro tema recorrente em sua narrativa, é bastante plástica e visual. O fato é que, no ano de 1395, ela trouxe a público suas Revelações, texto que até hoje tem a capacidade de impressionar e falar aos leitores atuais. 

 

A obra

Embora se autodenominasse uma “simples criatura iletrada”, Juliana é hoje considerada uma das maiores teólogas da Idade Média. Uma autora cujas visões se inserem, portanto, dentro de toda uma tradição de experiências visionárias por parte de mulheres entre os séculos XI e XV: “Por muito tempo negligenciada fora de um pequeno círculo, Juliana vem sendo estudada com grande entusiasmo nos últimos cem anos tanto por leitores fora da academia, bem como por estudantes e eruditos” (Watson; Jenkins, 2006, p. ix) (Tradução minha). Tal fato pode ser claramente percebido nas várias traduções para o inglês contemporâneo desde o início do século XX, além de estudos acadêmicos, artigos e traduções para outras línguas, como o espanhol e, recentemente, para a língua portuguesa, com duas traduções surgidas no ano de 2018 pelas editoras Vozes e Paulus, e uma terceira, publicada em abril de 2023, que além da tradução do texto longo, contém a versão inédita para o português do texto curto, de autoria do tradutor Marcelo Musa Cavalari, pela Penguin – Companhia das Letras. Temos então três traduções brasileiras da obra da mística inglesa.

A obra de Juliana de Norwich possui duas versões, popularmente chamadas de Texto Curto (Short Text), escrito logo após as visões, e o Texto Longo (Long Text), uma ampliação do primeiro, feita depois de muitos anos de reflexão sobre as revelações. Os manuscritos da obra conhecidos atualmente são o Sloane Manuscript (c. 1650), da British Library, e o Paris Manuscript, da Bibliothèque Nationale (c. 1500), ambos contendo a versão longa; um manuscrito contendo a versão curta, também da British Library (século XV); um do St. Joseph’s College (1650); o dos Westminster Archdiocesan Archives (séculos XV ou XVI); e a primeira versão impressa, o Cressy Text, de 1623, editado pelo já mencionado Serenus Cressy. 

O texto curto, possivelmente uma versão inicial das revelações, está dividido em vinte e cinco partes numeradas em algarismos romanos e data provavelmente do ano de 1380. A data do manuscrito presente na British Library (MS 37790) é de possivelmente 1413, conforme consta na pequena introdução que abre o relato. 

O texto longo contém 16 revelações das visões experienciadas pela mística e trata de algumas questões teológicas do Cristianismo, tais como o problema do mal, da predestinação, da salvação e do inferno. A Paixão de Cristo é revelada em toda a sua intensidade, mas através dela Juliana recebe a certeza da infinita bondade e misericórdia de Deus e do seu amor eterno pela humanidade. Tudo isso é apresentado em forma de ideias teológicas originais. Ela descreve Cristo como nossa “mãe” e também como nosso “irmão”, e descreve Deus com qualidades femininas e masculinas. 

O corpo de Jesus na obra de Juliana de Norwich é apresentado de forma transgressora em relação a como ele é representado na obra de outras místicas contemporâneas suas. Uma das características que nos chama logo a atenção é a questão da maternidade de Jesus Cristo, como já mencionado. Cristo é representado como “oure Moder”, ou seja, “nossa Mãe”, que nos alimenta com o leite que jorra de seu peito (uma referência clara ao momento em que Cristo é crucificado e perfurado por um soldado romano e de cuja ferida jorra seu sangue), numa visão amorosa do sacrifício de Jesus por todos os seus companheiros cristãos:

Mas quando nossas falhas e nossa desgraça nos são apresentadas, ficamos tão assustados e tão envergonhados de nós mesmos que mal sabemos onde nos colocarmos. Por sua vez, nossa mãe amorosa não quer que fujamos, pois nada poderia ser mais indesejável para ele. Ele quer que nos comportemos como uma criança, que quando está chateada ou assustada corre o mais rápido possível para sua mãe.

But oftimes when oure falling and oure wretchedness is shewed us, we be so sore adred and so gretly ashamed of oureselfe that unnethis we we with wher that we may holde us. But then wille not oure curtesse moder that we flee away, for him were nothing lother, but he will than that we use use the condition of a childe. For when it is dissesed and adred, it runneth hastely to the moder (Norwich apud Watson; Jenkins, 2006, p. 317).

