Se a galáxia de Andrômeda fosse mais brilhante…
O objeto mais distante que podemos ver a olho nu, em uma noite suficientemente escura e limpa, é a galáxia de Andrômeda. Ela surge no céu apenas como uma tênue mancha, e com isso os planetas e estrelas próximas de nossa própria galáxia nos chamam muito mais a atenção.
Se Andrômeda fosse mais brilhante, pareceria algo como a imagem acima composta por Tom Buckley-Houston, fazendo um pouco mais de jus ao que é: uma galáxia com 140.000 anos-luz de tamanho, maior do que nossa própria Via Láctea.
Mais de dois milhões de anos-luz de distância esmaecem o brilho das bilhões de estrelas de Andrômeda, assim como distâncias ainda maiores fizeram passar despercebido o fato de que há mais de 100 bilhões de galáxias no Universo.
[via Reddit, Bad Astronomer]
O Maior Mapa do Mundo do Mundo
Com 131 metros de altura, este é segundo o Livro dos Recordes Guinness o maior mapa do mundo do mundo. A obra foi criada pelo artista Christoph Rihs em 1994 sobre uma torre de resfriamento desativada na cidade de Meppen, Alemanha. E a continuação de um trabalho que começou pintando mapas-múndi em cilindros muito menores.
E o mapa gigante ainda está lá!
A ideia de um enorme mapa do mundo lembra o conto de Jorge Luis Borges de um mapa tão grande quanto o próprio espaço que representava:
“Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Cartográficas”.
[via Reddit, Brilliant Maps]
Planeta vivo: admirando um raso e úmido ponto azul
Observe o movimento das nuvens pelo planeta durante uma semana do ano de 2005, e o que era para representar a evolução de um tufão na costa da China se torna uma evidência de que o planeta Terra parece um único ser vivo. Com pulsos e movimentos de complexidade absurda, pode-se entender melhor por que é tão difícil acertar a previsão do tempo.
Só há um detalhe: repare que à medida que o dia passa, as partes iluminadas do planeta continuam as mesmas. É porque o vídeo é uma representação gráfica, não são imagens reais capturadas do espaço. Ao invés, um mosaico de dados de uma série de satélites foi composto para criar essa imagem tão clara do movimento acelerado da camada de nuvens sobre o planeta.
Pois se o que você quer ver agora é um vídeo capturando o planeta de verdade, aqui está:
O Hypercubic explica melhor como James Tyrwhitt-Drake criou o vídeo a partir das imagens do satélite russo Elektro-L. Ainda que haja alguns ajustes no espectro visível – grosso modo, nas cores – são imagens reais em movimento do planeta. Poderíamos ver isto com nossos próprios olhos. Quais são as principais diferenças entre a representação e a realidade?
Além da luz do Sol passando pela Terra e marcando os dias e noites, a maior diferença está em como o relevo das nuvens foi exagerado no primeiro vídeo. E entender isso torna tudo isso ainda mais curioso, porque veja, toda essa complexidade de nuvens que transmite a sensação de um ser vivo se dá em uma camada extremamente fina sobre a superfície do planeta. Particularmente, a maior parte de toda aquela agitação se dá na troposfera, a camada mais baixa da atmosfera que vai até pouco mais de 12km de altitude.
Considere que a Terra tem um diâmetro de quase 13.000km, toda aquela agitação ocorre em uma espessura ao redor de um milésimo deste tamanho. Olhe para seu polegar, considere que ele tem, ora, uma polegada de tamanho. Sua pele tem ao redor de 2,5mm de espessura, ou um décimo deste tamanho. Se a troposfera, com todas as nuvens de tempestades, fosse considerada a “pele” de nosso planeta, ela seria cem vezes mais fina que a nossa própria pele. Muito mais delicada.
