Marie Olympe de Gouges
(1748 – 1793)
por Roberta Soromenho Nicolete, professora do
departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Lattes
Marie Olympe de Gouges foi nome inscrito nos capítulos mais sombrios da Revolução Francesa. Nascida em 07 de maio de 1748, em Montauban, e batizada Marie Gouze, a escolha pela troca do nome, inserindo algo de celestial nele, Olympe [Olímpia], não soa gesto trivial. Filha dita ilegítima do marquês de Pompignan, Marie Gouze se torna mãe e viúva aos 18 anos e abandona a vida provinciana no Sul da França, passando a assinar o nome que ela mesma se deu: Marie Olympe de Gouges. Não se trata apenas de um deslocamento rumo à capital, centro dos discursos, vozerio e barulho que ritmaram a queda do Antigo Regime, mas de uma experiência de ascensão social; de dedicação à sua grande paixão, o teatro; de intervenção na vida pública e de debate com homens que protagonizavam a Revolução; de defender obstinadamente os direitos das mulheres, o divórcio; de denúncia da condição de pessoas negras escravizadas nas colônias. As obras completas de Olympe de Gouges reúnem peças (encenadas e censuradas) para o teatro, panfletos, cartas, prefácios, projetos políticos de socorro às mulheres mais pobres, declarações, textos de opinião. A despeito da profusão de sua escrita e de ser uma das figuras mais atuantes na incipiente opinião pública, no curso da Revolução Francesa, travando debates com Robespierre, críticas que lhe renderam a prisão e a execução na guilhotina, durante o Terror, Olympe de Gouges teve a sua atuação marginalizada, quando não esquecida, pela historiografia do século XVIII. Ela entra finalmente para a história das ideias políticas e, mais particularmente, para a história do feminismo ou da longa história de emancipação das mulheres, como a autora da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Ainda que imprescindível para entender a intervenção da autora no período, é insuficiente reduzir a atuação de Olympe de Gouges a esse documento, razão pela qual este verbete pretende contribuir para uma compreensão mais alargada da mulher das letras, no século XVIII, e de sua atuação política durante os eventos que “para o espírito”, na expressão de Victor Hugo (1858), abriu “um abismo, a Revolução”.
Vida
Na cidadezinha Huguenote de Montauban, sudoeste da França, Anne Olympe Mouisset, casada com o jovem comerciante Pierre Gouze, traz ao mundo Marie Gouze. O nascimento dela corre à boca pequena: Jean Jacques Le Franc, o marquês de Pompignan, nobre e famoso dramaturgo vilipendiado por Voltaire, não apenas seria o amante de Anne Olympe como teria, ele mesmo, arranjado o casamento entre Gouze e ela. Embora nos autos do batismo conste o seguinte registro: “Marie Gouze é filha legítima de Pierre Gouze, açougueiro, e de Anne-Olympe Mouisset”, anos mais tarde, quando Olympe de Gouges publica Mémoire de Madame de Valmont sur l’ingratitude et la cruauté de la famille des Flaucourt avec la sienne dont les sieurs de Flaucourt ont reçu tant de services [Memória de Madame de Valmont contra a ingratidão e a crueldade da família Flaucourt com a sua, de quem os senhores de Flaucourt receberam tantos serviços], obra em parte autoficcional, escrita em torno de 1784 e publicada em 1788, ela afirma que toda a cidade pensou que o seu nascimento fosse “efeito dos amores do marquês” (Oeuvres, T I, p.27).
Aos dois anos de idade, em 1750, com o falecimento do marido de sua mãe, Marie Gouze perde aquele que lhe dera um nome. Aos dezesseis, sem grande entusiasmo, a se crer mais uma vez no teor biográfico da Mémoire, ela se casa com Louis-Yves Aubry, pequeno comerciante e cozinheiro do conde Alexis de Gourgues, família nobre de Gascogne: “Eu mal tinha completado quatorze anos […] quando me casei com um homem que não amava e que não era rico e tampouco bem nascido. Fui sacrificada sem qualquer motivo que pudesse equilibrar a repugnância que tinha por este homem” (Oeuvres, T I, p.86). Mesmo sem amá-lo, é com Louis que ela terá seu filho, Pierre Aubry.
