Sarah Chapone
(1699-1764)
por Mariana Dias Pinheiro Santos,
Doutoranda em filosofia na Universidade Federal do Paraná,
bolsista CAPES, pesquisadora do ideal de polidez das luzes britânicas.
Lattes: https://lattes.cnpq.br/3437175302339422
![[https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1920-1211-381possível retrato de Sarah Chapone]](https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/wp-content/uploads/sites/178/2025/03/unnamed-500x553.png)
Sarah Chapone, nascida Kirkham em 11 de novembro de 1699, em Stanton, no condado Cotswolds de Gloucestershire (sudeste da Inglaterra), segunda dos nove filhos de Damaris e Lionel Kirham, foi criada em um ambiente rural, rodeada de livros. Boa parte de sua instrução, início de laços comunitários com outras mulheres e aparato crítico, muito se deveu à sua inserção na rede clerical que, como bem nota Orr (2016), foi essencial não apenas para a filósofa, mas, também, para a criação posterior dos vínculos que possibilitaram a existência das Bluestocking — clube este que sua nora, a filósofa Hester Chapone (1727-1801), autora de Letters on the Improvement of the Mind [Cartas sobre o aperfeiçoamento da mente] (1775), foi membro.
Em 1735 Chapone escreveu e publicou anonimamente sua obra mais famosa: The hardships of the English laws in relation to wives [As dificuldades das leis inglesas em relação às esposas]. Dedicada ao rei George II (1683-1760) e às leis da Inglaterra, nela Chapone atenta para o fato de que a situação de “súdito livre” é restrita somente ao sexo masculino, e, alternativamente, as mulheres casadas eram colocadas em uma situação de escravidão. Por meio de exemplos extraídos de julgamentos que ocorreram em seu século, a filósofa atenta que os gentlemen eram sempre inocentados pelos juízes, independente dos tratamentos brutais que desferissem contra as suas esposas, mesmo que isso ocasionasse o suicídio da parte delas (isso, segundo a autora, como uma tentativa de libertação da situação de escravidão).
Inspirada principalmente por Mary Astell (1666-1731) em Reflexions Upon Marriage [Reflexões sobre o Casamento], Chapone se permite dar um passo além. Se Astell, em 1700, notava a tirania masculina como injusta e buscava elaborar meios para que as mulheres escapassem de suas violências, Chapone evidenciou como essa tirania é fruto das imperfeitas leis civis que, se não alteradas, aparentemente, colocariam a existência das mulheres como que em um Estado de Natureza. Trata-se de uma petição que acompanha o raciocínio de Astell sobre a tirania masculina para, com isso, inovar profundamente na história humana (Broad, 2015): reivindicar, legalmente, a existência e a liberdade civil para as mulheres.
Para construir sua argumentação sobre o problema que mais lhe incomodava — isto é, a capacidade dos homens de suprimir a individualidade e liberdade feminina —, Chapone não apenas se aproveita da visão de Astell sobre a relação entre masculinidade e tirania que existia no casamento, mas, também, recupera as noções de liberdade e poder paterno e materno visíveis no Leviatã de Thomas Hobbes (1588-1679).
A partir de Hobbes (ainda que a filósofa se aproxime com bastante ressalvas deste autor), Chapone destaca que a única razão para que os homens possuam mais poder social que as mulheres se deve ao fato de que as sociedades naturais eram sobretudo patriarcais, mas isso não constitui uma necessidade, visto que mães poderiam ser matriarcas. Conforme a autora, “supondo que estivéssemos num Estado de Natureza, isto, e muitas outras coisas que ele [Hobbes] diz, são (creio eu) incontestavelmente verdadeiras” (1735, p. 57) [são minhas todas as traduções de textos citados originalmente em inglês]. Além desses elementos, a autora também parece rememorar o objetivo do Estado, a identidade dos súditos, as características do estado de natureza, bem como a relação entre obediência e liberdade presente no Leviatã (cf. Santos, 2025, no prelo), além de fazer uso de outros dois autores menos conhecidos: o clérigo Patrick Delany (1686-1768) e William Wollaston (1659-1724).
