Montanhas Aleluia e os Óculos de Schrödinger (I)

aleluianuvens 

“Um amigo meu saiu maravilhado depois de assistir a Avatar. Não parava de falar das montanhas flutuantes. E eu disse a ele: ‘Cara, seu planeta tem montanhas gigantescas de água. De água. Que flutuam em cima da sua cabeça todos os dias e quando viram chuva contribuem para o ciclo do líquido mais importante da sua existência’. A maioria vai de um lugar para o outro sem se dar conta da complexidade, maravilha e encantamento que é uma nuvem”. – Ibrahim César, 1001 Gatos de Schrödinger

E se eu lhe disser que ainda mais impressionante que os efeitos tridimensionais dos smurfs gigantes, são os próprios óculos que você deve ter usado no cinema, e como eles podem elevar o “mistério central” da física quântica a algo verdadeiramente absurdo… mas completamente real? Tão real que pode estar agora mesmo frente a seus olhos, e no entanto, como uma montanha de água com a massa de dez mil aviões 747 flutuando no céu, passa despercebido?

Depois de um breve lapso, é mais uma coluna Dúvida Razoável, iniciando uma série na continuação.

A Humanidade não merece ir à Lua (V)

Como negar a beleza das explosões que podem ser vistas acima? É impossível. São fabulosos fogos de artifício. E o são em escala – e potência – nunca vistas, porque são alguns dos poucos testes nucleares realizados no espaço. Mais detalhes da breve história das “bombas do arco-íris” podem ser conferidos no excelente documentário “Nukes in Space”, do premiado cineasta Peter Kuran.

O preço que pagamos por esta pirotecnia nuclear no espaço são seus produtos radioativos dispersados pela atmosfera: alguns átomos liberados nestas explosões bem podem fazer parte de seu corpo neste exato momento. Como você pode imaginar, não são muito saudáveis.

Beleza e terror. Nós ainda estamos falando da conquista espacial.

Eu gostaria de escrever aqui que a visão grandiosa de Wernher von Braun para o futuro da humanidade no espaço era não apenas mais ambiciosa e confiante que a de Kennedy, como também antecipava e reforçava sua mensagem conciliadora. Que mesmo antes de se virem pressionados pelo Sputnik e por Gagarin, os americanos se lançariam na conquista espacial pelas “novas esperanças de conhecimento e paz” que residem no céu infinito. Infelizmente, não foi o que ocorreu.

“Nos próximos dez ou 15 anos, a Terra terá um novo acompanhante nos céus, um satélite artificial que pode ser tanto a maior força pela paz já construída, ou uma das mais terríveis armas de guerra – dependendo de quem o construir e controlar”.

Era assim que começava a série de artigos de von Braun na Collier’s. Na gênese da visão inspiradora que nos prometeu o Universo em 1952, já estava lá o ultimato de que a conquista espacial deveria ser levada à frente pelo medo, sob o espectro da aniquilação nuclear.

Quando lembramos que a Guerra Fria foi o maior dilema do prisioneiro e como a própria conquista da Lua envolvia de início planos de plataformas para destruir a Terra, estávamos nos referindo a planos promovidos entre outros pelo mesmo von Braun. Afinal, era o antigo cientista de Adolf Hitler que mirava as estrelas, mas como o humorista Mort Sahl brincou, às vezes acertava Londres.

dr_strangelove_1ed07 

Wernher von Braun e sua visão na Collier’s talvez representem perfeitamente a história da conquista espacial no século 20, em todas suas contradições, em tudo aquilo que pode haver de melhor e pior em nossa natureza. Somos tanto inspirados pela esperança quanto motivados pelo medo, e quanto maiores os desafios, maiores as esperanças, maiores os medos.

Neste paradoxo aparente, é contudo muito mais comum que finalmente nos comprometamos com ação em projetos onerosos quando nos vemos forçados pelo medo. Ou pelo menos, a história da conquista, da própria corrida espacial é uma longa história de dilemas do prisioneiro. O paradoxo se desfaz quando notamos que é este medo que nos levou a investir na esperança de grandes conquistas.