Poucos meses após o parto, Marie se encontra com um filho no colo e viúva. Espécie de passagem cortada na carne, o luto e a viuvez impulsionam a criação de uma personagem: Marie passa a se chamar Marie Olympe, adotando o segundo nome de sua mãe, Anne Olympe. O “de Gouges”, que também pode ser mero desvio ortográfico do sobrenome “Gouzes”, mais parece uma ironia lançada sobre o jogo de ofuscamento dos outros, os de baixo, que a aristocracia reservava para si. Talvez, com a partícula “de”, ela se aproximasse da filiação nobre do provável pai biológico, o marquês de Pompignan. Maria cria Olympe e a vida de uma mulher independente de pai, viúva que se recusa a novo casamento e se rende a outros amores, longe das convenções. Vai à Paris, aos vinte anos com seu filho, sustentar a legitimidade de sua existência em uma sociedade que passava a sacudir o edifício petrificado dos privilégios.
A educação da autora, longe da formação esmerada exclusiva aos homens da nobreza, foi sumária. A impaciência com a própria escrita era tal que ela ditava a secretários suas peças, obras de literatura e, anos mais tarde, os panfletos políticos. A insensibilidade da historiografia em relação à condição comum a mulheres naquela época, mesclada a preconceitos, torna o quadro opaco. Mesclada a preconceitos, pois, segundo Olivier Blanc, biógrafo da autora, Olympe de Gouges não cometia erros acima da média de seus contemporâneos, mesmo se comparada aos privilegiados e àqueles saídos de famílias abastadas. Para se ter uma ideia, numa paróquia francesa, não menos do que 13 em cada 20 meninas, em torno dos 15 anos, eram iletradas. Onde se julgou falta de estilo de uma mulher da pequena burguesia, da criança de educação errante fruto de uma relação ilegítima, da mulher cortesã, novas pesquisas têm assinalado a singularidade do percurso da autora do Sul da França, onde o occitano, dialeto do sul francês, se impunha na oralidade como o francês era o idioma estabelecido na linguagem escrita da capital e nas Academias.
Olympe de Gouges foi condenada à morte em 2 de novembro de 1793, numa sequência de condenações que compreende Brissot, Verginaud e outros girondinos. É digno de nota que o historiador Alphonse de Lamartine, em sua Histoire des Girondins, de 1925, não tenha lhe concedido mais do que uma linha, enquanto dedicou parágrafos a outros girondinos. Mesmo entre as mulheres girondinas, o autor concedeu muitas linhas à “virtuosa Madame Roland”. Mais uma vez, o lapso comunica muito mais do que esconde. Madame Roland era uma mulher casada e elegante dos salões, mãe de família e, endossando a hipótese interpretativa de Blanc, provavelmente cumpria o papel passivo de musa no interior do grupo girondino. Olympe de Gouges não foi mulher recatada e convencional durante a sua vida. Mais do que isso, se declarou publicamente favorável ao divórcio ‒— o que não se deu sem que lhe fossem colados certos atributos não incomuns, quando se trata da vida particular das mulheres: concumbina, cortesã, obscena, “la mauvaise femme” (cf. Fayolle, 2006); ela não aceitou a passividade ou a alcunha classista dos parisienses ao se referirem a ela como a “brunette du sud” [a morena do Sul] e preferiu o exercício da cidadania à luz pública, imprimindo sua assinatura em manifestos, petições e panfletos colados em muros. Desde sua chegada à Paris aos últimos dias antes da guilhotina, sua vida se fez em obras literárias e políticas.
Obras
1.Teatro
O século XVIII é também palco do florescimento do teatro público e de sociedade, do gosto pelas máscaras, da mania das cenas, sejam elas trágicas ‒— como o cortejo até a guilhotina e as execuções públicas ‒—, sejam elas heróicas ‒— como os debates dos oradores na tribuna.
O teatro é uma das paixões à qual se rende Olympe de Gouges, mas lhe trouxe dissabores, desde os tempos de sua estreia. Já em sua peça intitulada Les Amours du Chérubin [Os amores do Querubim], de 1784, espécie de continuação em diálogo, na verdade, com Le Mariage du Figaro [As bodas do Fígaro], de Beaumarchais, Olympe foi impedida de encenar seu texto na Comédie-Italienne, dado o prestígio do dramaturgo entre seus pares no teatro francês que viu na obra da autora apenas uma tentativa de plágio. A peça, publicada dois anos depois sob o título Le mariage inattendu de Chérubin [O casamento inesperado do Querubim], encena uma história bastante familiar para a sua autora: o personagem Chérubin, um senhor destacado na sua paróquia, se casa com uma mulher de origem modesta, Fanchette, que é reconhecida mais tarde como filha de dom Fernando, um nobre da Espanha. Olympe coloca em cena o que, em sua vida, foi razão de inferioridade. Tendo por mote a filiação natural, acaba levantando as cortinas para o fato de que também a natureza, longe da fantasia da inocência original, se permeia de desigualdades da vida em sociedade.