Assim como outras filósofas de seu século, como Mary Astell, Mary Delarivier Manley (1663-1724), ou Mary Wollstonecraft (1759-1797), Chapone também defende que a capacidade intelectual feminina não é diferente da masculina, sendo apenas artificialmente alijada por conta de leis e da educação que impedem a formação das mulheres. Como Astell já havia observado, as mulheres possuem uma alma assim como os homens, argumento que Chapone rememora para seguir sua petição de igualdade direcionada às leis britânicas.
O esforço peticionário de Sarah Chapone, além disso, pode ser visto como uma espécie de mediação entre Astell e Wollstonecraft. Por um lado, a autora é profundamente influenciada pela visão que a primeira tinha a respeito dos costumes e do lugar social das mulheres e, por outro lado, antecipa parte das reivindicações que se pode encontrar na obra de 1792 da segunda (como é o caso da necessidade de uma educação mais equânime entre os sexos).
Em 1725, a filósofa casou-se com o vigário John Chapone (falecido em 1759), com quem aparentemente mantinha uma relação bastante diferenciada daquelas que geralmente outras mulheres poderiam encontrar com cavalheiros. Em seu Hardships a autora revela sua experiência como contrastante em relação às outras mulheres que inspiraram sua petição: “graças a Deus, tenho um marido que me deixa viver e me dá permissão para ser alguém e dizer às outras pessoas o que penso que elas são” (Chapone, 1735, p. 51). No entanto, seu desejo era que todas pudessem ser alguém não porque o marido permitiria, mas porque a lei assim deveria reconhecer.
A filósofa teve cinco filhos, dos quais apenas quatro sobreviveram, sendo considerada uma mãe extremamente dedicada. Além de administrar uma escola clerical com seu marido, assumir o papel de mãe e esposa, a filósofa era lembrada por seus amigos, como Mary Delany (1700-1788), por ter uma “compreensão extraordinária, [bem como] a imaginação [e] a disposição humana vivas” (Orr, 2016), e por Samuel Richardson (1689-1761) por ser uma verdadeira defensora de seu sexo (Broad, 2015). A filósofa encontrou liberdade não apenas para formar um círculo de gentileza no qual incentivava seus amigos a lerem Mary Astell, mas também para reivindicar à rainha Carolina (1683-1737) — consorte de George II —, com sucesso, uma pensão para Mary Pandarves, que se encontrava completamente desamparada (Orr, 2016).
Atualmente são creditadas apenas duas obras a Sarah Chapone, a já comentada The hardships of the english laws in relation to wives de 1735, e Remarks on Mrs. Muilman’s Letter to the Right Honourable The Earl of Chesterfield [Observações sobre a carta da Sra. Muilman ao Honorável Conde de Chesterfield] de 1750. Aquelas que se dedicaram a interpretar a autora — Bárbara J. Todd (1998), Jacqueline Broad (2015), Clarissa Campbell Orr (2016) e Susan Paterson Glover (2018) — destacam a correspondência que trocou com Richardson na década de 1750 como um importante elemento de seu pensamento. A filósofa também colaborou para a publicação de Memoirs of several ladies of Great Britain [Memórias de várias senhoras da Grã-Bretanha] (1752) de George Bellard (1706-1755). Fez isso conseguindo aprovação pública e discutindo com seu amigo quais mulheres comporiam essa celebração dos escritos, pensamentos, aprendizados e distinções nas artes e nas ciências promovidas pelo sexo feminino.
Ainda que a filósofa tenha escrito pouco, não se deve esquecer as circunstâncias materiais que lhe eram impostas. Para lembrar Ruth Perry (1980), as mulheres frequentemente tinham sua vida interrompida em função da fertilidade: o sucesso que Mary Manley, Mary Astell, Aphra Behn (1640-1689) e Eliza Haywood (1693-1756) desfrutaram com a escrita se deveu, em parte, à abnegação da maternidade. Ainda conforme a intérprete, uma vez casadas, as mulheres despendiam todo o tempo de suas vidas gerando filhos, na metade dos casos sobrevivendo às gestações, educando-os e lidando com abortos espontâneos e “dadas estas condições de vida, é impossível imaginar uma mulher fértil vivendo ao mesmo tempo como ser intelectual e sexual” (Perry, 1980, p. 36). Mas Chapone enfrentou tais dificuldades e exigiu igualdade e liberdade legal para o seu sexo.