 

O diabo se faz presente no final das visões de Juliana e causa-lhe uma dor considerável, mas é finalmente vencido pelo poder do amor de Deus na Paixão de Cristo, sublinhando a crença central da autora de que não importa os sofrimentos que sofremos nesta vida, Deus irá “fazer todas as coisas bem” no final.

Alguns estudiosos levantam a possibilidade de que Juliana teria se casado muito jovem e tido dois filhos. Teria perdido seu marido e filhos para a peste negra e, ficando sozinha, poderia ter se dedicado à contemplação, vindo a ter as dezesseis visões. Tudo isso são hipóteses, mas é interessante citarmos aqui e não fecharmos as interpretações. Como temos poucas fontes sobre a vida dela, apenas os manuscritos das versões curta e longa, a referência no livro de Margery Kempe e algumas menções em testamentos, ainda há um longo caminho a se percorrer para se construir a imagem de quem realmente foi Juliana, a mística de Norwich.

Sua obra é permeada por uma teologia de cunho acolhedor, na qual o pecado original é visto como benção original, contendo uma espiritualidade não dualista, onde se percebe a importância da sensualidade humana. Como assinalado por Matthew Fox (2020, p. 15), para Juliana de Norwich, o corpo e a alma formam uma “gloriosa união”. Daí sua valorização da sensualidade humana, pois que é por meio dela que se recebe os dons divinos. No capítulo LVIII da obra, temos a maternidade como um dos aspectos da Trindade: “Eu contemplei a obra de toda a Santíssima Trindade. Nessa contemplação, eu vi e entendi estas três propriedades: a propriedade da paternidade, a propriedade da maternidade e a propriedade do senhorio, em um Deus” (Norwich, 2018, p. 182). Mais adiante, no mesmo capítulo, ela vê a Segunda Pessoa da Trindade, Jesus Cristo, como “Mãe, Irmão e Salvador”. Para Juliana, Jesus é nossa Mãe, que “[…] age na misericórdia para todas as suas crianças que são, para ela, submissas e obedientes” (Norwich, 2018, p. 183).

Mais uma vez temos aí o vocabulário referente à maternidade, no que se exige do filho obediência e submissão, visto que essa “Mãe” é misericordiosa: “E assim nossa Mãe está trabalhando para nós de diversas maneiras e nela nossas partes se mantém inseparáveis” (Norwich, 2018, p. 182).

De acordo com Fox (2020, p. 16), Juliana atribui assim a maternidade a Deus, à trindade, a Jesus Cristo e à Igreja. Para a anacoreta, a maternidade reflete o lado compassivo e de “terno amor” de Deus. O trabalho da maternidade inclui dar à luz, com toda a dor e luta que o parto sempre envolve. A dor, o risco e a coragem fazem parte do lado maternal da divindade. A própria criação é a atividade materna primordial do Criador.

A imagem de Maria, que recebe em seu ventre Jesus Cristo, é evocada logo nos capítulos iniciais de sua obra. Ela é considerada “nossa Mãe”, pois que é “nela que estamos todos encerrados, e é dela que nascemos em Cristo (pois como ela é a Mãe do nosso Salvador é a Mãe de todos aqueles que serão salvos em nosso Salvador) (and out of her we are born in Christ (for she is Mother of our Savior is Mother of all who shall be saved within our Savior).” (John-Julian, 2009, p. 277). Assim, segundo Juliana, a experiência de maternidade é a experiência de se estar “encerrado” no útero divino. A sacralidade de Maria percorre toda a obra. Como observa Flores, Juliana estaria ligada à doutrina do Cristotokos, a qual assevera que “Maria é genitora da humanidade ou natureza sensível de Jesus, mas é Cristo, nossa verdadeira Mãe, que em sua Paixão, o trabalho de parto, pare a nova humanidade redimida” (2013, p. 80) (Grifos do autor).

O aparecimento de textos que se utilizaram da imagem maternal de Jesus após a época patrística data do século XII, nas obras de vários autores: os monges cistercienses Bernardo de Claraval, Aelred de Rievaulx, Adam de Perseigne e Helinand de Froidmont; William de St. Thierry; e o beneditino Anselmo da Cantuária (Santo Anselmo). Assim, a humanidade de Cristo é descrita em imagens que retratam a corporeidade feminina, principalmente a corporeidade da mãe.