Porque, como vimos, economicamente algo como o Concorde, e muito menos a conquista da Lua, não fazem sentido. Era preciso algo mais para que nos dedicássemos a eles. E em nossa natureza humana, de macacos dotados de ciência e tecnologia, a esperança por si só não é, ou não foi suficiente para levar à frente tais sonhos. Ao final, foi o medo que motivou a esperança.

“Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva”, menciona o filósofo francês Edgar Morin como um princípio de esperança. “De um modo trágico, quanto mais nos aproximarmos do perigo, mais teremos chances de sair dele, mas aumentarão também mais os riscos de nele mergulhar”.

Nossa breve estada em nosso satélite natural foi um dos sobressaltos mais fantásticos produzidos por uma das eras em que mais nos aproximamos de mergulhar no terror do apocalipse nuclear. Foi tanto a antecipação de um empreendimento que talvez só se torne economicamente viável neste século – ou no próximo – e que determinará a continuidade de nossa civilização a longo prazo, quanto um dos encontros mais próximos com o simples fim de tudo.

Esta é a história a lembrar a partir da pegada de Neil Armstrong. E com uma história assim, a humanidade não merece ir à Lua. Ciência e tecnologia nos oferecem o Universo infinito, mas como macacos nos preocupa muito mais o que outros macacos andam fazendo. Acabamos todos prisioneiros do poço gravitacional terrestre.

Com uma história assim, a humanidade não merece ir à Lua.

Conseguiremos nos livrar de todos estes dilemas? Depois de toda uma série de textos pretendendo mostrar por que não merecemos ir à Lua, não poderíamos parar aqui em tom fúnebre. Ou talvez pelo tom apocalíptico, nos sejam despertados os sonhos, afinal, este que escreve aqui é também um macaco.

Encerraremos esta série a seguir com as esperanças de que mereçamos voltar à Lua, e consigamos alcançar as estrelas – sem precisar encarar o abismo.

A Humanidade não merece ir à Lua (IV)

footprint

“Nós escolhemos ir à Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque são fáceis, mas porque são difíceis, porque esse objetivo servirá para organizar e medir o melhor de nossas energias e habilidades, porque esse desafio é um que estamos dispostos a aceitar, um que não estamos dispostos a adiar, e um que pretendemos vencer, e aos outros também… Há muitos anos o grande explorador britânico George Mallory, que morreria no monte Everest, foi questionado por que queria escalá-lo. Ele disse: ‘Porque está lá’. Bem, o espaço está lá, e nós vamos escalá-lo, e a lua e os planetas estão lá, e novas esperanças de conhecimento e paz estão lá”. – John F. Kennedy, 1962

Independente do que nos motivou, nós chegamos lá, como a pegada de Neil Armstrong atesta. Ao final a inspiradora visão de Kennedy foi cumprida, e para surpresa mesmo dos mais otimistas o foi no prazo estabelecido. Para cumpri-la, no entanto, um pequeno detalhe foi deixado de lado: as “outras coisas”, os outros planetas. E assim a visão mais ambiciosa de um certo Wernher von Braun foi quase completamente deixada de lado.

Para compreender como a pegada de Armstrong é também uma tragédia, basta compará-la com a visão de von Braun.

444-2bis 

Dez anos antes do discurso de Kennedy, enquanto os Baby Boomers cresciam na era de ouro do pós-guerra americano, von Braun expôs a primeira visão completa para a conquista espacial do sistema solar através de uma série de artigos na popular Collier’s magazine.O Homem Conquistará o Espaço Em Breve!”, assegurava a chamada confiante para uma das mais influentes obras de divulgação científica, combinando o texto de von Braun e 23 especialistas com ilustrações magníficas de Chesley Bonestell admiradas até hoje.