Outra representação, baseada em dados reais, dá uma dimensão desta delicadeza:
A esfera azul maior representa toda a água no planeta Terra. Do oceano à calota polar, da tempestade ao orvalho, toda a água no planeta poderia ser reunida em uma esfera com 1.385km de diâmetro, um décimo do tamanho do planeta – mas um milésimo de seu volume. Novamente, na analogia com nosso próprio corpo, ao redor de pouco mais de 60% de nosso corpo é composto de água. E você não se considera um ser particularmente pegajoso. A Terra, como ser vivo apenas escassamente úmido, pensaria diferente.
Se o planeta parece vivo, é porque esta minúscula proporção de água se distribui de forma absurdamente instável — passando de gelo a água e vapor — percorrendo a camada extremamente fina de sua superfície entre as profundezas do oceano e a alta atmosfera.
Cidadania Elementar: como 2 minutos podem mudar o país
“Elementar, meu caro Watson“. Em “O signo dos quatro“, para testar as notórias habilidades dedutivas do detetive Sherlock Holmes, o pobre Dr. Watson lhe entrega um relógio de bolso que acaba de ganhar e pede que Holmes opine sobre o caráter e hábitos do antigo dono. A dedução é devastadora:
“Ele era um homem de hábitos desordenados — muito desordenados e descuidados. Iniciou a vida com boas perspectivas, mas desperdiçou as oportunidades, viveu algum tempo na pobreza, com intervalos ocasionais de prosperidade, e por fim, entregando-se à bebida, faleceu“, deduz Holmes, simplesmente analisando o relógio de bolso.
Watson fica consternado, não menos porque o antigo dono do relógio era seu falecido irmão mais velho. A riqueza de detalhes só poderia significar que o detetive havia “decerto andado fazendo indagações sobre a história de seu infeliz irmão, e agora fingia ter deduzido de um modo abstruso aquilo que já sabia“.
Sherlock Holmes logo se desculpa, mas assegura que até então desconhecia que Watson tinha mesmo um irmão. Era apenas a aplicação de seu raciocínio dedutivo:
“O que lhe parece estranho o é apenas porque você não acompanhou a linha do meu pensamento nem observou pequenos fatos dos quais se podem tirar grandes deduções. Por exemplo, comecei por certificar-me de que seu irmão era descuidado. Observando a parte inferior da caixa desse relógio, notará que ela não está gasta apenas em dois lugares, mas está toda amassada e arranhada: conseqüência do hábito de guardar objetos duros, tais como chaves ou moedas, no mesmo bolso. Decerto, não é grande façanha supor que um homem que trata tão desdenhosamente um relógio de cinqüenta guinéus seja um homem descuidado. Também não é muito rebuscada a dedução de que uma pessoa que herda um objeto de tamanho valor não esteja bem provida noutros sentidos“.
E continua:
“Nas casas de penhor da Inglaterra é muito comum gravarem o número da caução, com um alfinete, na parte interna da tampa. É mais prático do que uma etiqueta, e não há perigo de que o número seja trocado ou perdido. Há pelo menos quatro desses números visíveis para a minha lente, no interior dessa tampa. Dedução principal: seu irmão via-se freqüentemente em apuros financeiros. Dedução secundária: ocasionalmente melhorava de vida, pois, do contrário, não poderia resgatar o penhor. Finalmente, peço-lhe que olhe para a tampa interna, onde fica o buraco da chave. Veja os milhares de arranhões em torno dele… são marcas deixadas pela chave, ao escorregar. A mão firme de um homem sóbrio nunca teria feito esses sulcos. Mas podem-se vê-los sempre no relógio de um bêbado. Quando lhe dá corda, à noite, tem a mão insegura“.
É fácil admirar a perspicácia de um detetive como Sherlock Holmes, mas a triste verdade é que Holmes é um personagem de ficção. A feliz verdade é que na vida real existem exemplos ainda mais impressionantes de perspicácia.
Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, estimar quantos tanques de guerra os nazistas estavam fabricando era algo crucial para decidir estratégias de guerra. Não seria impressionante se, analisando apenas um tanque de guerra nazista, um “Sherlock Holmes” da vida real conseguisse elaborar uma série de deduções fantásticas do inimigo?