Sarah Chapone faleceu em 24 de fevereiro de 1764, no mesmo condado que nasceu e viveu, e suas petições, segundo Todd (1998), foram encontrar reparação somente em 1973, ano em que a Inglaterra revogou a absolvição da identidade das esposas por parte dos maridos, e elas puderam usar suas capacidades, controlar suas propriedades e serem livres, como a filósofa desejava 238 anos antes.
The hardships of the English laws in relation to wives
presume[-se] o privilégio dos súditos nascidos livres da Inglaterra de se aproximarem do seu soberano, representarem as suas queixas e humildemente implorarem reparação.
Esperamos que este inestimável privilégio não se limite apenas à linhagem masculina, mas que nós, os fiéis súditos femininos de Sua Majestade, possamos também abrigar-nos sob a sua mais graciosa proteção, sendo a nossa condição a mais deplorável de todas as outras nos seus domínios, pois somos as menos capazes de nos ajudarmos a nós próprias e as mais expostas à opressão.
Isto é certamente verdade, em todos os estados de vida, mas em nenhum tão notoriamente, e sem qualquer reparação, como quando […] tornarmo-nos esposas, sob cujo carácter nos dirigimos humildemente a Sua Majestade mais sagrada, e às honrosas câmaras do parlamento, para uma alteração ou revogação de algumas leis, que, como concebemos, nos colocam numa condição pior do que a própria escravatura. (Chapone, 1735, p. 2, grifos meus)
Trata-se da primeira vez que, na história da humanidade (Broad, 2015), uma mulher reivindicava legalmente para si a identidade de súdito. Com essa exigência, Chapone atesta que os cavalheiros — usualmente considerados protetores das damas ao menos desde o século XIII com a política da cavalaria (conf. Trigg, 2012; Peltonen, 2003; Santos, 2023) — não cumpriam seu objetivo em relação às mulheres, e se aproveita disso para exigir uma identidade para as pessoas de seu sexo. Esse movimento, visto nas primeiras linhas da principal obra da filósofa, além de negar a identidade de propriedade do sujeito masculino, quebrava (para os leitores da era da polidez) a ilusão da galanteria predominante no século XVIII.
Profundamente influenciada por Astell, que já havia tomado os cavalheiros como tiranos, ensinando às damas, em Reflexions Upon Marriage, uma série de princípios que deveriam ser levados em conta para não se tornar uma esposa-escrava, é Chapone que rouba para si a identidade de “súdito” e exige não modos para evitar a tirania masculina, mas a garantia jurídica para que mulheres jamais possam ser feitas vítimas novamente. Há uma exigência de proteção que, para a filósofa, é inegociável: que exista proteção de forma equânime entre todos os súditos de um reino.
Esse roubo de identidade de súdito, para si e para as pessoas de seu sexo, não poderia ser bem-visto à época, afinal, a considerada propriedade masculina agora se manifestava e qualquer envolvimento político das mulheres não era visto com bons olhos. Chapone era uma aberração, e para lembrar Joseph Addison (1672-1719) no número 81 do Spectator [Espectador] — um dos periódicos formadores do XVIII —, o envolvimento com a política por parte das damas servia apenas “privar o belo sexo daqueles encantos peculiares com os quais a natureza as dotou” (2004, nº 81).
Ainda que a violência, a raiva e o mau comportamento não tivessem lugar para o mundo idealizado pela polidez, e pelos bons modos idealizados pelo cavalheirismo dezoitista, simultaneamente existia uma tensão em que era considerado comum, pelos membros da sociedade, que os maridos pudessem corrigir fisicamente suas mulheres (Hunt, 1992). A disputa que começa em meados do século XVI, com a cortesia, e toma mais força na idealização polida é que, ainda que os homens fossem (supostamente) superiores em força física e racional, a primeira deveria ser utilizada apenas quando não houvesse escolha (conf. Hunt, 1992; Foyster 1996 e 2002; Todd, 1998).