Sem esquecer das crianças, o cientista alemão naturalizado americano também a divulgou em várias mídias, em especial, em um documentário produzido por Walt Disney televisionado para 42 milhões de pessoas em 1955, no que também é um marco de popularização utilizando a animação de Disney para apresentar “ciência-factual” (um trocadilho de Walt com “ciência-ficção”). Você confere abaixo um trecho do programa com o próprio von Braun apresentando o projeto de seu gigantesco foguete:

O plano mestre partiria da criação deste foguete reutilizável, que em inúmeros lançamentos construiria de partes pré-fabricadas uma estação espacial permanente em formato de anel para simular gravidade – a estação vista em 2001, Uma Odisséia no Espaço foi baseada nesta visão. A estação espacial por sua vez seria a plataforma para a construção de nada menos que três enormes espaçonaves que levariam uma expedição de 50 homens à Lua em 1977. Você leu certo: cinquenta astronautas. Não apenas para deixar suas pegadas lá, mas para estabelecer uma base lunar permanente.

E a conquista do espaço iria além. Construída a estação espacial e a base lunar permanentes, o próximo alvo só podia ser Marte. Para o planeta vermelho uma frota de nada menos que dez espaçonaves com 70 astronautas ecoaria a frota de Cristóvão Colombo – incluindo o detalhe de que mesmo que uma das espaçonaves se perdessem no longo caminho, a missão desbravadora ainda teria sucesso. Ao final, a humanidade teria firmado sua presença pelo sistema solar conquistando outros planetas.

A confiança e o otimismo extremos que esta visão de conquista espacial representava talvez seja melhor percebida neste filme recente, largamente baseado nos artigos de von Braun na Collier’s, no estilo de pseudo-documentário de uma realidade alternativa. “Man Conquers Space”:

A realidade que conhecemos foi bem diferente. Toda a celebração do projeto Apollo na primeira parte desta série foi sincera e válida, e isto ficará mais claro no texto a seguir e principalmente ao final, mas nesta reflexão sobre a humanidade e a conquista espacial é importante lembrar que fomos à Lua, mas esquecemos as “outras coisas”.

Ciência: vaporizando mosquitos, salvando vidas

Esse é com certeza o vídeo mais sensacional que você verá em muito tempo: mosquitos sendo vaporizados em vôo por raios laser.

Isso vai muito além de queimar formigas com lupas porque aqui tudo é feito por um sofisticado sistema automático. Ele é capaz de detectar insetos voadores e então, pelo padrão de batida de suas asas, não apenas descobrir quais são mosquitos e quais podem ser, por exemplo, borboletas. Ele também pode diferenciar mosquitos machos de fêmeas!

“Se você for um purista, poderia matar apenas as fêmeas”, que são as que se alimentam de sangue, diz Nathan Myhrvold ao WSJ. Mas como são mosquitos, deve provavelmente “exterminar todos”.

Myhrvold não é um inventor de fundo de quintal. É um antigo executivo da Microsoft que fundou a Intellectual Ventures, dedicada a investir em novas idéias. Em 2007 ele ouviu do astrofísico Lowell Wood a idéia de matar mosquitos com lasers. Wood, por sua parte, não era maluco – havia trabalhado no laboratório Lawrence Livermore com Edward Teller, pai da bomba de hidrogênio e principal promotor na década de 1980 de uma idéia familiar. Era a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI), mais conhecida como o projeto Guerra nas Estrelas, que pretendia criar um escudo anti-míssil para proteger os EUA de mísseis nucleares. Entre outros tecnologias, através de raios laser interceptando ogivas em pleno ar.

O que leva um astrofísico envolvido com lasers e armas nucleares a tentar matar mosquitos?

A cada 43 segundos uma criança morre de malária no mundo. São ao redor de um milhão de mortes anuais para uma das doenças mais perniciosas a assolar nossa espécie, e que está muito longe de ser erradicada. Não existe vacina e os métodos de prevenção envolvem assim controlar o vetor, que é o mosquito. Inseticidas são uma luta constante contra a adaptabilidade destes bichos voadores, e as tradicionais telas, como todos que já usaram bem sabem, são úteis mas não funcionam tão bem. Em países menos desenvolvidos, que são justamente as maiores vítimas, o uso de telas é ainda mais problemático porque cobrir a cama com véu pode parecer a menor das preocupações de um aldeão.