As imagens femininas do “ventre”, do “útero”, apresentadas na obra, conferem certo cunho de experiência pessoal da autora enquanto mulher e mãe:

Pois, ao mesmo tempo que Deus se uniu a nosso corpo, no útero da Virgem, assumiu nossa alma sensível. E ao assumi-la, fazendo-nos todos inclusos nele, uniu-a à nossa substância. Nessa união, ele foi o homem perfeito, pois Cristo unindo-se a cada homem que será salvo, é o homem perfeito (Norwich, 2018, p. 178).

 

Não podemos esquecer que este é um relato de uma vivência pessoal com o sagrado. Como podemos perceber, essa experiência muitas vezes encontra dificuldades, em termos de linguagem, para ser descrita. 

Outro tema recorrente em sua obra é a concepção de um Deus amoroso, compassivo, e não um Deus cheio de ira e ódio para com seus filhos, pois, para ela, o pecado era algo visto como um passo para o aprendizado e para a fé. Ela vê Deus como amigável, familiar, cortês e incapaz de se enraivecer com seus fiéis. Uma concepção feminina de Deus, o que por si só já constituía uma transgressão dentro da tradição de representações da divindade nos textos literários medievais. Podemos dizer que a profundidade com a qual a autora trabalha essas metáforas não encontra paralelos na tradição mística anterior. Trata-se de algo realmente inovador, ao pensarmos no contexto histórico no qual ela está inserida, assolado pela peste, guerras e fome. Uma mulher ousando falar de Jesus Cristo como uma mãe extremamente amorosa e misericordiosa com seus filhos traz, no mínimo, uma imagem consoladora e esperançosa.

E Juliana de Norwich apresenta isso de forma pungente ao relatar suas visões de um Deus consolador e que ao mesmo tempo se apresenta como uma “cortês Mãe”:

 

Então, nossa cortês Mãe não deseja que fujamos, pois ela nada odiaria mais do que isso; mas deseja que exerçamos nossa condição de criança, pois quando a criança está machucada ou apavorada, corre apressadamente para a mãe, ou pede ajuda com toda a sua força. Então, Jesus deseja que façamos como uma dócil criança, dizendo assim: “Minha querida Mãe, minha Mãe tão cheia de graça, minha honrada Mãe, tem misericórdia de mim: fui tolo e não sou como tu és, e não consigo, nem posso, fazer nada senão com tua ajuda e graça.” E mesmo se não nos sentimos aliviados com isso, estamos certos de que Jesus usa sua condição de Mãe sábia (Norwich, 2018, p. 193) (Grifos meus).

 

Notamos, na passagem acima, a própria atribuição da mãe como sendo cortês e amável para com seus filhos. De uma “Mãe” que acolhe seus filhos sem distinção e que deles cuida com todo o amor que só uma mãe é verdadeiramente capaz de dar. Essa relação entre a maternidade e o discurso místico de autoria feminina se torna uma marca da obra juliana.

É interessante notarmos na obra o uso do pronome “him” (“ele”) em vez de “her” (“ela”), como seria de esperar, por conta da concordância, visto que a autora se refere a Jesus como “mãe”, mas não altera o gênero da palavra no texto. Trata-se, claramente, de uma representação feminina, maternal e acolhedora de Cristo que é descrito pela mística de Norwich através de uma imagem feminina e de suas características, e é precisamente nesse ponto que aparece o interesse dos estudos de gênero no texto de Juliana de Norwich: no que ele traz para um âmbito feminino uma imagem tradicionalmente concebida como masculina. 

Assim, compreendemos que os relatos místicos de Juliana de Norwich sugerem uma reformulação de conceitos teológicos, no sentido de que o seu tratamento dado a Imago Dei proporciona um novo olhar sobre a divindade, tradicionalmente masculinizada e punitiva, agora revelada em seus atributos femininos. Dessa forma, não só a Paternidade de Deus será valorizada mas teremos também, lado a lado, a visão da Maternidade de Deus com todas as suas peculiaridades e, assim, a ênfase na importância da experiência religiosa feminina:

E assim vi que Deus se alegra por ser nosso Pai, se alegra por ser nossa Mãe e se alegra por ser nosso próprio Esposo e nossa alma a sua amada esposa. Cristo se alegra por ser nosso Irmão e se alegra por ser nosso Salvador. E essas são cinco grandes alegrias, como entendo, que ele deseja que desfrutemos, louvando-o, dando-lhe graças, amando-o e abençoando-o eternamente (Norwich, 2018, p. 159).