Desse modo, Chapone, ao iniciar sua petição filosófica com um pedido de proteção, e ao descrever inúmeros casos de violência física e verbal de cavalheiros contra as mulheres — que vão de roubos das finanças das esposas à alimentação precária com pão mofado e enclausuramento forçado —, evidenciava que a política da gentileza não era tão gentil assim com as pessoas do sexo feminino.
Conforme Hunt (1998) e Foyster (1996) esse comportamento violento era popularmente atribuído às classes pobres e trabalhadoras dada a suposta rudeza de seus modos, mas os casos judiciais da época, os relatos que corriam entre os círculos polidos e a obra de Chapone deixavam bastante claro que a violência não se resumia a tais classes. A barbaridade atribuída aos povos não polidos era, na verdade, uma parte presente na comunidade que vivia com a polidez. Sendo assim, o motivo da petição da autora — isto é, a opressão sofrida pelas mulheres — era, em si mesmo, uma afronta aos valores estabelecidos em sua época e não causa espanto que seu escrito tenha sido mal-recebido pela república das letras.
Existe uma segunda afronta, que se liga imediatamente com esta primeira, presente ainda nas primeiras linhas do Hardships. Tratava-se de impor para si o direito de publicar, visto que era (e aí está sua reivindicação mais notável) uma súdita livre. Desde ao menos Cícero, autor muito honrado e celebrado pelas Luzes, há uma concepção de que “cabe ao Estado ou cidade fazer com que cada um conserve livremente, e sem inquietações, o que é seu” (1999, p. 119) e, à época, concebia-se que as esposas pertenciam ao marido. Elas eram a propriedade que os cavalheiros adquiriam dos pais delas, assim como adquiriam tudo que pertencesse às damas e respondiam legalmente por seus crimes civis.
Diversas interpretações [conf. Hunt (1992); Foyster (1996 e 2002); Todd (1998); Santos (2023); Green (2014)] deixam claro que essa consideração — de que as mulheres eram uma propriedade paterna transmitida para maridos — era filosófica e social. Elas eram, objetivamente, propriedade dos homens e, como destaca Chapone, poderiam pagar com sua vida por isso. Conforme um dos vários relatos que a filósofa articula para provar que os homens tinham liberdade para tratar mulheres como escravas (e não como súditas), ela destaca um caso em que um marido
confinou a sua mulher durante alguns anos num sótão, sem fogo, sem roupa adequada, ou qualquer dos confortos da vida; que ele a tinha frequentemente chicoteado a cavalo; que os seus sofrimentos eram tão grandes e intoleráveis, que ela destruiu a sua miserável vida atirando-se pela janela. Mas como havia pão no quarto, que, apesar de duro e bolorento, se supunha ser suficiente para sustentar a vida; e como não se pensava que ele próprio a tivesse empurrado pela janela, foi absolvido, e a queixa dos seus sofrimentos serviu apenas para instruir os maridos sobre a extensão total do seu poder despótico. (Chapone, 1735, p. 9)
Este tipo de tratamento desferido contra as mulheres não era incomum na modernidade [conf. Hunt (1992); Foyster (1996 e 2002)], no entanto, se no século XVII os agressores violentavam suas esposas, jogavam-lhe objetos, cegavam-nas e abusavam delas diante de criados com a justificativa — socialmente aceita — de corrigir seus comportamentos, no XVIII a ação que Chapone destaca dos maridos é uma violência de enclausuramento.
Conforme o exemplo acima, a mulher é aprisionada e abandonada em estado de miséria, de forma a não ter acesso às mínimas comodidades dignas de um súdito livre. A filósofa observa não só que ao marido é dado um poder mais aflitivo do que o da vida e da morte, mas que a tirania parece ser legalizada se o sujeito do abuso for uma pessoa do sexo feminino. Ela destaca, desse modo, que os homens acabam sendo instituídos de tanto poder que, mesmo criando todas as condições para a morte de uma súdita, são inocentados apenas por ter alimentado uma cativa de pão mofado.