Dentre mais de trinta peças escritas pela autora, o maior combate no teatro talvez tenha sido com a peça apresentada à Comédie-Française intitulada Zamore et Mirza, ou l’Heureux Naufrage, peça escrita em 1784. É nesta obra em três atos que se revela a aguerrida abolicionista de Gouges, antes mesmo da criação na França da Société des Amis de Noirs, em 1788. Embora de estrutura simples, o enredo não é trivial para uma época em que a condição dos negros não revira a sociedade. Nele, o escravo negro, Zamore, é condenado à morte por matar o intendente que violenta a sua noiva, Mirza. Ele é livrado de sua pena, quando se descobre que foi ele quem salvou a filha de um governador da morte. Uma redenção paradoxal, que lhe permite o casamento com Mirza. O texto é escrito em prosa que reflete a crueldade sob a qual são submetidas as pessoas negras, desafia o torpor daqueles que não se opõem à tal condição e, de certo modo, incita à rebelião:
[…] Se nossos olhos se abrissem, nos aterrorizaria o estado a que nos reduziram e poderíamos sacudir o jugo tão cruel quanto vergonhoso […] O homem degradado pela escravidão perdeu toda a sua energia, e os mais brutalizados entre nós são os menos infelizes (Oeuvres, T I, p.27).
Em 8 de junho de 1785 é feita uma primeira leitura pública da obra. No mês seguinte, após correções, o texto é aprovado com unanimidade. Não tardou para que, por uma série de intrigas e por influência dos Colonos, especialmente os de São Domingos e da Guiana, os quais faziam fortunas com o tráfico de pessoas vendidas como escravas, a peça fosse mantida no repertório da casa, por anos, sem ser encenada, até ser excluída do repertório. A conclusão parece óbvia demais: os traficantes de pessoas que atravessavam o Atlântico como mercadorias eram patrocinadores destacados da Comédie.
Nas Réflexions sur les hommes nègres [Reflexões sobre os homens negros], publicado em fevereiro de 1788, Olympe de Gouges apresenta um verdadeiro manifesto antirracista e um apelo à Comédie para colocar em cena Zamore et Mirza, escrita cinco anos antes. Engana-se quem afirma que seu texto se presta somente a pedidos de adaptações na encenação. Por constituir uma denúncia da escravidão e porque exige que negros, e não atores maquiados, sejam colocados em cena, a peça se converteu num texto abolicionista, sendo entregue, em 1792, aos integrantes da Société des Amis des Noirs ‒— criada por Jacques Pierre Brissot, nos moldes da Sociedade pela abolição do comércio dos negros, clube londrino.
Com efeito, o panfleto é lido como uma intervenção política contundente, não como um acerto de contas estético. Não por menos, a reação dos proprietários nas colônias foi virulenta e até uma ameaça foi endereçada à Olympe, em forma de uma brochura intitulada “Lettre à Madame de Gouges” [Carta à Sra. de Gouges]. A abolição da escravidão naquele território, aliás, ocorrerá apenas em 1794, após a morte de Olympe e de Brissot, ambos guilhotinados.
No terreno do teatro, lugar de batalhas políticas na pena de Olympe des Gouges, outras obras destinadas à denúncia de situações de injustiça são compostas, entre elas, Le Marché des Noirs [O mercado dos negros], escrita em 1790 e mantida inédita em inventáro da autora, ainda sobre o drama da condição de pessoas escravizadas. Ao lado de peças dirigidas aos homens nos lugares de poder, como La France sauvée, ou le Tyran détroné [A França salva, ou o Tirano destronado], escrita em 1792, vão se destacar aquelas que tematizam a dominação e o lugar de submissão da mulher, como Le Couvent, ou les Voeux forcés [O Convento, ou os votos forçados], de 1790. Não se trata de um manifesto anti-clerical. Antes, ela denuncia nesta peça a situação de meninas abandonadas, entregues a ordens e hierarquias religiosas, a internação forçada, bem como as pressões familiares e sociais sobre as mulheres nos conventos. O convento, por fim, como alusão a todas as instituições de encarceramento, que não manifestam a caridade, não reformulam a sociedade, mas promovem a repressão e a insensibilidade.
