Dorothea von Schlegel
(1764-1839)
Por Fabiano Lemos,
Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em
Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/ CNPq)

Vida
De poucas figuras do Romantismo alemão pode-se atestar a amplitude das transformações – ideológicas, mas também financeiras, culturais e filosóficas – que caracterizaram a vida de Dorothea von Schlegel. Uma primeira pista para essa biografia atravessada de desvios, reformulações, rupturas e crises se dá, já de partida, pelo seu nome, ou, antes, pelos muitos nomes que assumiu, e que testemunham uma unidade virtualmente impossível, tornando-a, voluntaria ou involuntariamente, um caso exemplar da prática romântica da autotransfiguração. Essa contínua transformação foi uma divisa de seu pensamento, que associava o conhecimento pleno de si à morte e via na vida a manutenção de um mistério orientador de uma prática, como indicaremos a seguir Referindo-se aos que acreditavam poder fixar uma imagem de si, ela afirma: “Eles pretendem voltar a si mesmos: a maioria nunca saiu de si mesma! Permanecem, assim, parados” (SCHLEGEL, 2022, p. 65).
Filha do filósofo Moses Mendelssohn, recebeu, ao nascer, em 24 de outubro de 1764, o nome Brendel e, ao contrário do que se pode afirmar de outras mulheres intelectuais que lhe foram contemporâneas – como Karoline von Günderrode, Bettina von Arnim, Rahel Varnhagen ou Caroline Schelling – sua disposição emocional nunca parece ter sido marcada pela consciência sofredora de uma expectativa de emancipação frustrada pela misoginia. Ao contrário – e esse é um dos pontos que indicam o quanto sua figura é especialmente problemática para uma revisão feminista da historiografia filosófica – Dorothea von Schlegel tomou para si muitas vezes a regra que anota em seu caderno em 1808 a respeito do papel do homem no matrimônio: “Ele deve ser seu senhor! Essas palavras do Criador não são uma lei moral, mas uma lei natural e, como tal, aviso e esclarecimento amorosos” (SCHLEGEL, 2022, p. 87). Essa relação de submissão às normas sociais vigentes e à estrutura patriarcal de seu mundo, no entanto, tornaram-se, paradoxalmente, objeto de uma intermitente reflexão e ponto de partida, muitas vezes, de estratégias de pertencimentos sociais: muitos de seus fragmentos, organizados em cadernos ao longo de sua vida, e editados parcial e postumamente em 1881 por seus filhos Johannes e Philipp, preocupam-se em legitimar, mas também complicar o sentido dessa submissão. A tendência conservadora do pensamento de Dorothea, contudo, tem sido relativizada nos últimos anos por alguns especialistas (Pnevmonidou, 2005; Allingham, 2011; Lemos, 2022), inclusive através da consideração de seu processo de formação. Isso não significa ignorar essa dimensão, mas devemos lembrar que sua família integrava não apenas o círculo restrito das famílias judias berlinenses mais conceituadas e, graças ao trabalho filosófico de seu pai, amigo próximo de Kant, também ao universo mais amplo da intelectualidade esclarecida do século XVIII. Tal inscrição social permitiu à jovem Brendel não apenas uma educação sólida, ainda que doméstica, voltada para os princípios da Aufklärung – a o Esclarecimento alemão – e do cosmopolitismo, mas também o convívio com filósofos e artistas que frequentavam sua casa.
Se, portanto, o casamento se lhe apresentava como horizonte próprio à esfera de ação das mulheres, isso não representava a renúncia à vida intelectual, que Dorothea von Schlegel sempre buscou avidamente, ainda que de modo privado. Seu casamento com o banqueiro Simon Veit, acordado desde os seus quinze anos, foi aceito com resignação, e não com entusiasmo, e a vida com um homem pouco afeito ao debate filosófico lhe trouxe grande infelicidade, comprovada em várias de suas cartas à sua confidente Henriette Herz. Durante os quinze anos que viveu com ele – separando-se oficialmente apenas em 1799, quando seu pai já havia falecido –, após dar à luz quatro filhos, dos quais apenas dois chegaram à adolescência, ela se esforçou por criar circuitos alternativos de participação na cena filosófica de Berlim. Organizou em sua casa um salão literário e frequentava com assiduidade aquele articulado por Henriette e Markus Herz, onde viria a conhecer, em 1797, Friedrich Schlegel, com quem iniciou um romance ao qual se seguiria a sua ida, juntos, para Jena, dois anos depois. O sentido transformador dessa nova relação se deixa adivinhar pelo fato de que, a partir desse momento, Brendel resolve mudar seu nome para Dorothea, e seu destino é duplo. Por um lado, ela assinala o momento em que Dorothea parece ter vislumbrado a perspectiva de uma união baseada no amor, e não no compromisso familiar – um tema central da reflexão do Romantismo em geral, mas com características especiais no caso das mulheres. É preciso lembrar, contudo, que isso não significou, em absoluto, que sua visão do matrimônio tinha se alterado. Por outro lado, não seria exagero afirmar que o casal Friedrich Schlegel e Dorothea Veit sintetizou de modo exemplar as contradições do grupo que viriam a constituir em Jena, consolidando-se como referência naquilo que o primeiro Romantismo tem, ao mesmo tempo, de conservador e libertário, herético e eclesiástico, moderno e clássico. As divergências de Dorothea com Caroline Schlegel – que, em Jena, se apaixonaria por Schelling e abandonaria o irmão mais velho de Friedrich, August –, acabariam, segundo alguns biógrafos, impondo a dissolução desse grupo. Com isso, submergiam o próprio Romantismo em uma crise, e podem ser entendidas sob o pano de fundo dessas contradições.
Apesar de viverem juntos desde então, o casamento com Friedrich Schlegel só ocorreria em 1808 – a união ilegítima significava, para a sociedade da época, motivo de escândalo e, frequentemente, escárnio, do que Dorothea se ressentia muitas vezes. Após a ruptura com o círculo de Jena, o casal se muda por algum tempo para Berlim e, em seguida, na esperança de encontrarem um cargo para Friedrich, para Paris, onde moram entre 1802 e 1804. Os cadernos de Dorothea von Schlegel nesse período estão repletos de reflexões, muitas delas realmente originais, acerca das relações culturais dos diversos atores sociais na França, caracterizando o que poderia ser denominado como sociologia filosófica. Frequentemente, ela percorre as bibliotecas públicas fazendo levantamentos bibliográficos que seriam posteriormente empregados nos textos de seu marido, e isso lhe deu acesso a um domínio linguístico que, mais tarde, ela aproveitaria para traduzir textos franceses para o alemão, todos publicados sob o nome de seu marido. Após esse breve, mas importante, exílio parisiense, Friedrich e Dorothea se mudam para Colônia, onde, em 1808, convertem-se oficialmente ao catolicismo, dando início a uma perspectiva filosoficamente mais conservadora para ambos, que se atesta, no caso de Friedrich, em seus artigos publicados – com a contribuição de Dorothea – no jornal Europa, fundado por ele mesmo. Após seu casamento, Friedrich encontra uma posição como secretário na corte conservadora de Metternich, em Viena, onde a relação apaixonada do casal cede gradualmente à distância e a uma certa indiferença. Esse momento corresponde a uma nova mudança de assinatura, quando o casal é autorizado a utilizar o termo “von” antecedendo seu sobrenome – um privilégio da nobreza. Contudo, o casamento já não era sustentado por um convívio amigável ou pela partilha de interesses intelectuais. Não é uma surpresa, portanto, que, desde o final da década de 1810, Dorothea e Friedrich se encontrem frequentemente em cidades e mesmo países diferentes – como ocorre entre 1818 e 1820, quando ela mora com seu filho Johannes em Roma.
A morte de Friedrich em 1829 acabou por colocar Dorothea em uma difícil situação financeira, e foi somente graças ao suporte de seus filhos e de seus irmãos que pôde se manter em seus últimos anos, vividos na casa de seu primogênito em Frankfurt. A edição póstuma de suas obras não contém nenhum material desse período. Dorothea von Schlegel (nascida Brendel Mendelssohn, tornada Brendel Veit e, em seguida, Dorothea Schlegel) faleceu no dia 3 de agosto de 1839. Nenhuma edição crítica de seus fragmentos privados teve lugar até hoje – e nenhuma parece estar, no momento, sendo planejada.
Obra
No que diz respeito a uma discussão sobre a história da filosofia escrita por mulheres – a exemplo do que acontece com aquela produzida por pessoas racializadas, gênero-dissidentes, pobres etc. –, é importante que reavaliemos a pertinência e os impasses de categorias como autoria, publicidade, forma, em geral tidas como autoevidentes, mas que, pelas características próprias das limitações de agência de pensadores e pensadoras, muitas vezes não estão disponíveis para eles. Isso significa, entre outras coisas, que não bastaria reinserir no cânone filosófico atual algumas figuras contingencialmente excluídas, ampliando-o em seus próprios termos. Antes, seria necessário mostrar como o conceito e a prática do cânone obedece, também, a uma vocação estruturalmente excludente, que tomou certos modos de escrita (ou de fala), certos padrões de circulação das tradições e certos objetos como não-filosóficos, empurrando-os para o domínio do folclore, da literatura ou da crônica (sobre esse problema, cf. WEIGEL, 2000; RAMOS, 2024). Sem levarmos em conta essa reavaliação – que exige, é claro, uma discussão metodológica muito complexa, tanto em termos epistêmicos quanto histórico-linguísticos e políticos –, não seríamos capazes de entender como uma oração, uma carta, um poema ou o fragmento de uma peça se apresentaram como o lugar mesmo da reflexão filosófica de autoras como Dorothea von Schlegel.
Tomando todas essas precauções, podemos, esquematicamente, dividir sua produção textual filosófica em cinco registros. O primeiro deles, e mais problemático, diz respeito às colaborações anônimas, de resto muito intensas, com seu marido. Sabemos não apenas como Dorothea preparou muito do material que Friedrich Schlegel utilizaria em seus próprios estudos – coletando informações em bibliotecas, jornais e revistas, providenciando traduções do francês, revendo e resumindo artigos –, mas como este se apropriou de obras compostas por ela, ainda que sob sua autorização. O estado atual da pesquisa não nos permite identificar o que e o quanto, daquilo que recebeu a assinatura de Friedrich Schlegel foi produzido por sua esposa. Em segundo lugar, temos as obras identificadas, ainda que nem sempre de modo direto ou imediatamente à época. Incluem-se nessa categoria duas resenhas publicadas na revista Athenäum, a primeira, sobre o romance Les voeux témeraires, de Madame de Genlis, no volume II, número 2 (1799), e a segunda sobre os contos morais de Ramdohr, no volume III, número II (1800). Além disso, um artigo intitulado Gespräch über die neuesten Romane der Französinnen [Conversa sobre os mais recentes romances das francesas] foi publicado no segundo tomo do primeiro volume da revista Europa, editada por Friedrich Schlegel, em 1803. Esse texto é particularmente relevante para considerarmos a questão da representação da literatura escrita por mulheres que circulava entre elas, especialmente pelo viés moralista dado por Dorothea. Também como obra identificada podemos considerar seu importante romance Florentin, publicado em 1801 anonimamente – Friedrich, no entanto, aparece como seu editor –, que comporta uma contínua reflexão sobre os papeis de gênero na aristocracia alemã (cf. LEMOS, 2022), com longas passagens diretamente filosóficas abordando temas como o destino da humanidade, o poder da poesia ou o valor da virtude. Uma breve e inacabada continuação desse romance, intitulada Camilla integra seu espólio e foi publicada por Hans Eichner em 1965. Em terceiro lugar, podemos indicar a correspondência, especialmente com suas amigas mais íntimas como Rahel Varnhagen, como lugar de amplas considerações sobre problemas estéticos, políticos e morais. A questão da conversão ao catolicismo, por exemplo, é discutida em detalhes nessas cartas, fornecendo justificativas que vão além da dimensão teológico-existencial, na direção de uma compreensão da vocação dos indivíduos. Sintomaticamente, uma edição crítica das cartas de Dorothea encontra-se atualmente inserida na coleção reunida na seção epistolar das obras completas de seu marido, que ainda está em vias de publicação. Em quarto lugar devemos figurar a importantíssima coleção de fragmentos póstumos apenas parcialmente editada, onde aquilo que denominei anteriormente como sociologia filosófica se expressa mais notavelmente. Dorothea se esforçou frequentemente em produzir, para cenas e objetos os mais cotidianos, sentidos filosóficos muito amplos. Um exemplo anedótico, mas, ainda assim, notável, é sua anotação da época do exílio em Paris que associa estrabismo a uma tendência moral (SCHLEGEL, 2022, p. 65). Contudo, temas como a obra de Goethe, Herder e Novalis, os quadros e as esculturas modernos, a invasão napoleônica dos estados germânicos, a relação entre filosofia e cultura, entre inúmeros outros, também são abordados de maneiras múltiplas e com profunda perspectiva histórica e social. Por fim, um quinto registro digno de nota são as traduções publicadas por Dorothea. Em 1802, um romance de cavalaria de Guillaume Cousinot apareceria sob o título Geschichte der Jungfrau von Orléans [História da dama de Orléans], seguida, em 1803, de uma versão alemã da autobiografia de Margaretha von Valois, a mesma autora cujo romance de cavalaria Lother und Mallet ela verteria para o alemão em 1805, e, em 1807, dos quatro volumes de sua versão de Corinna, de Madame de Staël. Nessa categoria talvez possamos incluir ainda as coletâneas de poesias e lendas medievais que publicou em colaboração com seu marido em 1806 – sem que seu nome, mais uma vez, fosse creditado. Embora esses trabalhos não comportem uma elaboração filosófica direta, sua seleção pode ser lida como um signo de uma relação com o tempo à qual voltarei mais adiante.
Uma disposição geral do pensamento de Dorothea von Schlegel, que atravessa todos esses registros e todas as suas muitas conversões, anuncia-se frequentemente como desprezo da modernidade, em uma tonalidade francamente oposta aos experimentos mais vanguardistas de Friedrich Schlegel em seu período mais revolucionário, em Jena. Dorothea sempre observou com muita desconfiança a atitude libertária do grupo romântico que integrava e se ressentia do modo como era tratada por ele. Muitas vezes essa distância se traduziu em uma crítica à tendência verborrágica da época. Assim, lemos, em uma anotação de 1798, pouco tempo antes de sua transposição definitiva para Jena:
Eles frequentemente se riem e se sentem bastante superiores a mim quando eu pareço prescindir das palavras extravagantes, das expressões da moda com as quais eles descrevem tudo com tanta facilidade: como grande, sublime, moderno, antigo, gótico, amável, maravilhoso, celestial, divino… e muito mais. Oh, eu conheço bem essas palavras, elas são palavras! mas tenho vergonha de usá-las. Elas poderiam, de hoje em diante, descrever algo completamente diferente, exatamente o oposto, e ninguém absolutamente ficaria surpreso. Aquilo que você não consegue nomear, é claro, é sempre o mais querido e o melhor e, propriamente, o que você quer dizer. Por que as pessoas falam tanto? (SCHLEGEL, 1881, vol. I, p. 81).
As últimas cartas escritas por Dorothea continuarão a articular essa crítica, ainda que, cada vez mais, sob a ótica de um desprezo cristão pela cotidianidade da vida prática. Curiosamente, esse ponto de vista da eternidade moral nunca a impediu de voltar-se, ainda que com desprezo, para seu entorno.