Aqui entra o conceito de “cerca fotônica”. Instalando efetivamente um sistema de defesa contra mosquitos, ele cercaria uma área e impediria qualquer mosquito de entrar. Os lasers não ficariam ligados constantemente, claro, sendo ativados apenas ao detectar-se o zumbido certo.

smartfence_01-10-08

A cerca não precisa cobrir a parte superior da área protegida porque mosquitos não voam muito alto.

Mosquitos já estão sendo exterminados, vídeos sensacionais filmados, e vidas poderão ser salvas. No entanto, a pergunta que muitos estarão fazendo é se algo assim poderá salvar milhões? Em áreas onde nem telas contra mosquitos estão disponíveis ou são utilizadas corretamente, poderia um sistema computadorizado com lasers ser viabilizado?

Talvez não, mas todos devemos torcer para que seja possível. O barateamento de equipamentos eletrônicos, incluindo chips e diodos emissores de raios laser, através do avanço da física de estado sólido oferece uma esperança concreta de que chips de silício ainda venham a entrar diretamente no combate a protozoários.

Se hoje você pode comprar um apontador laser por menos de R$10, quem sabe em um futuro próximo não haja vendedores ambulantes oferecendo tecnologia de Guerra nas Estrelas para exterminar mosquitos? Parece pouco plausível? Que tal então este cenário, sugerido pelo amigo Charles Pilger:

“[Embuta o dispositivo em telefones] celulares. Pode parecer piada, mas vale a pena lembrar que na África celular não é só telefone, é carteira também (há toda uma economia formada em torno do uso de créditos de celular, que passam a valer como moeda). Se é possível ter um laser de mão, por que não embutir num celular, junto com um microfone capaz de detectar o zumbido certo?”.

Um dispositivo desta natureza poderia acabar sendo mais simples e eficiente que uma tela de pano. Ou, no mínimo, é uma esperança a mais.

“Nós pensávamos que poderíamos dar alguma contribuição para acabar com a Guerra Fria” através do programa Guerra nas Estrelas, disse o dr. Jordan Kare, colega de Wood. “Agora estamos tentando contribuir um pouco em uma guerra que tem se estendido por muito mais tempo e ceifado muito mais vidas”.

Ciência: salva vidas, às vezes de forma indescritivelmente fabulosa. [via Wired, WSJ, Intellectual Ventures]

A Humanidade não merece ir à Lua (III)

 351760_4249

A história do desenvolvimento do Concorde lembra muito o dilema do prisioneiro. Em menos de dois anos os custos já haviam dobrado, e frente a uma crise econômica, o governo britânico tentou abandonar o projeto em 1964. Como vimos, havia um porém. O novo governo de Harold Wilson descobriu que deveria pagar ao parceiro francês uma multa pelo abandono tão grande que na prática seria tão cara quanto continuar financiando o projeto.

Os franceses, por sua parte, seguramente não ficaram felizes em financiar um custo mais de seis vezes superior – e em algumas estimativas, mais de quinze! – ao orçamento inicial por um avião que mesmo antes de ser completado já dava sinais de que não operaria com lucro. Isto é, além de tudo, o investimento brutal não seria recuperado. Em vários momentos, os franceses também buscaram abandonar o projeto, mas então, seriam eles a pagar multas aos britânicos.

A solução racional era e é óbvia. Bastava que os dois países sentassem de novo à mesa e cancelassem o projeto conjuntamente, revisando o tratado. “Mas em vista da forma como o tratado havia sido firmado, nenhum dos lados podia permitir que parecesse que era aquele desejando o cancelamento, uma vez que o outro veria uma chance de recuperar seu prejuízo ao afirmar que eles, claro, queriam continuar”, escreveu Peter Gillman no The Atlantic pouco após a entrada em serviço do avião em 1977. Como no dilema do prisioneiro, as partes foram incapazes de cooperar frente à possibilidade que a outra levasse vantagem, e se viram assim condenadas a um prejuízo combinado muito maior.