É também em favor do divórcio como meio de independência e de defesa das mulheres contra privilégios arcaicos ‒— tema, aliás, já presente em Le mariage inattendu ‒—, que ela escreverá a peça La Nécessité du Divorce [A Necessidade do Divórcio], em 1790. A comédia Le philosophe corrigé [O filósofo corrigido], de 1787, é considerada pelos especialistas em dramaturgia, como Silvia Monfort, a coroação da maturidade de Olympe de Gouges na escrita e na linguagem cênica. Nesta obra, uma mulher um tanto tímida, casada precocemente, não ousa tratar de seus afetos pelo marido filósofo, excessivamente racional e rigoroso, e igualmente incapaz de comunicar seu amor por sua esposa. O problema de uma sociedade moderna que torna as pessoas não apenas independentes, mas isoladas entre si, ganha contornos sensíveis, pois uma das soluções para o paradoxo da modernidade não passa pela figura do homem racional, esteio das filosofias de seu tempo. Na peça, quem ocupa o primeiro plano são as mulheres, a elaboração de estratégias coletivas e de cumplicidade entre elas, forjando uma razão menos rígida, mais sagaz, até o limite do humor e do riso que desmistificam a dominação.
2.Escritos políticos
Não é possível separar rigidamente intervenções no campo estético daquelas no campo político, a própria história constituindo, na expressão de Olympe de Gouges, uma cena na qual atua. Antes mesmo da última reunião dos Estados Gerais, de Gouges publica seu primeiro escrito político, Lettre au peuple ou le projet d’une caisse patriotique [Carta ao povo, ou o projeto de um caixa patriótico], de 1788. O ethos da autora assumido no panfleto é o de uma cidadã “justa e sensível”, cujo comportamento, ao depositar parte de seus bens na Assembleia Nacional, serviria de modelo às demais mulheres cidadãs ‒— a redundância é da época, pois a palavra cidadã não existia ‒—, como sugestão de ações específicas diante da crise econômica pela qual a França passava. Neste panfleto, o exemplo romano é invocado ‒— seguindo o repertório imagético da Revolução Francesa ‒— mais especificamente das “dames romaines” (mulheres romanas), as quais doaram as próprias joias ao Tesouro Público em proveito da República:
O excesso de luxo, que meu sexo hoje leva até o frenesi, terá fim com a abertura do caixa patriótico. Em vez de comprar dez chapéus, as mulheres […] se contentaram com um ou dois chapéus de bom gosto. O excedente será enviado a esta Caixa […]. Este sexo, tão acusado de frivolidade, não tem menos ideias engenhosas (Oeuvres, T III, pp.133-134).
É de mesmo teor o panfleto Le Dialogue allégorique entre la France et la Vérité, dédié aux États généraux [O diálogo alegórico entre a França e a Verdade, dedicado aos Estados gerais], publicado entre março e abril de 1789, e Projet Utile et Salutaire [Projeto Útil e Salutar], publicado em abril de 1789. Nestes panfletos, propõe-se a criação de um fundo nacional amparado em impostos recolhidos nos três Estados como forma de dar condições de vida à parcela mais pobre da população. Não se trata de reiteração do assombro diante da pobreza e, especificamente, da mulher pobre que receberia passivamente a ajuda do Estado, mas a defesa de um projeto consistente de acolhimento como dever em face do papel necessário das mulheres nos negócios e na vida pública.
É indício da época no qual o texto foi escrito a ênfase em certa categoria, “o patriota”, a fim de despertar o dever de todos diante do povo abandonado à miséria. “Patriota”, palavrinha gasta na política contemporânea, mas, na época, termo finalmente apropriado pelos opositores do Antigo Regime, depois de circular entre grupos políticos muito diversos. É que, nesse momento da Revolução, não tinha ocorrido ainda a inflexão determinante do vocábulo “cidadão” (e suas variantes), tomando os documentos oficiais, os jornais e as atas jacobinas. O termo ainda não conotava uma oposição cerrada à monarquia. Olympe de Gouges, como se verá adiante, se mostrará favorável à monarquia constitucional e se dirá cidadã. O que importa destacar é que, assim como a autora emprega o adjetivo “patriota” para sustentar a razoabilidade de seus projetos (a criação de um imposto patriótico, a fundação de um teatro patriótico, notas patrióticas), o termo “cidadã” é empregado no atrito com a consciência acerca do lugar destinado às mulheres que escrevem no período e fundamentalmente por essa condição: “Se nessas obras há alguns [impostos] de natureza tal que possam ser colocados em vigor, a Nação não negligenciará a sua execução, não importa qual seja o sexo de seu autor” (Oeuvres, T III, p.159).
