Basquete, Yao Ming e a Eugenia
Com 2 metros e 29 centímetros de altura, Yao Ming é um gigante, o mais alto jogador de basquete na NBA americana em atividade. Sua altura e seu gosto por basquete não foram mera obra do acaso. Seu pai, Yao Zhiyuan, media mais de dois metros e sua mãe, Fang Fengdi, 1,90m. Ambos também eram jogadores de basquete profissional, e como Razib Khan notou em um post recente em Gene Expression, citando o livro “Superfusion”, de Zachary Karabell:
“[A mãe de Yao Ming] havia servido da Guarda Vermelha no ápice da Revolução Cultural, e era uma Maoísta ardorosa. Ela participou entusiasticamente no plano glorioso do governo local de usá-la e ao seu marido para produzir uma super-estrela dos esportes. As autoridades de Xangai que encorajaram o par investigaram várias gerações anteriores para se assegurar de que a altura fazia parte da linha de sangue. O resultado foi Yao, um bebê gigante que só continuou a crescer”.
Yao Ming nasceu com 5kg, e media 1,65m aos dez anos. Começou a praticar basquete pouco antes, não parando desde então. Sua concepção deliberada não é um evento isolado, uma vez que a China é efetivamente o único país no mundo a promover oficialmente a eugenia – termo cunhado por Francis Galton, que deve, e merece ser mais conhecido pelas suas contribuições à ciência estatística, entre tentas outras ciências.
Através do controle da reprodução e descendência dos indivíduos, a eugenia pretendia “melhorar as qualidades genéticas humanas”, um caminho cheio de boas intenções que encontrou todavia seu ápice mais tenebroso nas loucuras promovidas pelo regime nazista. A eugenia foi a pseudociência que embasou e levou do racismo ao genocídio.
Exterminar ou esterilizar indivíduos “inferiores” é parte do que seria a “eugenia negativa”, que ainda encontra eco hoje no humor macabro do prêmio Darwin, “honrando aqueles que melhoram a espécie… ao acidentalmente removerem-se dela!”. Complementando tais medidas para evitar que traços “negativos” se perpetuassem, estaria a “eugenia positiva”, justamente o que se vê no caso do jogador de basquete chinês, com a reprodução deliberada de um casal com a herança genética “positiva” que se deseja.
A eugenia negativa também é levada a cabo na China: em 1995 foi colocada em prática a Lei de Saúde Materna e Infantil, que obriga que todos casais se submetam a exames médios para detectar doenças genéticas, infecciosas e mesmo doenças mentais. A critério de médicos, e de acordo com a lei, o casal pode ser proibido de ter filhos, podendo ser obrigado à esterilização. O controle eugênico não para aí, enquanto exames pré-natais também podem levar à decisão de terminar a vida de um feto ou bebê que apresente problemas mais sérios. O seguinte texto (em inglês) cita a lei chinesa e a opinião de um diretor de bioética chinês bem como a crítica de um sinologista alemão: Is China’s law eugenic?.
O assunto é complexo, e um breve post não poderia pretender abordar mesmo um sumário das questões mais importantes. Comentamos aqui, ao invés, apenas alguns nexos dispersos, e o principal deles seria a questão moral. Não deve ser coincidência que o único país a promover políticas claramente eugênicas seja um estado totalitário. É historicamente a moral popular corrente que limitou o avanço de políticas eugênicas – e, igualmente, não é tanto coincidência que os maiores extremos destas tenham sido cometidos por outro estado totalitário, durante o regime nazista.
Há no entanto algo um tanto chocante sobre a moral impondo limites à eugenia: ela tendeu a impor mais limites à eugenia positiva. Tanto sob Hitler quanto sob Stálin, eugenistas mais entusiasmados propuseram esquemas mirabolantes através dos quais os homens mais bem-dotados teriam incontáveis filhos com os melhores espécimes de mulheres, mas em ambos os regimes a ideia entrou em conflito com a moral vigente.
Mesmo sob o nazismo, o programa de eugenia positiva Lebensborn concebido pelo chefe da SS consistiu principalmente no apoio a mães “arianas” e seus bebês, evitando medidas como o aborto, e não propriamente incentivando que moças “arianas” engravidassem indiscriminadamente de membros “superiores” da SS, como se chegou a imaginar. O conceito de família era um dos pilares do mesmo nazismo.
Esta moral que não aceitava crianças concebidas unicamente pelo seu alegado potencial genético no entanto não levantou grandes barreiras a medidas de eugenia negativa, como esterilizações compulsórias até os extremos do genocídio. E a moral é, ultimamente, tudo que pode impedir a prática ou não de algo tão terrível.
O editor da ciência da Folha e scibling Reinaldo José Lopes, ao mencionar a possibilidade “alucinada” de clonar um Neandertal resumiu a questão comentando como “a empolgação biotecnológica às vezes borra a fronteira entre o que se pode fazer e o que se deve fazer”. A empolgação biotecnológica que assistimos hoje lembra muito a empolgação eugênica no início do século passado.
No final da fenomenal série “Pandora’s Box” de Adam Curtis, Joseph G. Morone discute o histórico desastroso da energia nuclear:
“Na era de ouro da ciência, em uma época quando a sociedade possuía a visão mais otimista da ciência, possuía-se uma visão basicamente errada a respeito. Acreditavam que esta forma da tecnologia era a forma que ela devia tomar de forma inevitável. E que se esta era a forma que ela tomava, então esta devia ser a forma certa.
Quarenta anos depois, temos uma visão similarmente ingênua, que não é mais tingida por esperança e otimismo, e sim por pessimismo e medo. Mas ainda temos esta visão de que a sociedade não pode moldar a tecnologia. De que a forma que a tecnologia toma é a forma que devemos aceitar. E assim como isto não era verdade em 1950, ela não é verdade hoje.
Esta não é uma história da tecnologia saindo de controle, embora muitos a entendam assim. A história da energia nuclear é uma história de decisões políticas, econômicas e sociais sendo feitas sobre a tecnologia, e as principais decisões não foram tomadas por tecnólogos. Foram tomadas nas salas de negócios.
O que a ciência e tecnologia lhe fornecem é uma gama de possibilidades. E essas possibilidades podem levá-lo a um sem número de direções. É uma força potencialmente liberadora. Mas para chegar lá, a sociedade deve acordar e perceber que não é uma decisão científica, não é uma decisão de engenharia.
É uma decisão moral”.
Destacando a questão moral, relembramos como a moral “tradicional”, promovida por instituições que alegam mesmo serem fontes da moralidade, pode ter impedido que jovens loiros e altos de traços clássicos concebessem bebês indiscriminadamente, valorizando o conceito de família, mas pouco ou nada fez contra o extermínio de famílias inteiras que não possuíam tais traços.
Yao Ming e seus mais de dois metros de altura são um indicador um tanto assustador de que a eugenia, se era e talvez ainda seja largamente uma pseudociência, pode sim produzir resultados concretos. Será esta forma aceitável? Aos chineses, por ora, aparentemente é. A nós, talvez não. Mas como Morone destacou, decisões morais não significam aceitar ou rejeitar completamente uma possibilidade científica, tecnológica, como se a primeira possibilidade fosse um imperativo definitivo em si mesmo.
Decisões morais devem moldar como as possibilidades infinitas da ciência podem ser aplicadas em prol de valores éticos. Um gigantesco desafio.