O relato de Chapone, ao lado das interpretações já comentadas, deixa claro que se tratava de estratégias de correção comuns na instituição doméstica, visto que maridos (como o retratado acima) eram inocentados mesmo diante da morte de suas esposas. Era justificável, à época, aplicar correções físicas (como as descritas acima) às mulheres que supostamente não respeitassem a ordem da casa e a ordem social. Esse suposto desrespeito cometido por uma pessoa do sexo feminino, vale mencionar, não era apenas como a escrita desafiadora de Chapone, afinal, a dignidade da leitura e da escrita ainda era muito restrita às mulheres do XVIII. Era considerado um mau comportamento feminino, por exemplo, colocar muita manteiga em um pudim, o que supostamente poderia justificar a correção física masculina, jogando-lhe um banquinho na face ou abusando fisicamente dela na frente de seus criados (conf. Foyster, 1996).
Em suma, como destaca Hunt (1992), a identidade da mulher era absorvida pelo domínio masculino e, ainda que, como nota Foyster (2002), os casos judiciais iniciados pela parte feminina começassem a receber maior aprovação e cuidado legal no XVIII, por vezes se identificando com o discurso polido de cuidado e domínio apenas racional, isso não impediu que a violência contra mulheres continuasse ocorrendo, sendo justificável e normalizada na política dezoitista. Os casos descritos por Chapone em Hardships atestam isso e, ao mesmo tempo, reivindicam reparação legal contra tais abusos de poder.
Com representações de casos como esses, a filósofa defende que as esposas “não têm propriedade, nem em sua própria pessoa, nem em seus filhos, nem em sua fortuna” (Chapone, 1735, p. 5), de modo que não estariam sendo reconhecidas como súditas.
Esses elementos ajudam a clarificar as tensões e brigas que Chapone comprava apenas com os três primeiros parágrafos de seu texto: em primeiro lugar, ela tomava para seu sexo a identidade não de propriedade, mas de súdito; em segundo, apontava como essa parte do povo sofria opressão; e, em terceiro lugar, culpabiliza o aparato legal como salvaguarda da opressão do (agora) súdito feminino. Não à toa a filósofa agradece a Deus por ter um marido que permite que ela seja alguém, pois, como já comentado, a identidade feminina era juridicamente absorvida pelo marido [conf. Todd (1998) e Orr (2016)], de modo que a filósofa, de fato, necessitava desta permissão. É ao estabelecer para seu sexo a identidade de súdito que Chapone garante a exigência de reparação e igualdade, ao mesmo tempo em que destaca que o tratamento legal era definido a partir do sexo de uma pessoa.
Consequentemente, Chapone observa o tipo de dano psicológico que os maridos podem promover contra suas esposas — ao lado da educação precária que os homens impõem às mulheres — como parte das causas de elas terem mentes supostamente mais frágeis. A confusão da mente, nota a autora, “naturalmente surge após maus tratos por parte daqueles em quem muito confiamos ou amamos” (Chapone, 1735, p. 12), criando, assim, circunstâncias para a autodestruição como uma espécie de libertação da desgraça presente. Posto isso, Chapone inverte, de forma especulativa, o sexo do agressor e se pergunta se a reação legal e social seria a mesma. Se uma esposa fosse capaz de “encontrar meios para confinar seu marido em sua própria casa”, impedindo “qualquer tentativa de sua libertação”, a indignação e ressentimento dos homens seria causada apenas pela “insolente suposição!” (Chapone, 1735, p. 12). Ainda que possa ser acusada de usurpação do poder masculino, Chapone apela para o papel da equidade quando faz essa comparação,
Não posso deixar de pensar que é uma excelente regra supormo-nos capazes de receber o tratamento que damos aos outros, e depois refletir sobre os ressentimentos que proporcionamos. Faze a todos os homens como gostarias que te fizessem a ti, é um preceito universal dado a ambos os sexos, e a todas as condições, desde o príncipe no trono até ao trabalhador que cava nas minas. (Chapone, 1735, p. 12-3)
A falta do princípio de equidade entre os súditos, e a garantia legal para que isso se preservasse, era o problema que Chapone pretendia reparar com sua petição. Afinal, de um lado, homens eram absolvidos por criar circunstâncias que desorientam as esposas para que causassem a própria morte. De outro, a mera suposição de inverter os sexos da situação de cativeiro é uma afronta e seria imperdoável diante das leis da Inglaterra. Para a filósofa, o tratamento de súditos livres, distribuído igualmente entre os sexos, seria capaz de reverter tais abusos.
É digno de nota que Chapone considerava a isenção de punições civis para mulheres um problema social grave que colaborava para a supressão da identidade delas como súditas. Conforme a filósofa, essa decisão legal “nunca foi concebida como um privilégio para as esposas, […] mas é uma armadilha e tentação para elas, para obedecer ao comando de um marido” (Chapone, 1735, p. 26-7). Isso porque isentar um sujeito de responder legalmente por seus atos é o mesmo que privá-lo de ser um súdito livre. Se um indivíduo era tratado como incapaz de responder por seus próprios atos, a consequência é que não poderia ser empoderado de livre agência social.
Despojar um homem de toda a propriedade, e depois isentá-lo de uma prisão em consequência das suas dívidas, é exatamente um privilégio na sua capacidade civil, tal como seria na sua capacidade natural, despojá-lo de todo o prazer, e em troca decretar que ele não deveria sentir dor. Tal como essa isenção de prazer e dor o privaria, de fato, de ser um homem, assim também o fato de o despojar de toda a propriedade, com essa isenção de pagamento de dívidas, é, de fato, privá-lo de ser um membro da sociedade civil.
Tal como um homem escolheria manter os seus prazeres naturais, e correr o risco de dores naturais, assim ele escolheria manter os seus direitos civis, e correr o risco de inconveniências civis.
Até que se verifique que não se trata de casos paralelos, creio poder concluir que a isenção de dívidas não é uma recompensa pela alienação de bens. (Chapone, 1735, p. 42)
A desobrigação legal feminina garantia a inexistência moral, espiritual, intelectual (Todd, 1998) das mulheres. Se elas eram liberadas de responder às leis, em última instância eram igualmente destituídas da identidade de súdito e do desfrute de toda e qualquer liberdade social vivida pela “linhagem masculina”. Por isso, Sarah Chapone reivindica que “os fiéis súditos femininos de Sua Majestade” também pudessem se abrigar “sob a sua mais graciosa proteção” (Chapone, 1735, p. 2), e não mais vivessem como escravas do poder tirânico dos cavalheiros. Algo que só poderia ser conquistado a partir do momento que as mulheres fossem consideradas súditas livres.
Ao fim e ao cabo, Sarah Chapone reivindicou, pela primeira vez e através de uma petição filosófica, a existência legal para mulheres na sociedade civil.
Recepção e contexto
Em novembro de 1736, no sexto volume Gentleman’s Magazine [Revista do Cavalheiro], um cavalheiro anônimo manifestou seu horror e sentimento de injustiça diante do escrito que Chapone publicou anonimamente. Denominando-a de “Proteu feminino” por considerar que a isenção às leis e às penas inglesas para as mulheres, no lugar de um favor “é um insulto” (1736, p. 649), o cavalheiro anônimo indigna-se. Afinal, na Turquia, diz ele, as mulheres poderiam ser mortas pelo marido, enquanto na Inglaterra uma senhora reclama por ser dispensada da obediência e das penalidades das leis civis. “Piedade de mim!”, exclama o cavalheiro. Para ele, antes de se exigir (supostamente) tanto e tão injustamente, era preciso que a senhora autora reconhecesse que não vivia na barbaridade de nações não polidas, mas no paraíso das mulheres.