Que um acordo lembrando um dilema da teoria de jogos fosse firmado é impressionante em si mesmo. Como explicá-lo? “Em cada caso, motivações tecnológicas e políticas superaram considerações econômicas”, conclui um estudo de historiadores da Universidade de Westminster. Motivações tecnológicas e políticas e a própria Teoria de Jogos nos levam finalmente de volta ao projeto Apollo.

sputnik

O dilema do prisioneiro que levou o homem à Lua começou com a surpresa do Sputnik em 1957. Uma enorme conquista tecnológica, o primeiro satélite artificial, e também um aviso aos americanos de que os russos haviam lançado sobre suas cabeças uma pequena esfera metálica contra a qual nada podiam fazer. A esfera polida era bela, brilhante e inofensiva, transmitindo simples bips eletrônicos. Mas bem poderia ter sido uma arma. De certa forma, havia sido uma arma psicológica poderosíssima. Não houve dilema do prisioneiro em maior escala do que a Guerra Fria.

Começava naquele momento a corrida espacial, que de início possuía um sentido muito claro: domine-se o espaço, domine-se o planeta. Mesmo a conquista da Lua era um objetivo claro. Conquiste-se a Lua, conquiste-se o planeta: o primeiro país a colonizar a Lua encontraria lá uma plataforma de lançamento invulnerável a partir da qual se poderia aniquilar a própria Terra. Quando Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a orbitar o planeta, John Kennedy finalmente se convenceu de que os americanos escolheriam ir à Lua não porque era fácil, nem apenas porque era difícil, mas porque representava o ponto de chegada de uma corrida que de início parecia valer tudo ou nada. E eles estavam perdendo. TVs coloridas de nada adiantariam em meio a uma chuva de ogivas nucleares do espaço.

Como o orçamento inicial do Concorde, isso rapidamente mudou. Com o desenvolvimento de submarinos nucleares, mísseis podiam ser lançados do fundo do mar de qualquer ponto dos oceanos, mesmo sob as calotas polares, representando uma plataforma de lançamento móvel praticamente invulnerável. No evento de um apocalipse nuclear, tanto astronautas na estação espacial quanto marinheiros em submarinos nucleares sobreviverão dentro de suas latas um pouco mais do que nós sobre a terra devastada. E submarinos são muito mais baratos que estações ou colônias espaciais. Foi acima de tudo a economia que fez com que um thriller como “Caçada ao Outubro Vermelho” envolvesse submarinos e não naves espaciais.

Em meados dos anos 1960 já era claro que chegar à Lua não significava o ponto final e definitivo de uma dominância absoluta no espaço, muito menos do planeta. O projeto Apollo, no entanto, já estava em curso e abandoná-lo não era uma alternativa viável em plena Guerra Fria, por “motivações tecnológicas e políticas”. Os EUA precisavam reafirmar sua superioridade tecnológica ainda que no espaço ela não significasse tanto quanto se imaginava de início.

Curiosamente, o projeto Apollo não estourou seu orçamento inicial, mas a explicação talvez esteja na anedota de que o administrador da NASA, James Webb, pediu que seus engenheiros fossem muito sinceros ao estimar os custos do programa – e então dobrou o valor antes de apresentá-lo a Kennedy. Em seu ápice, ele consumiu mais de 5% do orçamento federal de todo os EUA, algo impossível fora do contexto da Guerra Fria, com o objetivo único de pisar na Lua.

E esta se tornaria a tragédia do projeto Apollo. No próximo texto.

[Imagem do topo: ctechs/sxc.hu]

A Humanidade não merece ir à Lua (II)

concorde-b52 

Continuando a série iniciada ontem, começamos aqui com dois outros feitos tecnológicos, mas a história desta vez não é tão feliz e inspiradora. À esquerda temos o Concorde, à direita o B-52. Ambos descendentes do primeiro avião – embora devam mais a Santos Dumont que aos irmãos Wright, mas esta é outra história. Ambos são feitos tecnológicos notáveis.

Desde que entrou em operação em 1976 até sua aposentadoria em 2003, você, cidadão comum – e razoavelmente abastado –, poderia comprar uma passagem do Concorde e cruzar o Atlântico a mais de duas vezes a velocidade do som, sentado confortavelmente bebendo champanhe. Grite “Uau!” e saiba que você poderia chegar até o ouvido mais próximo duas vezes mais rápido que o seu grito. Sentado e bebendo champanhe. “Uau!”.