Os fragmentos privados escritos durante o exílio parisiense entre 1802 e 1804 sintetizam, sob muitos aspectos, interesses que Dorothea desenvolveria ao longo de toda sua vida. Além de funcionar como testemunho histórico bastante singular da diáspora romântica após a ruptura do grupo de Jena, a partir de 1800, a reconstrução de anedotas a respeito da sociedade parisiense, anotadas em francês por Dorothea, aponta o valor daquilo que chamaríamos hoje de antropologia social e que, pelo menos na Alemanha, havia sido deixado em segundo plano de Kant a Hegel. Esse conjunto de anotações lembra, à primeira vista, a crítica de moralistas como La Rochefoucauld; mas, observado de perto, presta-se a maiores comparações com muitos fragmentos de Novalis, Kleist ou Uhland, já que tentam assinalar os paradoxos do comportamento humano em sociedade com certa tendência ao chiste. Há muito da ironia romântica em funcionamento nesses fragmentos, embora, muitas vezes, tingida por um certo amargor ou por uma certa melancolia. Isso a levou a um diagnóstico sobre o sentido da sociabilidade moderna – contra a qual sempre lutaria – cujo índice se localizava na civilisation dos franceses: “No que diz respeito aos costumes, tudo é permitido, com exceção do que denominam mauvaise tournure [decisão ruim]. Para um olhar alemão, frequentemente não é visível onde está a diferença entre uma boa e uma má tournure” (SCHLEGEL, 2022, p. 70). Essa crítica aos paradigmas ambivalentes da cultura moderna insiste em reduzir ao absurdo, e, portanto, à nulidade, qualquer pragmatismo, em um investimento estilístico que lembra, sob muitos aspectos, o que hoje em dia se observa entre os críticos da assim chamada pós-modernidade, notavelmente quando reduzem as diferenças de perspectiva cultural à leviandade das intenções individuais. A essa diferença Dorothea opôs inúmeras vezes uma espécie de ascetismo, que imputava àquilo que compreendia ser a mulher verdadeiramente virtuosa. A intercessão desse tratamento com as questões de gênero é evidente em fragmentos como o seguinte:
As mulheres aqui [em Paris] levaram tão longe suas pretensões e as leis acerca disso que é uma pretensão e uma laboriosa posição não ter “nenhuma”[pretensão]. “Une femme à prétension” [Uma mulher com pretensões] tem muito a que responder, mas, para isso, ela também pode oferecer leis; “une femme sans prétension” [uma mulher sem pretensões] tem, terrivelmente, de observar muito antes que se acredite nela (Idem).
O paradigma do exílio, que se manifesta, como seria de se esperar, nesses escritos do período parisiense, contudo, formula-se como princípio organizador da cosmovisão de Dorothea. Essa condição de deslocamento é mesmo constitutiva de toda sua escrita e se alinha, mesmo contra sua vontade, ao testemunho de autoras como Karoline von Günderrode ou de Rahel Varnhagen, que foram particularmente sensíveis ao não-pertencimento das mulheres como dimensão existencial. Com relação a essa última, Dorothea partilhou ainda a conexão problemática entre o exílio feminino e o exílio judaico, e a solução da conversão – no caso de Rahel, apenas ao protestantismo, e, no de Dorothea, também, posteriormente, ao catolicismo – parece ter sustentado o longo contato epistolar entre elas, embora raramente tenha sido formulado de forma direta em sua correspondência. Seria preciso uma pesquisa mais abrangente que, partindo das complexidades do judaísmo alemão do século XIX, integrasse as ambiguidades da prática de escrita das mulheres do período, para que pudéssemos ter uma visão mais precisa do percurso cumprido pela perspectiva exiliar de Dorothea – uma área pouco trabalhada entre os comentadores até o momento (cf., excepcionalmente, SCHOEPS, 2020).
O conservadorismo de Dorothea se insere, portanto, em um horizonte existencial-conceitual marcado pela ação do deslocamento, ao qual responde denunciando o esgotamento das formas de temporalidade cotidianas. A eternidade surge como o território de alívio que torna possível a própria estruturação da vida. Ao contrário de boa parte dos românticos – entre eles, Novalis e seu marido, Friedrich, em um primeiro momento –, Dorothea avaliou a instabilidade da existência como profundamente ameaçadora e fundamentalmente sem sentido, a tal ponto que mesmo as concepções mais tranquilizadoras do infinito romântico, que lhe emprestariam uma tonalidade qualquer de promessa salvífica, ainda lhe pareceram inconsistentes. Para ela, a verdadeira eternidade é dogma, é aceitação, e não especulação: com ela emerge um segundo paradigma do tempo, que rasura a duração banal da vida comum. Essa é a chave para suas conversões, primeiro para o protestantismo e, em seguida, para o catolicismo. Trata-se de uma aproximação gradual de uma temporalidade muito específica: a eternidade fria dos luteranos ainda não poderia ser suficiente, embora autorizasse a saída de uma ideia de tradição muito restrita (a do judaísmo); era preciso que esse novo tempo tivesse a glória de uma parousía espetacular, que ele fosse não imóvel, mas mais acelerado. Que se leia a esse respeito um fragmento escrito ainda em Jena:
Venha, querida alma cansada, a que tem algo a esquecer, seja um dia turvo ou um ano nebuloso ou um ser humano que a ofende ou a quem você ama, ou uma juventude desfolhada ou toda uma vida difícil; e tu, espírito deprimido, para quem o presente é uma ferida e o passado uma cicatriz, venha se refrescar com minha poesia! [Acrescentado logo abaixo, em outra caligrafia:] O ponteiro do relógio do vilarejo se move apenas ao redor das horas de fome e trabalho, mas o ponteiro dos segundos, cravejado de diamantes, voa ao redor de minutos lúgubres, chorosos e desanimadores. (SCHLEGEL, 1881, p. 82).
Esse tempo dos segundos, mínimo, veloz, autoriza um novo tipo de deslocamento, não mais pressentido como condenação, mas, inversamente, como passagem livre para um fora-do-tempo – o que explica o modo como Dorothea insiste em se concentrar, como demonstram suas traduções, no período medieva, especialmente na literatura ligada à cultura popular, como as Sagas e as canções que recolherá em antologia, mais uma vez assinada apenas pelo seu marido.
É nesse ponto, enfim, que a perspectiva conservadora de Dorothea se complica. Isso porque, se admitirmos que sua reação contra a instabilidade dos valores do contemporâneo se formula não como imobilismo, mas como uma aceleração, que tem como efeito a construção da reunião de todas as variações do tempo – algo que Dorothea denominava grandeza –, já não é tão simples contrapor a heterogeneidade do contemporâneo à identidade unívoca do eterno. De certo modo, a unidade de tempo mais verdadeiro comporta as diferenças do tempo cotidiano – mas as levam, por assim dizer, à sua verdade. É por isso que podemos encontrar textos onde uma certa condescendência com a variação é sugerida. Isso tem, inclusive, forte influência na concepção pedagógica de Dorothea von Schlegel. É verdade que, comparativamente, suas teses sobre a educação e a cultura estão muito distantes das concepções mais progressistas de Caroline de La Motte-Fouqué, por exemplo. Mas o que dizer de um fragmento que parece propor uma contemporização entre a civilização e a grandeza?
[…] que a educação antiga, meio negligente, meio rígida e ortodoxa, seja melhor [em relação à moderna]. Basicamente, tudo isso nada mais é do que a grande roda do tempo. Uma é tão necessária quanto a outra. Essa educação provavelmente não era boa em si mesma; apesar dela, surgiram grandes seres humanos, ao lado dos quais milhares caíram; mesmo agora há novamente alguns que obscurecem todo o resto. Muitos que então se lembravam da pressão da infância acreditavam que era possível pôr fim a ela e que, assim, a formação se tornaria mais generalizada. Foi uma tentativa que valeu a pena. Agora, aqueles que acreditam ter sofrido com essa tentativa percebem todos os aspectos prejudiciais desse método e acham que outra coisa é necessária; mas será que é correto que eles queiram ter o anterior de novo justamente por esse mesmo motivo? É tudo uma coisa só: o grande não pode ser estragado e o comum pode perecer e, portanto, é correto que os poucos anos da infância não sejam estragados. Mas é bom que nem todo mundo esteja tão tranquilo com relação a isso, caso contrário, as coisas permaneceriam sempre iguais. (SCHLEGEL, 1881, vol. I, p. 85).
Assim, uma avaliação do espectro político-ideológico onde se move Dorothea ganha em complexidade quando se o tensiona com sua filosofia do tempo. Todo o conjunto de suas observações sociológico-filosóficas se dedica a pensar a questão da possibilidade de ação em um mundo cuja temporalidade se encontra fora dos eixos, para empregar uma expressão kantiana. Por um lado, não é mais possível regressar à ingenuidade da formação antiga; por outro, essa inviabilidade guarda em si uma potência de criação do novo. Essa perspectiva filosófica, que pode ser lida como parte de uma teoria romântica da Bildung, da formação, constitui um dos pontos mais originais de seu pensamento, e não está desonerada de seus impasses e contradições.
Referências bibliográficas
Até o momento, a única tradução para o português de textos de Dorothea von Schlegel, com exceção de uma parte das sagas medievais publicada sob o título A história do mago Merlin (2001), é a que publiquei na antologia As outras constelações (2022). O romance Florentin, bem como o fragmento Camilla e algumas poucas cartas encontram tradução para o inglês. Como já mencionado anteriormente, nem mesmo uma edição crítica de suas obras em alemão teve lugar até hoje, com exceção de parte de suas cartas, dentro da edição das obras completas de Friedrich Schlegel.
ALLINGHAM, L., “Revolutionizing Domesticity: Potentialities of Female Self-Definition in Dorothea Schlegel’s Florentin (1801)” In: Women in German Yearbook, Vol. 27, 2011.
LEMOS, F., “Florentin à deriva: sobre a filosofia da escrita feminina no Romantismo alemão” In: As outras constelações, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022.
PNEVMONIDOU, E., “Die Absage an das Romantische Ich: Dorothea Schlegels Florentin als Umschrift von Friedrich Schlegels Lucinde” In: German Life and Letters, vol. 58, n.3, 2005.
RAMOS, C., “Escrita feminina e tagarelice” In: Alter, vol. 18, n. 1, 2024.
SCHLEGEL, D. von, Camilla. A novela, translated by Edwina Lawler, Indiana: Indiana University Press, 1990.
SCHLEGEL, D. Dorothea v. Schlegel geboren Mendelssohn und derem Söhne Johannes und Philipp Veit. Briefwechsel im Auftrag der Familie Veit herausgegeben von Dr. J. M. Raich, Mainz: Franz Krirchheimer, 1881.
SCHLEGEL, D. Florentin. A Novel, translated by Edwina Lawler and Ruth Richardson, New York: Lewiston 1988.
SCHLEGEL, D. Florentin. Roman. Fragmente. Varianten. Herausgegeben und mit einem Nachwort versehen von Liliane Weissberg, Berlin: Ullstein, 1987.
SCHLEGEL, D. “Fragmentos dos diários I e II” In: LEMOS, F. (ed.), As outras constelações. Uma antologia de filósofas do Romantismo alemão, Belo Horizonte: Relicário, 2022.
SCHLEGEL, D. e SCHLEGEL, F., A História do Mago Merlin, tradução de João Azenha Jr., São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SCHOEPS, J. H., Dorothea Veit / Schlegel. Ein Leben zwischen Judentum und Christentum. Berlin und Leipzig: Hentrich & Hentrich, 2020.
WEIGEL, S., “Der schielende Blick. Thesen zur Geschichte weiblicher Schreibpraxis”. In: BONTRUP. H. & METZLER, J Ch. (Hg.), Aus dem Verborgenen zur Avantgarde. Ausgewählte Beiträge zur feministischen Literaturwissenschaft der 80er Jahre, Hamburg: Argument Verlag 2000.