Convocando a memória dos homens para as dores e para a quantidade de mulheres mortas durante o parto, de Gouges apresenta um projeto de casa de saúde às parturientes, aos moldes dos Inválidos, destinada às esposas dos militares sem recursos, dos negociantes, dos artistas, enfim, dos desafortunados da nação. A retórica do patriotismo, tão enfatizada nas primeiras linhas do texto, se esmaece diante da imposição que a autora nomeia como uma injustiça da natureza e, por tal, maridos, filhos, irmãos ‒— eles, nascidos de mulheres sem nunca terem prestado atenção às dores delas ‒—, deveriam isso às mulheres da nação. A natureza, conceito central da filosofia das Luzes, se faz tão ambigua na pena de Olympe de Gouges quanto mais a consciência das desvantagens do sexo feminino se afirma.
É o que se nota também na obra que lançou de Gouges para a tradição que reivindica direitos das mulheres ou para a ampla galeria das “feministas” (cf. Devance, 1977 e Godineau, 2003), a Déclaration des Droits de la Femme et de la citoyenne [Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã], de 1791. Mediante um expediente paródico, no qual a autora repete o estilo, mas inverte o conteúdo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a construção dessa outra declaração, agora da Mulher e da Cidadã, permite questionar qual lugar caberia às mulheres numa sociedade que rejeitava a estrutura antiga de privilégios e proclamava direitos. A Declaração das Mulheres e das Cidadãs, aparentemente texto anódino, lança luz sobre a lógica de exceção e exclusão implícita no universalismo do direito à cidadania e fornece vocabulário para novas demandas.
Cidadania não se restringe à conquista de direitos políticos. No breve e contundente escrito, intitulado Le Bon Sens du Français [O bom senso do francês], publicado em fevereiro de 1792, é exigida uma lei esclarecendo de vez que a igualdade entre esposos e esposas é da mesma ordem da igualdade entre indivíduos suposta em outros contratos. A garantia da independência da mulher é condição fundamental, não se restringindo às liberdades no domínio político. Para a efetiva independência, sustenta a autora, um tribunal deveria existir, garantindo, após a separação dos cônjuges, a propriedade de cada um, a divisão correta de bens e os interesses das crianças.
Mais uma vez, sem pretender esgotar os panfletos e intervenções de Olympe de Gouges, apresentamos, por fim, algumas das intervenções da autora no período mais violento da Revolução e provavelmente o mais dramático de sua vida. Ao lado dos girondinos moderados, em oposição à Montanha, a autora se posiciona publicamente contra os massacres e a pena de morte.
Em Pronostic sur Maximilien Robespierre par un animal amphibie [Prognóstico sobre Maximilien de Robespierre por um anfíbio], publicado em novembro de 1792, ela se apresenta como Polyme, anagrama de Olympe, um anfíbio, nem além e nem aquém de um homem ou uma mulher, mas um animal sem categorização fácil; uma síntese da humanidade, não uma parte dela. É Polyme, criação da dramaturga no campo do político, que se dirige diretamente a Robespierre, quem já gozava de confiança ‒— o “legislador incorruptível”, nos termos de Camille Desmoulins ‒— e grande popularidade, a ponto de ser considerado, entre os intérpretes contemporâneos, quem mais bem encarnou os princípios da Revolução (cf. Gauchet), bem como a intransigência da Montanha diante dos girondinos: “Escuta, Robespierre, é contigo que vou falar. Escuta o teu veredicto e sofre a verdade. Tu te autoproclamas o único autor da Revolução. Tu não o foste, não o és, para sempre dela serás apenas o opróbrio e a execração” (Oeuvres, T II, p.131). É em oposição à personificação do poder, um compromisso republicano, que a autora nomeia o homem da revolução de “tirano”.