E, no entanto, hoje já não se pode mais fazer isto. Com pouco mais de dez mil dólares ainda é possível comprar um passeio em um caça supersônico russo, mas não é a mesma coisa. Não se poderá beber champanhe, por exemplo. E que seja um avião caça, militar, nos leva ao bombardeiro B-52.

Desenvolvido a partir de 1952 e introduzido em serviço em 1955, o B-52 ainda é uma das principais aeronaves da Força Aérea dos Estados Unidos. Usado no Vietnã, nas duas guerras do Iraque e no Afeganistão, ele está muito longe de ser aposentado. Em verdade, os militares americanos planejam manter este avião subsônico em serviço pelo menos até o ano de 2040 (!). Seriam mais de 80 anos voando e despejando bombas pelo planeta, mais tempo do que o que levou do Flyer dos irmãos Wright à potência dos foguetes do Saturno V.

Se a foto do reflexo do Flyer no traje de Armstrong representa o imenso progresso tecnológico de que somos capazes, o B-52 é um símbolo concreto de estagnação. Resulta, no entanto, que ambos têm muito mais em comum do que se gostaria.

strangelove 

O motivo pelo qual este bombardeiro ainda está em serviço não é devido à nossa incapacidade de criar bombardeiros mais avançados. Pelo contrário, novas formas de lançar bombas têm sido desenvolvidas constantemente. Em 1964, há mais de quarenta anos e antes que pisássemos na Lua, já se havia criado o protótipo XB-70 Valkyrie, um bombardeiro com capacidade para toneladas de armas, capaz de voar a Mach 3, mais rápido que o próprio Concorde criado anos depois. Outras aeronaves como o B-1 ou o B-2, ainda em serviço, representam os avanços aeronáuticos que continuaram desde a introdução do B-52 há mais de meio século. Não é a ausência de tecnologia que faz com que este dinossauro voe até 2040.

“É a economia, estúpido”, bradou a campanha de Bill Clinton contra George Bush pai em 1992. Clinton ganhou. Bombardeiros B-52 são baratos, e funcionam bem para jogar bombas ao redor do mundo. Eles ganharam. Se a União Soviética não houvesse se dissolvido e a corrida armamentista desenfreada ainda estivesse em curso, é provável que o B-52 já tivesse sido aposentado em favor de algo mais moderno. Mas não por coincidência, a União Soviética também ruiu em grande parte por causa do fracasso de sua economia.

Economia também é o que levou à aposentadoria do Concorde em 2003. Apenas 20 unidades foram construídas nos quase trinta anos de serviço, muito menos do que o planejado. E a própria história do desenvolvimento do Concorde é ilustrativa do que se pretende discutir aqui.

Criar uma grande aeronave comercial supersônica não era nem nunca foi barato, e pelo visto, jamais foi economicamente viável. Diversos países se aventuraram, mas todos desistiram… por causa da economia. Houve apenas duas exceções: o próprio Concorde, e então o soviético Tupolev Tu-144, desenvolvido às pressas pelos soviéticos como resposta ao projeto ocidental e aposentado igualmente às pressas, por mostrar-se operacionalmente inviável.

É notável que tanto o Tupolev quanto o Concorde possam ser vistos como resultados de disputas. Como já mencionado, o projeto soviético opunha-se ao do Concorde e foi um vergonhoso fracasso. A surpresa é que o próprio projeto ocidental não foi uma cooperação tão feliz, e a infelicidade da parceria entre Reino Unido e França pode ser mesmo o motivo de seu sucesso. Ou fracasso, dependendo do ponto de vista.

20070118_napoleon

Quando franceses e ingleses firmaram o acordo de desenvolvimento do Concorde, este incluía a condição de que caso qualquer dos países abandonasse o compromisso, teria que pagar pesadas multas ao outro. Isso se tornaria um pesadelo aos políticos responsáveis nos dois países porque o desenvolvimento estourou todos os orçamentos previstos, mas abandonar o acordo ainda sairia mais caro que empurrá-lo com a barriga e continuar investindo.