Além desse reconhecimento, de algo tomado como bastante básico e verdadeiro para o detrator de Chapone, o fundamento adequado para uma exigência tão “inadequada” quanto esta deveria decorrer da igualdade de mérito entre os sexos. Rapidamente concluindo que essa igualdade é inexistente, o cavalheiro que escreveu para a Gentleman’s Magazine defende-se da seguinte maneira do que considera injustiças cometidas contra a honra de sexo:
Que as mulheres, como se pede, cheguem a esse paralelo de virtude e espírito público, e então que reivindiquem honras iguais, e nós o permitiremos de bom grado. Quando a história inglesa nos fornecer um exemplo de sacrifício de uma vaidade feminina para o bem público; se as nossas mulheres abandonarem os seus ornamentos à exigência do Estado […] quando a paz pública e a paz privada forem a sua primeira ambição. (1736, p. 650)
A opinião de que o estatuto da mulher, nas luzes britânicas, era superior ao fornecido pelas nações vizinhas, pelas nações do outro lado do Atlântico ou pelos antigos não é novidade. Próximo ao fim do século da polidez, em 1778, Lorde Kames (Henry Home) (1696-1782) já havia notado que o estágio de barbaridade que fora imposto às mulheres quando viviam em um estado incivilizado é diferente do estado de quase igualdade “existente” na era das luzes. Conforme este autor, “Um grau de grosseria e indelicadeza está ligado a maneiras rudes. As maneiras dos gregos […] eram extremamente grosseiras; como se pode esperar de um povo que vive entre seus escravos, sem qualquer sociedade com mulheres virtuosas” (2007, p. 374), o que os inclinava a tratar suas mulheres como escravas. Barbaridade e injustiça esta que mesmo David Hume (1711-1776) já havia observado 20 anos antes no ensaio Poligamia e Divórcios, lembrando que “Noutros países em que a poligamia também é permitida, alijam-se as mulheres, inutilizando-lhes os pés a fim de confiná-las às próprias moradias” (2011, p. 151).
Ao longo do século XVIII o artifício de apontar para outras nações, ou para o passado, para notar como elas eram bárbaras em relação às mulheres, e como isso era um estigma de barbaridade que não se aplicava às luzes britânicas, foi não apenas vastamente aplicado, mas também utilizado para corroborar a opinião de que estavam em um estágio civilizatório superior (cf. Santos, 2023).
A reação do cavalheiro que publicou na Gentleman’s Magazine, portanto, se insere nesse cenário, mas, sobretudo, foi desencadeada pela primeira obra de Sarah Chapone comentada anteriormente, na qual, como observado, esse suposto estado de benevolência e justiça era contestado. Na obra de 1735, a filósofa, com suas diversas representações de violências contra as mulheres, trazia o estigma de barbaridade (atribuído à Turquia ou aos gregos) para o seio da civilidade polida, o que certamente causou uma recepção bastante violenta, como visto acima. O véu de silêncio era questionado e, para a autora, era impossível conciliar as leis sob as quais vivia “com os direitos e privilégios de um povo livre” (Chapone, 1735, p. 47), dado que seu sexo era tratado com tamanha tirania.
Para além do aparato filosófico mobilizado por Chapone, como a partir de Astell, Hobbes, Wollaston, e Delany, como observa Todd (1998), ela foi capaz de identificar aspectos repressivos da lei conjugal com mais detalhe do que qualquer outra escritora, e seu esforço evidencia as dificuldades para se informar de seu estatuto e lutar, legalmente, contra a situação que manifestamente se impunha a seu sexo. O escrito dessa filósofa foi, ademais, um protesto solitário — enquanto uma petição filosófica direcionada ao rei e ao parlamento — contra as leis do casamento por muito tempo (Greenberg apud Broad, 2015), capaz de destacar desigualdades jurídicas (Orr, 2016).