Contra a tese bastante difundida, segundo a qual a linguagem da virtude, um dos fundamentos do republicanismo, se estabelece mediante subestimação das dificuldades reais da política, recorrendo-se a meios extraordinários e à violência, o panfleto é demonstrativo de que atores políticos muito diferentes entre si podem lançar mão de uma mesma linguagem política da história: sobre Robespierre pesa a acusação de tirania, de usurpação da liberdade do povo. É assim que, a partir de um mesmo conjunto de referências, Olympe de Gouges disputará com Robespierre a defesa virtuosa da pátria. A ofensiva de Robespierre consistia em apresentar Luís Capeto (o rei Luís XVI, então preso), cujo processo estava em curso, como traidor da pátria, merecedor de julgamento como um “inimigo estrangeiro”. Como outros argumentos que derrubaram a autoridade monárquica no período, de Gouges rejeitava a imputabilidade advinda da tese dos dois corpos do rei: haveria ali apenas um homem, digno de clemência, que também era um rei, responsável pelos seus atos, condenável, portanto. A saída da republicana era neutralizar Luís XVI, concedendo-lhe um julgamento comum, para contornar o sentimento monarquista enraizado no território. A perda do trono e, sobretudo, o banimento eram penas terríveis o bastante, sendo dispensável o extermínio da família real, como as alas radicais defendiam, pois isso poderia implicar num derramamento de sangue sem fim. Com tal argumentação, ainda no Pronostic, a autora entabula de tal modo o debate que situa Robespierre, ele mesmo, no lugar dos tiranos ‒— do “monstro”, nos termos da época:
Eu condeno esses excessos de um patriotismo desorientado. Devemos todos velar pela segurança pública, mas nenhum de nós deve se permitir chegar às vias de fato. Isso destacaria mais o furor da vingança do que o amor pela pátria […] A própria Convenção Nacional deve abafar todo o ressentimento e dar o exemplo de imparcialidade republicana. (Oeuvres, T II, p.131)
O clamor de novembro de 1792 foi em vão. O clima político se agrava, na primavera seguinte, e as estratégias da Montanha envolvem cartas de ameaças aos girondinos e suas famílias, além de intimidações a jornalistas e escritores do período. Em menos de um ano, Olympe de Gouges sai de Paris e retorna para os seus últimos atos. Desse período marcado pelo medo, temos a prova documental em diários e cartas, nos quais ela relata ser perseguida. Admite que sua alma corajosa deve, por fim, se retirar. Se instala em uma residência modesta em Saint-Etienne de Chimie (região de Tours) e ali se mantém até o momento em que as tentativas de eliminar os girondinos na Convenção levam a uma situação de tensão máxima. Não menos do que 29 deputados girondinos são presos. Os que escapam, assistem às prisões de suas esposas e familiares ‒— entre elas, sua amiga Madame de Roland. Essa situação mais a volta do filho da guerra precipita a retorno de Olympe de Gouges, como ela declara em um panfleto endereçado à Convenção, intitulado Testament Politique d’une Patriote Persécutée [Testamento Político de uma patriota perseguida], de 4 de junho de 1793: “Soube que o céu me devolveu meu filho, que ele estava em Paris, e um destino, que eu tentara em vão impedir, me trouxe de volta aos muros da capital, onde certamente me espera um fim digno de minha perseverança e meus longos labores” (Oeuvres, T II, p.161).
É de lucidez espantosa este panfleto. O fim digno de qual trata chegará em meses e, mesmo assim, a autora tenta alertar em vão sobre a radicalização de certas alas da Convenção Nacional e passa a apresentar, como testamento político, a coerência de suas ações, como uma cidadã que serviu à pátria. Procura justificar, além de toda a sua fortuna dispensada em nome da causa popular, a sua defesa de Luís Capeto. A defesa não se fazia em nome das vãs fantasias dos contrarrevolucionários, mas apenas da clemência pelo destronado, por coerência com a defesa do fim da pena de morte. Seria hora de parar o derramamento de sangue, frear os impulsos que levaram aos massacres de 1791, porque a ruína da pátria se aproximaria. A linguagem da coisa pública, o emprego dos exemplos de Roma, a alegoria da liberdade servem como metáforas utilizadas em todo o panfleto, para lançar dúvidas ao comportamento dos supostos defensores da República, que poderiam dominar sob sangue e medo, na capital, mas não manteriam a glória de toda a França.
Olympe de Gouges é mantida por meses em uma das cadeias mais insalubres da região, cujos métodos de tortura envolviam o impedimento do sono, o barulho constante, a nos fiarmos no testemunho de madame Roland, também ali encarcerada. Sem condições mínimas de higiene, de Gouges adoece gravemente. Sem receber tratamento adequado, recorre mais uma vez à pena, dando nova prova de sua coragem, como o atesta o jornal Thermométre du jour, de 17 de agosto de 1793: “Ela reclama corajosa e energicamente dos tratamentos a que foi submetida e de sua detenção, vista por ela como tirânica e um atentado à Declaração”. Com feridas abertas, finalmente, de Gouges consegue ser transferida para a enfermaria de outra prisão. Antecipando-se ao capricho da Fortuna e, mais provavelmente, sem acreditar na fundamentação da acusação lançada sobre ela, de Gouges pede a antecipação da data de seu julgamento, não sem antes escrever um novo panfleto que seria fixado nos muros de Paris.
Neste panfleto, intitulado Testament politique d’une patriote persécutée [Testamento político de uma patriota perseguida], ela engaja o ethos da virtuosa perseguida em vida, mas honrada pela memória. A autora perseguida se queixa da longa detenção e relata o arbítrio da Convenção e do Comitê de saúde pública. Mas o essencial do panfleto parece estar na prosa de rememoração de sua dedicação e serviços prestados à pátria, de seu entusiasmo republicano. Se apresenta como a “autora de escritos humanistas e populares”, a pessoa que mais estimulou ricos a pensarem nos mais pobres, a pessoa que orientou, por um “terror malsã”, as gentes da corte a pensarem nos sem trabalho, a pessoa que atuou em favor de projetos de imposto solidário, que consumiu toda a sua fortuna dedicando-se à causa pública. Mais adiante, ela diz que a revolução caminha para um curso de violência sem fim, um novo episódio de imolação de vítimas, prisioneiras como ela na capital. Com eloquência e coragem sem paralelos, conclui o seu panfleto, últimas palavras dirigidas ao povo francês:
Uma republicana nunca soube se rebaixar; ela não sabe mendigar o perdão quando lhe devem uma retumbante reparação. É esta coragem, este orgulho, que constitui hoje todo o meu crime aos olhos de escravos erguidos como tiranos modernos […] Então, que me julguem! Morte ou liberdade! (Oeuvres, T II, p.153).
Diante do Tribunal Revolucionário e sem a presença de um advogado, de Gouges foi acusada de atentar contra a soberania do povo. A prova? O panfleto Les Trois Urnes [As Três Urnas], no qual ela advogava que cada departamento votasse pela forma de governo que melhor conviesse. Para o Tribunal, não se tratava senão de opiniões federalistas, um atentado à soberania una e indivisível do povo, que havia se pronunciado por um governo republicano. A autoria é assumida, a intenção de servir à pátria é reafirmada, a indagação sobre qual acusação, afinal, cairia sobre ela é reposta. É uma mulher altiva que se apresenta diante do Tribunal, como o documento Discours adressé au tribunal [Discurso endereçado ao Tribunal Revolucionário], de setembro de 1793. O Tribunal faz tremer, ela anuncia, não por alguma culpa que guardaria, mas pelo excesso que ameaçaria as bases até mesmo de sua inocência. A estratégia foi apresentar a Montanha como criados da corte, como homens imbuídos de preconceitos do Antigo Regime, como “republicanos de quatro dias”, ataques com a mesma intensidade com a qual se apresentava com caráter e alma republicanas.
O espaço entre as linhas que compõem a transcrição da leitura do veredito pode ser preenchido com aquilo que testemunhas flagraram: as acusações escutadas com o olhar dirigido ao teto da sala, numa tentativa de desacreditar os acusadores, o espanto desenhando a expressão do rosto, o sorriso discreto lançado ao auditório do tribunal, a saída silenciosa, ao receber a sua sentença. O que as testemunhas captam nos jornais, nos dias seguintes ao julgamento, é o que há de natureza humana na mulher que escolheu o próprio nome, Olympe: medo, ansiedade, indignação, e também coragem.
É com altivez que ela endereça ao filho único uma última carta: “Estou morrendo, meu querido filho, vítima de minha idolatria pela Pátria e pelo povo. Seus inimigos, sob a máscara ilusória do republicanismo, me conduziram sem remorso ao cadafalso após cinco meses de prisão”. Um certo Antoine-Vincent Arnault lembra, em suas Souvenirs d’un sexagenaire [Memórias de um sexagenário], que a longa travessia pela rua Saint-Honoré, da prisão da Conciergerie até a praça da Revolução, foi um cortejo de agonia, mas de beleza e coragem, tal como se vira antes no processo de Charlotte Corday.
Segunda mulher enviada à guilhotina, quinze dias após a execução da rainha Marie-Antoinette, Olympe de Gouges não foi condenada ‒— parece justo assim interpretar ‒— pelo conteúdo do panfleto Les Trois Urnes, mas sobretudo por ter agido em circunstâncias de franca oposição à participação pública das mulheres. Quanto a isso, La Feuille du Salut Public não encobre a razão última da sentença de morte da autora. Como a fala de Pierre-Gaspard Chamette, em sua análise da execução de Gouges, não foi por ameaçar a soberania do povo, mas por se pretender “homem de Estado” e ter esquecido as virtudes próprias de seu sexo. “Lembrem-se deste virago, desta mulher-homem, a imprudente Olympe de Gouges que foi a primeira a instituir sociedades de mulheres, que abandonou os cuidados da sua casa, que quis se envolver na política [politiquer] e cometeu crimes!” A morte de Olympe de Gouges teria valor exemplar, como Chaumette manifesta, por “politiquer”, isto é, pela prática da política por um sexo que não convinha, como se nota no tom ameaçador do discurso diante do clube dos Jacobinos: “[…] vocês sentirão que só serão interessantes e verdadeiramente dignas de estima quando forem isso que a natureza quis que fossem. Queremos que as mulheres sejam respeitadas, por isso vamos forçá-las a se respeitarem a si mesmas” (La Feuille de salut public, 17 brumaire an II).
Que a liberdade pudesse guiar o povo, como se acreditava no regime que havia abolido a estrutura desigual do Antigo Regime, era coisa bem diferente de dizer que a liberdade convinha também às mulheres. À natureza eram atribuídas as marcas que distinguiriam os sexos e os lugares sociais que convinha a cada parte. À natureza era imputado o arbítrio de tornar certos corpos e destinos indesejáveis na cena do político. Como contorno simbólico da violência contra Olympe de Gouges e as mulheres que “politicaram”, em 19 de outubro de 2016, houve uma condecoração e o busto de Olympe de Gouges, com a Declaração dos Direito da Mulher e da Cidadã escrita em mármore, na Assembleia Nacional francesa, o Palais de Bourbon, sob governo de François Hollande. Felizmente, Olympe de Gouges, a escritora que assinou seu próprio nome na história, não nos “deixou um presente qualquer”. Nos legou, no testamento que convém às mulheres, sua alma, isto é, uma atuação política e literária corajosa.
Referências Bibliográficas
Referência das obras de Olympe de Gouges
Oeuvres complètes de Madame de Gouges. (1993). T I a IV. Montauban: éditions Cocagne.
(*todas as traduções são de responsabilidade da autora)
Demais obras
Annonyme “Olympe de Gouge et Miaczinsky”. Colloque des morts, Paris, an II, p. 101.
Arnaut, Antoine-Vincent. (1833). Souvenirs d’un sexagenaire. Paris: Dufey. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k108089j#>, consultado em 27 de janeiro de 2024.
Blanc, O. (2003). Marie-Olympe de Gouges. Une humaniste à la fin du xviiie siècle, p. 272. Éditions René Viénet.
Devance, L. (1977). Le féminisme pendant la Révolution française. Annales historiques de la Révolution française, n.229, pp. 341-376.
Fauré, C. (2006a). La naissance d’un anachronisme: le féminisme pendant la Révolution française. Annales historiques de la Révolution française, 344, pp.193-198.
Fauré, C. (2006b). Doléances, déclarations et pétitions, trois formes de la parole publique des femmes sous la Révolution. Annales historiques de la Révolution française, 344, pp. 5-25.
Fraisse, G. (1989). Muse de la raison: Démocratie et exclusion des femmes en France, Paris: Gallimard.
Gauchet, M. (2018). Robespierre. L’homme qui nous divise le plus. Paris: Gallimard.
Godineau, D. (2003). Femmes et violence dans l’espace politique révolutionnaire. Historical Reflections / Réflexions Historiques, v. 29, n. 3, pp. 559-576.
Hugo, V. (1858). Le Rhin. Paris: Hachette.
Lamartine, A. (1847). Histoire des Girondins. Paris: Furne & Cie, W. Coquebert.
Landes, J. B. (1996). The Performance of Citizenship: Democracy, Gender, and Difference in the French Revolution. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political. Princeton: Princeton University Press.
Rousseau, Jean-Jacques. (2021). Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (tradução de José Mário Silva). Penguim.
Singham, S. (1994). “Betwixt Cattle and Men: Jews, Blacks and Women and the Declaration of the Rights of Man”, In: The French Idea of Freedom. The Old Regime and the Declaration of Rights of 1789, ed. Dale Van Kley, Stanford University Press.
Soromenho Nicolete, R. (2021). “Republicana levada ao cadafalso: os escritos políticos de Olympe de Gouges”. Revista Rosa, 1, v.3.. Disponível em: < https://revistarosa.com>.
______ e Martins Craveiro, Ana Beariz. (2022). Mulheres escrevem (n)a Revolução de 1789: Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft. Gênero e feminismos na FFLCH/ dossiê. Danilo Ferreira, Larissa Nadai, Marília Ariza, (organizadores). Araraquara, SP: Letraria.