Ao final, o Concorde foi levado até o final a um custo seis vezes maior do que o previsto. Nenhuma companhia aérea além de British Airways e Air France comprou unidades, e as duas companhias só adquiriram suas unidades porque as receberam por generosos financiamentos. Quase todas as rotas iniciais foram canceladas. Foram bilhões de investimento público em aviões comerciais supersônicos que tudo indica não terem sequer rendido o suficiente para cobrir tal gasto.

O que isso tem a ver com o B-52 e a Lua? No próximo texto da série.

A Humanidade não merece ir à Lua (I)

wright-armstrong

Reconhece a imagem acima? Está um tanto distorcida, mas é o Flyer dos irmãos Wright, o primeiro avião a voar em 17 de dezembro de 1903. A razão da pequena distorção é singela: o Flyer está sendo visto como um reflexo dourado em uma réplica do traje lunar de Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua em 20 de julho de 1969.

O reflexo no visor recoberto de ouro, em um breve encontro do Flyer original e da réplica do traje de Armstrong, se deu brevemente no ano passado, permitindo a estupenda fotografia repleta de significado. Como destacou a revista Air and Space, apenas 65 anos e meio separam o primeiro avião do primeiro pouso na Lua, ilustrando a rapidez com que fomos de um pequeno vôo a um gigantesco salto. Das asas de pano aos trajes multi-camada capazes de suportar variações de temperatura de centenas de graus e proteger um ser humano em outro mundo. Das dezenas de metros do primeiro vôo, aos quase 400.000 km que nos separam do satélite natural.

wrightflyer-armstrong

“Imagine nascer em 17 de dezembro de 1890, em um mundo onde os esforços para o vôo motorizado não tinham ido a lugar algum em toda história humana. Em seu aniversário de 13 anos, os humanos finalmente solucionam o enigma de voar. E quando você alcançasse os 79 anos e meio, humanos pisariam na Lua. Coisa pouca, não?”.

Como não se orgulhar disto? Apesar de todas nossas limitações, fomos capazes de em menos de três gerações não só conquistar o vôo dos pássaros, como realizar um feito que até onde sabemos nenhum ser vivo, terrestre ou não, realizou em bilhões de anos. Não existem pássaros capazes de ir à Lua. Pisar na Lua representou o ápice daquilo que nos faz humanos, daquilo que podemos fazer e que, até onde sabemos, ninguém nem nada mais pode fazer.

Se não formos nós a colonizar outros planetas, não há evidência de que a natureza colonize com vida abundante o sistema solar, muito menos outros sistemas estelares. De fato, é possível que outros planetas no sistema solar como Marte já tenham abrigado vida, mas hoje ela mal se faz presente, se é que ainda existe. A terceira grande rocha a partir do Sol é o único local onde conhecemos vida, e vida com uma diversidade incrível.

Incluindo aí uma espécie capaz de visitar outros mundos não através de alguma característica biológica especial desenvolvida pela evolução em bilhões de anos. Nada contra os pássaros e seu vôo. Mas somos capazes de feitos concretizados por tecnologia, que transforma em 65 anos um avião de madeira e pano que mal se sustenta no ar em um foguete de 100 metros de altura e mais de 3.000 toneladas capaz de lançar 47 destas em órbita de outro mundo.

Podemos isto porque somos humanos, e se há algo com que se orgulhar em ser humano, é lembrar do que fizemos, do que pudemos e principalmente, do que podemos fazer. Não se pode enfatizar o quanto de mais valoroso o sucesso do projeto Apollo representa, as conquistas são intermináveis.

Depois de todo este entusiasmo, no entanto, no próximo texto tentarei explicar por que o projeto Apollo também representa por que não merecemos ir à Lua, em uma série de textos aqui em 100nexos com algumas reflexões sobre o cancelamento do projeto americano de retornar à Lua noticiado recentemente. [imagem via cgr v2.0]

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM