Flora Tristán

Flora Tristan 

(1803-1844)

 

Luna Ribeiro Campos,

professora de Sociologia no Centro Federal de Educação

Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) – Lattes

 

Retrato de Flora Tristan, por Jules Laure, 1847
Fonte: wikimedia.org – Link.

Flora Tristan – PDF

Flora Tristan (Flore Celestine Therèse Henriette Tristán y Moscoso) nasceu em Paris, em 7 de abril de 1803, e morreu em Bordeaux, em 14 de novembro de 1844, aos 41 anos. Era filha de Anne-Pierre Laisnay, francesa, e de Mariano de Tristán y Moscoso, peruano, coronel do exército espanhol e membro de uma família rica e influente de Arequipa, no Peru. A união do casal, realizada de maneira clandestina no norte da Espanha, deixou a família desamparada quando Mariano morreu, em 1807. Sem direito aos bens e à herança, Anne-Pierre foi morar com os filhos no campo, nos arredores de Paris, vivendo em condições financeiras bem modestas.

Flora Tristan não frequentou nenhum tipo de instituição escolar e, provavelmente, aprendeu a ler e escrever com a mãe. O resto de sua educação se deu de forma autodidata. Ao voltar a morar em Paris, ela trabalhou como operária em uma litografia no ateliê do pintor André Chazal, com quem se casou aos 17 anos. A relação com o marido, descrito como um homem a quem “não podia amar nem estimar” (Tristan, 2004, p. 50), foi conturbada e o casal se separou logo depois, quando Tristan estava na terceira gravidez. Apenas duas crianças sobreviveram. Após a separação, abandonou o nome do marido e assumiu o sobrenome paterno. Nos anos seguintes, deixou os filhos aos cuidados de sua mãe e trabalhou como dama de companhia para uma família inglesa, viajando pela França, Inglaterra, Itália e Suíça (Gordon; Cross 1996). 

A primeira biografia de fôlego de Tristan tentou reconstruir os detalhes de sua trajetória entre 1826-1834, porém há pouca informação disponível sobre esse período (Puech, 1925, p. 18). Assim, a relação com os filhos e com a mãe, ou a confirmação dos trabalhos que realizou no período, seguem objeto de especulação. Ficaram marcados, no entanto, os constrangimentos que sofreu por ser uma mulher separada. Ela relatou ter vivido “tudo o que uma mulher está condenada a sofrer quando se separa do marido em meio a uma sociedade que […] conservou velhos preconceitos contra as mulheres depois de haver abolido o divórcio e tornado quase impossível a separação de corpos” (Tristan, 2000, p. 45).

Na trajetória de Flora Tristan, as viagens foram uma prática constante, fonte de experiências e inspiração para reflexões. Ao completar 30 anos, Tristan fez a viagem considerada por muitos intérpretes como a mais significativa de sua trajetória: ela foi ao Peru, decidida a reivindicar sua herança e o reconhecimento de sua filiação paterna. Além disso, a viagem era uma maneira de fugir das perseguições do marido. Tristan partiu para o Peru em abril de 1833. Apresentando-se como solteira, única mulher a bordo do navio, ela embarcou sozinha em uma travessia que durou cerca de cinco meses. Sua filha, Aline, ficou em uma pensão em Angoûleme; o filho, Ernest, estava aos cuidados do pai. 

A negação do reconhecimento familiar exerceu um grande impacto em sua trajetória, tanto pelas consequências financeiras, como pela frustração do desejo de ter uma família que a amparasse. Da família paterna, Tristan conseguiu apenas uma pequena pensão anual, que lhe permitiu se dedicar à escrita, mas por um curto período, visto que seu tio cancelou este apoio financeiro após Tristan expor sua avareza em seu primeiro livro. O retorno dessa viagem marca o início do ativismo político e da vida literária de Flora Tristan. 

Imbuída nos debates sobre reforma social, publicou, em 1835, o opúsculo Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères [Necessidade de acolher bem as mulheres estrangeiras], em que aborda a condição das mulheres estrangeiras que transitavam sozinhas pelas grandes cidades. Em 1837, organizou as notas e memórias da viagem ao Peru e publicou Peregrinações de uma pária, um misto de autobiografia, relato de viagem e manifesto político. No mesmo ano, enviou à Câmara dos Deputados uma petição pelo restabelecimento do divórcio. 

Suas narrativas de viagem a localizam como um dos primeiros exemplos de mulheres que viajaram pela América Hispânica e adquiriram notoriedade com seus relatos (Pratt, 1999). Em 1838, publicou seu único romance, Méphis, e enviou outra petição reivindicando a abolição da pena de morte. O ano de 1838 também ficou marcado pela tentativa de feminicídio sofrida por Flora Tristan. Seu marido tentou matá-la com dois tiros à queima roupa após a publicação de Peregrinações de uma pária. Neste livro, a autora expôs seu desprezo por Chazal e relatou uma situação amorosa com o capitão do navio que a levou ao Peru. Ela sobreviveu ao atentado, mas ficou com duas balas alojadas no peito, o que deixou sua saúde frágil. 

Com as viagens à Inglaterra, reuniu material para o livro Promenades dans Londres [Passeios em Londres], publicado em 1840. Nessa obra, o olhar da autora se voltou para as condições de vida e de trabalho do proletariado inglês. Ela documentou suas visitas a fábricas, prisões, hospícios, escolas, orfanatos, casas de prostituição e bairros proletários. 

Em 1843, publicou o livro Union Ouvrière [União Operária]. Nele é possível observar uma reflexão mais sistemática sobre o proletariado, a partir do entrelaçamento das opressões de classe e gênero. Ao analisar a formação da classe trabalhadora, Tristan dedicou um capítulo à situação das mulheres. Para atingir seu público-alvo, operários e operárias, empreendeu uma longa viagem por 22 províncias francesas, organizando sessões de leitura e apresentando suas ideias. O diário mantido durante esse período foi publicado apenas em 1973, sob o título Le Tour de France – état actuel de la classe ouvrière sous l’aspect moral, intellectuel, matériel [Tour pela França. Estado atual da classe operária sob o aspecto moral, intelectual e material]. Em 1844, adoeceu durante a passagem por Bordeaux, onde faleceu, aos 41 anos.

Remontando sua trajetória, os primeiros diálogos intelectuais e políticos se deram a partir da aproximação, no início dos anos 1830, dos círculos socialistas construídos em torno de figuras como Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858). Esses intelectuais, que ficaram conhecidos como socialistas utópicos a partir da definição de Friedrich Engels (1980), tinham visões progressistas em relação à participação das mulheres na sociedade e no mundo do trabalho, o que levou muitas delas a se envolverem com essas correntes teóricas (Cross, 1988). 

Na primeira metade do século XIX, houve uma profusão de obras utópicas. Para Conxa Carmona (2020, p. 24), o que foi chamado de “socialismo utópico” configura a primeira resposta da filosofia aos efeitos nocivos da Revolução Industrial — a produção de miséria, fome e a exploração do trabalho de maneira completamente nova. Segundo a autora, essas construções teóricas tinham em comum “os dois elementos característicos da utopia: a rejeição da realidade existente e o desejo e desenho de uma nova realidade, imaginada e pensada como melhor” (Carmona, 2020, p.27). A crítica ética ao sistema social da época denunciava a imoralidade de poucos se beneficiarem da riqueza produzida pelos trabalhadores, rejeitando a ideologia liberal que justificava os abusos da propriedade privada. 

O pensamento de Flora Tristan foi fortemente influenciado pelas ideias saint-simonianas, embora ela nunca tenha aderido formalmente à doutrina. Desde os primeiros escritos de Flora Tristan é notável a presença de elementos das teorias de Saint-Simon, como a centralidade do princípio associativo, a solidariedade, a fraternidade e o internacionalismo. As feministas saint-simonianas também foram uma fonte importante na construção do pensamento da autora, ao se oporem à violência e ao terror associado à revolução, adotando uma abordagem mais romântica, que priorizava a moralidade, os sentimentos e as emoções (Moses, 1984).

As mulheres foram uma força considerável no início do socialismo, e sua presença indica que, no socialismo anterior a Marx e Engels, havia uma relação estreita entre ideias socialistas e a reivindicação de um novo status social para as mulheres. De Charles Fourier, Tristan incorporou a ideia de que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é a medida natural pela qual se mede a emancipação geral. Também teve grande impacto em seus escritos a proposta de criação dos falanstérios, o modelo de sociedade perfeita idealizado por Fourier baseado na criação de pequenas comunidades cooperativas.

De Owen, incorporou principalmente as ideias sobre reforma educacional. No pensamento do reformador inglês, a educação assumia um lugar central na formação do caráter humano, por isso as teorias acerca da educação infantil, baseada em atos mútuos de benevolência e bondade, constituem o cerne de seu pensamento. 