 

Voltando ao possível cotidiano de Juliana, sabe-se que ela viveu na pequena cela e dedicava-se à oração, à meditação e aos estudos, e era constantemente visitada por homens e mulheres de todas as idades e classes sociais em busca de aconselhamento espiritual, dentre eles sua conterrânea Margery Kempe, fato que será narrado no capítulo 18 de seu livro:

E então ela foi ordenada por Nosso Senhor para ir até uma anacoreta na mesma cidade que se chamava Dama Juliana. E assim ela fez, e contou a ela sobre a graça que Deus colocou em sua alma, a compunção, contrição, doçura e devoção, a compaixão com santa meditação e alta contemplação, e muitos discursos sagrados e conversas que Nosso Senhor falou à sua alma e também muitas revelações maravilhosas, que ela descreveu à anacoreta para descobrir se havia algum engano nelas, pois ela era especialista em tais coisas e poderia dar bons conselhos.

And then she was commanded by our Lord to go to an anchoress in the same city who was called Dame Julian. And so she did, and told her about the grace, that God had put into her soul, compunction, contrition, sweetness and devotion, compassion with holy meditation and high contemplation, and very many holy speeches and converse that our Lord spoke to her soul, and also many wonderful revelations, which she described to the anchoress to find out if there were any deception in them, for she was expert in such things and could give good advice (Kempe, 2004, p. 77) (Tradução minha).

 

Notemos que Margery Kempe considerava Juliana uma “especialista” em questões espirituais e em dar bons conselhos. Essa passagem do livro de Margery Kempe é um dos poucos registros da vida de Juliana de Norwich fora de sua própria obra. Mas o que podemos constatar é que, como afirmado anteriormente, Juliana era considerada uma referência e uma autoridade espiritual na Inglaterra de seu tempo.

O apreço de seus contemporâneos era notável. Vale observar na citação acima que Juliana tinha o direito, como anacoreta, de possuir uma serviçal e, caso desejasse, um gato, visto que se tratava da época da peste negra, que era transmitida por ratos. Não é à toa que na iconografia referente à Juliana de Norwich, ela muitas vezes retratava-se acariciando um gato. Há também a referência aí ao cemitério da Igreja de St. Julian. Não custa lembrar que na época muitas igrejas tinham cemitérios ao seu redor. E falando sobre cemitérios, é interessante trazer aqui a questão do próprio ritual de reclusão de uma anacoreta que se assemelhava a uma liturgia fúnebre, incluindo missa de réquiem e demais exéquias. Não podemos esquecer que essas mulheres reclusas se tornavam como que mortas para o mundo externo, e nos Evangelhos se defende o conceito de que a verdadeira vida surge após a morte. 

A obra de Juliana de Norwich e o pouco que conhecemos acerca de sua vida, mas que se nos afigura fascinante, tem atraído estudiosas e estudiosos. Não podemos esquecer que se trata de uma autora mística escrevendo em vernáculo sobre suas experiências, o que pode esclarecer bastante acerca do lugar de onde essa mulher se constrói como produtora de sentidos, num texto literário que rompe com paradigmas conferidos aos textos produzidos por mulheres na Idade Média. Daí a importância do estudo da obra da mística de Norwich, haja vista o seu pioneirismo na literatura de autoria feminina e no pensamento religioso em língua inglesa.

 

Referências Bibliográficas

 

Bibliografia Primária

 

Baker, D. N. (2005). (Ed.). The Showings of Julian of Norwich. (A Norton Critical Edition). New York: W.W. Norton & Company. 

 

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Norwich, J. de. (2018). Revelações do Amor Divino. Tradução de Marcelo Masson Maroldi. São Paulo: Paulus. (Coleção Clássicos do Cristianismo).

 

Norwich, J. de. (2018). Revelações do Amor Divino. Tradução de Maria Eizabeth Hallak Nielsen. Petrópolis: Vozes. (Série Clássicos da Espiritualidade).

Norwich, J. de. (2023). Revelações sobre o amor divino. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras.

Windeatt, B. (2015). (Trad.). Revelations of Divine Love. Oxford: Oxford University Press.

Windeatt, B. (2004). (Ed.). The Book of Margery Kempe. Annoted Edition. Cambridge: D. S. Brewer.

 

Bibliografia Secundária

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Temple, L. P. (2016). Returning the English “Mystics” to their Medieval Milieu: Julian of Norwich, Margery Kempe and Bridget of Sweden. Women’s Writing, 23:2, p. 141-158.

Watson, N.; Jenkins, J. (2006). (Ed.). The writings of Julian of Norwich: A vision showed to a devout woman and a revelation of love. Pennsylvania: The Pennsylvania University Press.