O argumento proposto por Sarah Chapone, de que as mulheres, quando se casavam, poderiam ser transformadas em escravas de seus maridos, ainda que incomum, não era inteiramente estranho ao século das luzes. Periódicos como Magna Britannia [Magna Britânia], em 1718, já haviam notado que as mulheres eram colocadas na situação de posse de seus maridos, e grandes filósofos, como Bernard Mandeville (1670-1733), em sua moral prática para mulheres The Virgin Unmask’d [A Virgem Desmascarada] (1709), já havia afirmado que o estado de casamento era um estado de escravidão criado pelos homens para o sexo feminino. No entanto, se em Magna Britannia ou no escrito de Mandeville não existe qualquer repreensão dessa desigualdade artificial, sendo afirmado, muito pelo contrário, que a condição das inglesas “é de fato a melhor do mundo, pois tal é a boa natureza dos ingleses para com as suas esposas, tal é a ternura e o respeito, dando-lhes o primeiro lugar à mesa, que elas são, geralmente falando, as mulheres mais felizes do mundo” (1718, p. 176-7), Chapone envereda-se por uma linha bastante diferente, como observado na seção anterior.
A autora de Hardships, ao identificar a escravização de mulheres pelo poder tirânico dos homens, reivindica a liberdade das mulheres, especialmente das esposas, exigindo os direitos de: ir e vir, posses, terras, cuidado dos próprios filhos, finanças e, sobretudo, de um julgamento legal equânime para ambos os sexos (para maior aprofundamento sobre o tema da igualdade entre os sexos no XVIII, conferir Santos, 2023).
Para além do que foi abordado ao longo deste verbete, Chapone pode ser vista como uma das autoras do feminismo cristão, enquanto boa parte de suas reivindicações partem da ideia de que a situação de escravatura das mulheres decorre da quebra dos “nobres princípios do cristianismo (que são a nossa única proteção)” (Chapone, 1735, p. 2). A filósofa também promoveu reflexões a respeito: da extensão do poder materno; das razões que levaram as mulheres à servidão diante dos homens; da natureza feminina; da educação feminina e suas implicações. Além disso, Chapone propõe uma refinada comparação entre as leis sob as quais as mulheres eram sujeitas em antes das revoluções de 1649 e 1689 e as perdas que ocorreram diante de tais mudanças (Todd, 1998).
Até 1985, a autoria do Hardships sempre foi um mistério, e a responsável por questionar esse suposto estado de felicidade que nascia do elo entre submissão e o falso cuidado não foi conhecida. Ao mesmo tempo, essa autora apagada subsistia marcando interpretações como as de Hunt (1992), que buscaram apresentar o cenário de crueldade contra mulheres na era das luzes, bem como as reações femininas à política da polidez. Foi somente com os esforços de Ruth Perry (Glover, 2018) que Sarah Chapone foi descoberta, e em 2018, que seus escritos foram reunidos e divulgados com alguma amplitude.
* Partes do presente verbete foram adaptadas a partir de meu artigo Sarah Chapone e a primeira reivindicação de identidade civil para mulheres, com publicação prevista para o primeiro semestre de 2025 na revista Kalagatos.
Obras
CHAPONE, S. (1735) The hardships of the English laws in relation to wives with an explanation of the original curse of subjection passed upon the Woman. Em: https://en.wikisource.org/wiki/The_Hardships_of_the_English_Laws_in_Relation_to_Wives ou https://archive.org/details/bim_eighteenth-century_the-hardships-of-the-eng_chapone-sarah_1735_0/mode/2up
CHAPONE, S. (1750) Remarks on Mrs. Muilman’s Letter to the Right Honourable the Earl of Chesterfield. in a Letter to Mrs. Muilman. Editora: William Owen.
CHAPONE, S. (1735) The Hardships of the English Laws in Relation to Wives. Editado por Susan Paterson Glover incluindo parte de sua correspondência e a Remarks, editora: Routledge, 2018.
Literatura secundária
BROAD, J. “A Great Championess for Her Sex”: Sarah Chapone on Liberty As Nondomination and Self-Mastery. The Monist, v. 98, n. 1, p. 77-88, 2015.
GENTLEMAN’S MAGAZINE, 1736, disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.hw294j&seq=33
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