 Para Flora Tristan, Saint-Simon, Fourier e Owen chegaram, por caminhos distintos, à mesma conclusão: “o trabalho por associação é o único que pode proteger os homens da opressão e da fome e resgatá-los dos vícios e dos crimes que dão origem à organização e às lutas internas das nossas sociedades” (Tristan, 1978, p. 318).

Diferentemente dos primeiros socialistas ou de Marx e Engels, Flora Tristan não estava preocupada em construir um grande sistema de ideias, de pensar em comunidades perfeitas ou de desenvolver o socialismo como uma teoria. Seus esforços se direcionavam para uma ação prática, para promover a transformação social de maneira gradual e concreta, de modo a mudar a posição que a classe operária ocupava na nação e a correlação de forças frente à capacidade de criar leis e exigir direitos. Para Carmona, o pensamento de Flora Tristan se aproximava da abordagem de uma filosofia social de caráter pragmático, “baseada mais na observação e no conhecimento direto dos problemas do que no entusiasmo imaginativo” (Carmona, 2020, p. 28). 

 

Principais temas

 

Durante a primeira metade do século XIX, havia duas questões de primeira ordem na sociedade francesa: de um lado, como equacionar os desdobramentos da Revolução de 1789-1799 em termos institucionais e políticos; de outro, como lidar com a assim chamada “questão social” que resultava da industrialização em curso no continente. Não era dado, no entanto, até que ponto as duas questões podiam ser conciliadas, isto é, se a linguagem de direitos individuais, do constitucionalismo e da unidade nacional era capaz de oferecer respostas satisfatórias ao crescente pauperismo e ao conflito industrial.

A posição das mulheres na França pós-revolucionária era delicada. A emancipação feminina fora pautada nos anos 1790 por intelectuais como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, mas a conquista dos direitos civis foi parcial e efêmera. O direito ao divórcio havia sido estabelecido na França em 1792, mas foi abolido após a Restauração, em 1816, só voltando a figurar plenamente na legislação francesa no final do século XIX. O Código Civil de 1804 contribuiu para retardar a emancipação feminina, e a dependência das esposas frente aos maridos foi vista por muitas mulheres como uma forma de escravidão (Offen, 2007).

Nos anos 1820 e 1830, a reivindicação da autonomia das mulheres para o divórcio foi tema de diversas petições públicas e campanhas de imprensa, lideradas por feministas saint-simonianas com as quais Flora Tristan travou interlocução direta, como Pauline Roland (González, 2009). A trajetória de Tristan é decisivamente marcada pelo estatuto civil de dependência a que foram submetidas as mulheres francesas, consideradas incapazes para a posse e gestão da propriedade, para a participação política e para o livre trânsito nos espaços públicos. 

A emancipação das mulheres e da classe trabalhadora constitui o eixo principal da obra de Flora Tristan. Por um lado, sua obra se valeu das vivências que a levaram a se definir como pária, marcada pela condição de filha bastarda, pobre e mulher separada. Por outro lado, como socialista, expressou algumas preocupações de sua geração, como o otimismo com a mudança social através da cooperação entre as classes e com a possibilidade de superar o egoísmo e a miséria com humanitarismo e compaixão (Grogan, 1998; Cross, 1988). 

Em Peregrinações de uma pária, destacam-se a defesa do divórcio e da liberdade feminina. Tristan percebeu que a permanência e legitimidade das relações de opressão e submissão, seja da mulher no casamento, seja da pessoa escravizada, têm base institucional, jurídica e ideológica. Assim, para transformá-las, seria necessário mudar as condições institucionais e legais que as sustentavam (Cross, 1988). Vem daí os esforços de toda uma geração de mulheres para restabelecer o direito ao divórcio, dentro de um quadro mais amplo de demanda de direitos. 

A trajetória pessoal, as experiências de viagem e o contato com as ideias socialistas formaram o arcabouço das questões desenvolvidas por Flora Tristan em Passeios em Londres (1840) e União Operária (1843). União Operária, livro de caráter militante, condensa os principais esforços de Flora Tristan para demonstrar como aspectos de classe e gênero se articulam e constituem-se mutuamente. Uma das principais contribuições desta obra é a reflexão sobre a situação das mulheres no interior da família da classe trabalhadora, apresentada no terceiro capítulo, intitulado “Por que eu menciono as mulheres”.

Segundo Tristan, as narrativas históricas elaboradas no âmbito da religião, das leis e da ciência funcionaram para afirmar o falso princípio da inferioridade da mulher, resultando que o padre, o legislador e o filósofo a tratassem “como uma verdadeira pária”, colocada “fora da igreja, fora da lei e fora da sociedade” (Tristan, 1986, p. 185). Esses pressupostos levaram ao entendimento de que as mulheres não precisavam ser educadas, destinando-as à tutela e à autoridade do homem, seu mestre:

 

Acreditando que à mulher, por sua organização, faltava força, inteligência e capacidade e que era imprópria para trabalhos sérios e úteis, se conclui logicamente que seria perda de tempo lhe proporcionar uma educação racional, sólida, severa, capaz de fazer dela um membro útil para a sociedade. Então ela é educada para ser uma bonequinha boazinha e uma escrava destinada a distrair seu mestre e o servir […] (Tristan, 1986, p. 191).

 

A educação feminina era vista como um elemento que beneficiaria a sociedade como um todo. Flora Tristan desenvolveu o argumento que a escritora inglesa Mary Wollstonecraft defendeu quase 50 anos antes no livro Reivindicação dos direitos das mulheres (1792): um feminismo de igualdade com os homens e que acreditava no potencial civilizatório da educação feminina para uma reforma moral da sociedade (Grogan, 1998). E ela acrescenta: para uma melhora na condição da classe trabalhadora. 

Tristan defendia que a instrução das mulheres do povo era a chave para a melhora material, moral e intelectual da classe operária, uma vez que elas eram as responsáveis tanto pela educação das crianças, quanto pela organização doméstica da vida do operário. 

Na vida dos operários a mulher é tudo. Ela é a única providência. Se ela lhe falta, lhe falta tudo […] No entanto, que educação, que instrução, que direção, que desenvolvimento moral ou físico recebe a mulher do povo? Nenhum. (Tristan,1986, p.193)

 

A autora sustentava que a emancipação dos operários só seria possível quando as mulheres saíssem do estado de embrutecimento ao qual estavam sujeitas. Em “Por que eu menciono as mulheres”, Tristan se dedicou a convencer não apenas os homens, mas também as mulheres operárias da necessidade de se instruírem. A autora fez uma longa digressão sobre os problemas enfrentados pela família proletária que poderiam ser contornados, ou mesmo solucionados, se a relação conjugal fosse mais igualitária, e as mulheres e meninas não desempenhassem um papel servil no interior da família.

As condições precárias de vida e trabalho das classes operárias, somadas à situação de inferioridade legal, jurídica e moral das mulheres, dificultaria a construção de uma relação saudável no âmbito doméstico. Ao reconhecer a igualdade de direitos para as mulheres, elas não seriam mais vistas como servas do lar ou concorrentes no trabalho, e passariam a ser companheiras na vida cotidiana e aliadas nos projetos de transformação social. Caberia, assim, aos operários, “que são as vítimas da desigualdade de fato e da injustiça […] estabelecer enfim sobre a terra o reino da justiça e da igualdade absoluta entre a mulher e o homem” (Tristan, 1986, p. 211).

 

Operários, vocês não têm o poder de revogar antigas leis e fazer novas — não, sem dúvida — mas vocês têm o poder de protestar contra a iniquidade e o absurdo das leis que entravam o progresso da humanidade e fazem vocês sofrerem, particularmente vocês. Vocês podem, é até mesmo um dever sagrado, protestar energicamente em pensamentos, palavras, escritos contra todas as leis que oprimem a vocês. Então, compreendam bem que: a lei que submete a mulher e a priva de instrução oprime a vocês, homens proletários (Tristan 1986, pp. 209-210).

 

A proposta de Flora Tristan para tirar a classe trabalhadora da miséria, do isolamento e da ignorância passa pela compreensão de que homens e mulheres são agentes históricos parceiros da mudança social. Ao mencionar as mulheres no processo de formação da classe trabalhadora, e incluí-las ao nível da linguagem — operárias, todas — a autora antecipa debates sociológicos ainda hoje não superados.

Abordar a questão operária a partir do princípio da igualdade de gênero transforma a definição da classe operária, permitindo o reconhecimento e a valorização de formas de trabalho que vão além do trabalho fabril e das ocupações predominantemente masculinas. Ao incluir as mulheres no discurso, Tristan reafirma a existência e a dignidade da mulher trabalhadora, desafiando visões homogêneas da classe trabalhadora e destacando a invisibilidade do trabalho doméstico.

 

Críticas recebidas e atualidade da obra 

 

Após um longo período de esquecimento, a vida e a obra de Flora Tristan receberam interesse renovado no século XX. O primeiro grande estudo sobre a autora apareceu em 1925, com a biografia feita pelo socialista francês Jules Puech. Com acesso a documentação inédita, Puech desempenhou um papel central na preservação da memória de Tristan ao organizar o que sobrou de seus arquivos, além de ter se tornado fonte histórica obrigatória para quaisquer informações sobre a autora. Posteriormente, na década de 1970, o engajamento de Flora Tristan pelos direitos das mulheres foi resgatado pelos movimentos feministas, e seu nome passou a instigar de peças de teatro a trabalhos acadêmicos, além de nomear ruas, praças e centros de acolhimentos para mulheres.

Alguns trabalhos críticos sobre seus escritos, como as edições comentadas de Promenades dans Londres e Union Ouvrière foram publicados no final dos anos 1970 e 1980, assim como as primeiras traduções. A publicação inédita do diário de Tristan, Le Tour de France [Tour pela França], saiu em 1973. O opúsculo Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères [Necessidade de acolher bem as mulheres estrangeiras] e o romance Méphis foram reeditados, pela primeira vez, em 1988 e 1995, respectivamente.

Desde então, o interesse na vida e na obra de Flora Tristan tem sido relativamente constante. Ela tem sido recuperada como uma figura significativa na história do feminismo e do socialismo, sendo reconhecida como uma das precursoras desses movimentos.

No Brasil, ainda que o movimento de reabilitação da obra de Flora Tristan tenha reverberado, a ausência de traduções dificultou a divulgação de seus livros. Isso se reflete no pequeno número de trabalhos dedicados à autora no país, seja na forma de artigos, livros, dissertações ou teses. O primeiro livro de que tenho conhecimento sobre Tristan no Brasil foi publicado por Leandro Konder em 1994, uma pequena biografia intitulada Flora Tristan – uma vida de mulher, uma paixão socialista. Todas as suas referências bibliográficas são francófonas. A primeira tradução brasileira só apareceu em 2000, com o livro Peregrinações de uma pária, através da extinta Editora Mulheres, responsável pela popularização de diversas obras de autoria feminina. Em 2015, a Fundação Perseu Abramo traduziu e publicou União Operária, cuja versão digital e gratuita facilitou bastante seu alcance.

Segundo Cross (2020), a memória de Tristan foi mobilizada em diferentes momentos históricos, conforme as ondas de militância do século XX. Seu reconhecimento como feminista e socialista de primeira hora é atribuído aos seus escritos sobre a interdependência da emancipação das mulheres e da classe operária. 

As pesquisas sobre a obra de Flora Tristan e sua presença nos movimentos de reivindicação social do século XIX, geralmente enfatizam uma ou ambas as dimensões de sua atuação política. Nas últimas décadas, além dos trabalhos que abordaram os diálogos entre socialismo e feminismo em sua trajetória (González, 2009; Cross, 1988), é possível destacar os que a situam nas origens do feminismo francês (Gordon; Cross, 1996; Moses, 1984) e os que realçam sua faceta de viajante latino americana (Miseres, 2017). 

Nas leituras contemporâneas sobre a obra de Flora Tristan, transparecem críticas ao eurocentrismo e ao racismo presentes em seus relatos de viagem. Mary Louise Pratt (1992) chamou atenção para a recorrência de estereótipos pejorativos na descrição dos hábitos, higiene, roupas e dieta de seus personagens africanos e americanos. Como muitos de seus contemporâneos, Tristan estava imbuída de uma visão evolucionista do desenvolvimento das sociedades humanas, ainda que condenasse todos os tipos de opressão e fosse abolicionista.

Susan Grogan (1998) salientou as incursões de Tristan nas ciências sociais. Segundo a autora, Tristan delineou pela primeira vez sua metodologia como cientista social em seu estudo sobre a sociedade peruana. Ela se valeu de alguns métodos próprios às ciências sociais, como a observação participante, o registro de dados matemáticos e estatísticos e a citação de outros pesquisadores do tema. Essa metodologia foi aprimorada no estudo da sociedade inglesa, descrito por Bédarida (1978) como uma “etnografia militante”. 

Com todos os seus limites e possibilidades, as ideias de Flora Tristan seguem potentes e constituem uma referência viva para as lutas contemporâneas que promovem a igualdade de gênero.

 

Referências Bibliográficas

 

Obras de Flora Tristan

Tristan, F. (1835 [1988]). Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères. Paris: Chez Delaunay, Palais-Royal; Édition présentée et commentée par Denys Cuche, postface de Stéphane Michaud. Paris: L’Harmattan.

______. (1838 [2004]). Pérégrinations d’une Paria. Paris: Arthus Bertrand, Libraire-Éditeur; Préface, notes et dossier par Stéphane Michaud. Arles: Actes Sud.

______. (1838). Méphis ou le proletáire. s.e.

______. (1840 [1978]). Promenades dans Londres, ou l’aristocratie et les prolétaries anglais. Paris: H.L. Delloye, éditeur; Londres: W. Jeffs, libraire; Édition établie et commentée par François Bédarida. Paris: François Maspero.

______. (1843 [1986]). Union Ouvrière. Édition populaire. Paris: Prévot et Rouanet libraire; Édition préparée par Daniel Armogathe et Jacques Grandjonc. Paris: Éditions des Femmes.

______. (1846). L’Émancipation de la femme, ou le Testament de la paria. Ouvrage posthume de Mme Flora Tristan, complété d’après ses notes et publié par A. Constant. Paris: Imprimerie d’A. René et C. 

______. (1973). Le Tour de France – état actuel de la classe ouvrière sous l’aspect moral – intellectuel – matériel. Journal inédit 1843-1844. Préface de Michel Collinet. Notes de Jules L. Puech. Paris: Éditions de la Tête de Feuilles. 

______. (2003). La Paria et Son Rêve. Correspondance établie par Stéphane Michaud. Préface de Mario Vargas Llosa. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle.

 

Traduções disponíveis

Tristan, F. Necessidade de acolher bem as mulheres estrangeiras. (Vogt, L. V. C. & Campos, L. R. Tradutoras). (2021). Plural, 28(2), 159-180. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2021.185958

______. (2000). Peregrinações de uma pária. Florianópolis: Editora Mulheres.

______. (2015). União Operária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.

https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/Uniao-Oper%C3%A1ria-web.pdf

 

Literatura secundária

Carmona, C. L. (2020). Flora Tristán, una filósofa social. Barcelona: Edicions de la Universitat de Barcelona. (E-book versão PDF). Recuperado de: https://www.edicions.ub.edu/ficha.aspx?cod=11529. Acesso em: 30/03/2024

 

Cross, M. F. (1988). The relationship between feminism and socialism in the life and work of Flora Tristan (1803-1844). Tese (Doutorado). University of New Castle Upon Tyne, Reino Unido.

 

Cross, M. F. (2020). In the footsteps of Flora Tristan. A political biography. Liverpool: Liverpool University Press.

 

Engels, F. (1980). Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Editora Graal.

González, M. M. I. (2009). Flora Tristán y la tradición del Feminismo Socialista. Tese (Doutorado). Universidad Carlos III, Madri.

Gordon, F., Cross, M. F. (1996). Early french feminisms, 1830-1840: a passion for liberty. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Limited.

 

Grogan, S. (1998). Flora Tristan: Life Stories. London: Routledge.

 

Miseres, V. (2017). Mujeres en tránsito: Viaje, identidad y escritura en Sudamérica (1830-1910). North Carolina: University of North Carolina Press. 

 

Moses, C. G. (1984). French feminism in the Nineteenth Century. Albany: State University of N.Y Press.

 

Offen, K. (2007). How (and Why) the Analogy of Marriage with Slavery Provided the Springboard for Women’s Rights Demands in France, 1640–1848. In: Sklar; Stewart (orgs). Women’s rights and transatlantic antislavery in the era of emancipation. New Haven: Yale University Press, pp. 57- 82.

 

Pratt, M. L. (1992). Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. London: Routledge.

 

Puech, J. L. (1925). La vie et l’oeuvre de Flora Tristan. Paris: Marcel Rivière.

 

Saint-Simon, C. H. (1821). Du système industriel. Paris. https://gpthome69.files.wordpress.com/2020/05/saint-simon_systeme-industriel_1821.pdf (acesso em 27/02/2024)

 

Outros materiais e fontes

Seminário temático da ANPOCS – Pioneiras da Teoria Social

https://www.youtube.com/watch?v=YtPeGAgPT7c&pp=ygUNZmxvcmEgdHJpc3Rhbg%3D%3D

 

TV Boitempo 

Flora Tristan, feminismo e classe – Prof. Maria Lygia Quartim de Moraes

https://www.youtube.com/watch?v=Pz4Fspz3FE&pp=ygUNZmxvcmEgdHJpc3Rhbg%3D%3D