Pois o que aconteceu foi que analisando dois tanques nazistas capturados, analistas aliados conseguiram estimar que os alemães estavam produzindo 270 tanques ao mês. O Ricardo Bittencourt lá no blog Caixa Azul explica em Matemática x Tanques de Guerra os detalhes de como estatística foi usada para esta incrível dedução. Ao final da guerra, após verificar os registros de produção dos próprios alemães, descobriu-se que o número de tanques produzidos naquele mês foi de… 276.
De Sherlock Holmes a tanques de guerra, estes nexos foram para chegar às eleições:
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=wQEsHOqXP9s”]
Cito aqui o “Você Fiscal“:
Apesar do que é divulgado, a urna eletrônica brasileira tem falhas gravíssimas de segurança. Ninguém da sociedade civil tem acesso aos detalhes de como os votos são contados pelo software da urna.
Os últimos testes em 2012, mesmo limitados e curtos, quebraram o sigilo do voto com facilidade. O TSE suspendeu a realização de novos testes depois disso.
E o que nós fazemos agora? Bem, podemos aproveitar uma oportunidade única de sermos detetives, ou melhor, fiscais, de verdade, do principal evento de cidadania em nosso país. E não é nada complicado ou burocrático.
Não tão diferente de como os aliados, analisando apenas um par de tanques, puderam estimar a produção de todos os tanques alemães, nós podemos fiscalizar com surpeendente efetividade os resultados das urnas registrando apenas alguns Boletins de Urna. Com um simples celular.
O Você Fiscal é um aplicativo que permite a qualquer eleitor fiscalizar a urna em que votou, registrando o Boletim de Urna (BU) ao fim da eleição para detectar fraudes através de amostragem colaborativa.
O Você Fiscal é iniciativa do Prof. Diego Aranha, da Unicamp, pesquisador respeitado nas áreas de segurança computacional e criptografia. Tudo colaborativo, transparente e simples.
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=3sIE6AxJKkU”]
Podemos duvidar das pesquisas eleitorais, podemos questionar a confiabilidade do processo eleitoral, mas mais do que isso, podemos de verdade fazer algo para garantir que o processo eleitoral seja mais transparente e com isso, válido. Fotografar um punhado de boletins de urna pode não parecer fazer muita diferença, mas com muito menos alguns dos segredos mais guardados pelos nazistas foram revelados.
E, veja, pelos riscos no seu celular podemos deduzir que você pode dedicar o que talvez sejam os minutos mais bem gastos de cidadania.
Do Barro ao Espaço (so was Sagan)
Acima, o mapa estelar do K 8538, um disco de barro com escrita cuneiforme representando o céu em quadrantes como visto pelos sumérios há quase três milênios.
Abaixo, o disco folheado a ouro enviado com as sondas Voyager e que já adentra o espaço exterior. Ele contém na parte inferior esquerda um padrão radial com 15 linhas, 14 das quais representam pulsares e sua distância relativa ao Sol.
Há uma semelhança visual entre o disco sumério e o da NASA, e o mais fabuloso é que ela vai além disso. Troca-se o cuneiforme pelo binário e o céu como visto da Terra pela Via Láctea demarcada por pulsares e seu centro, mas os dois riscados cumprem o mesmo objetivo.
Ambos são representações simbólicas do conhecimento adquirido por aqueles que olhavam para as estrelas e permitem que inteligências separadas pelo espaço e tempo possam encontrar umas às outras enquanto ainda olharem para as estrelas. Ambos discos dizem “eu estive aqui”.
Se você conhece algo das constelações, pode estudar o disco sumério e compartilhar este conhecimento através do espaço e tempo com a pessoa que marcou aqueles riscos na argila entre os rios Tigre e Eufrates há milhares de anos. Se não conhece, ainda há tempo de conhecer. E ainda há tempo para descobrir o que são pulsares e como eles permitem localizar nosso sistema solar no espaço-tempo mesmo a muitos milhares de anos-luz de distância.
Algum dia, daqui a muito tempo, em algum lugar, alguma outra inteligência pode encontrar o disco dourado das sondas Voyager e ao compreendê-lo, também compartilhará deste conhecimento. De alguma forma, saberá que você, assim como a cultura, a ciência e particularmente a pessoa que criou aquele disco de barro, existiu.
Porque a inteligência, ainda que rara, é tão Universal quanto as estrelas.
Os Vestidos do Golden Globe: Saias, Barbas e Psico-história
“Moda (s.f.): estilo passageiro que dita o modo de vestir, viver, falar, etc.“
Enquanto a moda comenta hoje os vestidos do Globo de Ouro, há mais de sete décadas atrás era publicado um estudo com o curioso título de “Três Séculos de Moda em Vestidos Femininos: Uma Análise Quantitativa” (Richardson, Kroeber, 1940). Sim, há ciência antropológica na moda! E as conclusões podem nos levar a barbas e ficção científica! Mas comecemos um nexo de cada vez.
Centímetros, não sentimentos
A moda tem seu aspecto pessoal, subjetivo, qualitativo. Ainda assim, e especialmente na moda de roupas, ela produz algo físico, objetivo, mensurável e quantitativo: uma peça de roupa pode ser medida em centímetros.
Foi justamente a partir desta sacada que em 1919 o antropólogo Alfred Kroeber encontrou a oportunidade para estudar a evolução da moda de forma objetiva. Não é que fosse um um especial apreciador de vestidos, mas é que folhear imagens de vestidos em revistas de moda feminina “fornece um conjunto conveniente e promissor de dados para um estudo de como mudanças estilísticas ou estéticas ocorrem quando são examinadas quantitativamente ao invés de intuição ou sentimentos subjetivos”. Um tanto o oposto do que se esperaria de alguém folheando revistas de moda.
Em 1940, Jane Richardson expandiu a pesquisa inicial de Kroeber e cobriu os três séculos de moda, analisando vestidos de 1605 a 1936 e é assim graças a Richardson e Kroeber que não precisamos vasculhar três séculos de moda para ter uma ideia dos dados e ao invés simplesmente apreciar seus gráficos.
Especialmente claro é o gráfico da medida da largura da saia de 1788 a 1936:
Note um vale ao redor de 1810, com larguras de saia mais estreitas; um pico em 1860, saias mais largas; e um novo vale ao redor de 1910-1924, saias outra vez mais estreitas.
Uma das conclusões dos antropólogos é que a moda não é uma reviravolta tão livre quanto seus criadores costumam pintá-la: sim há flutuações que não podem ser previstas, especialmente em períodos de instabilidade, e a moda deste ano é diferente da do ano anterior. São os pontos no gráfico. Contudo, analisadas ao longo do tempo em uma média móvel de cinco anos – a linha sólida — as medidas dos vestidos mudam com uma certa inércia, e acabam produzindo uma curva mais suave de periodicidade.
“O papel de indivíduos particulares em moldar o estilo básico de vestimenta é pequeno. A influência de indivíduos criativos ou importantes é provavelmente exercida em sua maior parte em acessórios de moda transitórios”, concluem os autores. Supostos grandes influenciadores da moda como Maria Antonieta eram mais provavelmente apenas representantes de movimentos culturais muito maiores a quem o crédito pela mudança foi atribuído.
Se estas conclusões – a de que a moda não muda no vácuo e apresenta inércia – parecem óbvias, e vasculhar três séculos de registros de vestidos parecer uma perda de tempo, é apenas porque elas parecem óbvias em retrospecto. Sem esses dados, seria apenas um palpite. Graças a Richardson e Kroeber, é uma conclusão apoiada em dados. É ciência!
Somatória de Barbas
Inspirado pelas conclusões e metodologia de Richardson e Kroeber, o economista Dwight E. Robinson resolveu analisar 130 anos de barbas publicadas na revista Illustrated Longon News, de 1842 a 1972. Em “Moda no Barbear e Corte de Barbas: os Homens da Illustrated London News, 1842-1972”, encontramos estes excelentes gráficos de predominância de costeletas, bigodes e barbas ao longo dos anos:
Como pode ser notado no último gráfico acima, a somatória de todos os tipos de barba mostra um padrão maior ainda mais claro. Ao redor de 1880 quase todos usavam algum tipo de barba, em 1970, quase ninguém. E, de forma intrigante, barbas em particular apresentam uma grande correlação com a largura de vestidos:
Ou seja, enquanto mais homens usavam barbas, mais mulheres usavam saias largas. De novo, pode parecer óbvio em retrospecto, basta lembrar de um típico casal vitoriano, mas observar a suavidade e concordância destas curvas se estendendo por mais de um século é fantástico.
Psico-história
“Hari Seldon desenvolveu a psico-história modelando-a na teoria cinética dos gases. Cada átomo ou molécula em um gás se move aleatoriamente, de forma que não podemos saber a posição ou velocidade de qualquer um deles. Ainda assim, usando estatística, podemos descobrir as regras governando seu comportamento coletivo com grande precisão. Da mesma forma, Seldon quis descobrir o comportamento coletivo das sociedades humanas ainda que as soluções não se aplicassem ao comportamento de seres humanos individuais”. – Isaac Asimov
Analisar grandes movimentos históricos estatisticamente para prever o futuro como uma ciência é ficção científica – e, como Osame Kinouchi me apontou, ficção inspirada pela ciência, ainda que fosse e ainda sejam sonhos científicos. É assim fascinante descobrir que enquanto Asimov escrevia sobre a psico-história já havia estudos como o de Kroeber e Richardson analisando de forma quantitativa a história de movimentos estéticos. Nada tão imponente quanto prever a ascensão e queda de civilizações, mas analisar o comprimento de vestidos já é um começo.
Se isso é ciência, contudo, qual é seu poder preditivo? Podemos prever o futuro da moda, o comprimento dos vestidos e das barbas das gerações futuras?
Em um estudo mais recente, “Mudança Estilística e Moda em Vestidos Femininos: Regularidade ou Aleatoriedade?” (1984), John e Elizabeth Lowe revisam o trabalho de Richardson e Kroeber, comparando cinco anos de sua série com novos dados e estendendo-a com dados até 1983. Além de confirmar as principais conclusões do estudos anterior, os Lowe vão além e formulam um modelo para explicar medidas no passado e sua evolução futura! Esta equação explicaria os vestidos do Golden Globe deste ano e de todos os outros?
A resposta é negativa. “Uma vez que o modelo é estocástico, isto é, ruído ou imprevisibilidade é uma parte inerente do processo, a capacidade de projetar valores futuros decai rapidamente com o passar o tempo”, notam os autores. “A conclusão central é que o processo de moda de vestidos femininos é predizível, mas apenas escassamente”.
A psico-história da moda de vestidos e barbas ainda não enxerga muito longe… pelo menos com dados de “apenas” três séculos de moda em revistas e ilustrações. O que cientistas do futuro poderão fazer com as bilhões de fotos de moda em redes sociais desde o início deste século 21, talvez só Hari Seldon poderá dizer.
[via Flowing Data, ver também Measuring Time with Artifacts e Analyzing Visual Data]
Nova marginal e a obviedade do paradoxo
“Três anos depois da ampliação da marginal Tietê, a mais importante via de São Paulo, o efeito positivo sobre o trânsito acabou –e a lentidão na cidade voltou a subir” [Nova marginal Tietê já não alivia o trânsito paulistano, Folha, 24/03/2013]
Quando a ampliação da marginal foi anunciada, comentamos o Paradoxo de Braess: mais estradas podem por vezes significar mais congestionamento. Com novas estradas motoristas coletivamente alteram seus trajetos buscando, individualmente, diminuir seu tempo de viagem. O resultado paradoxal é que coletivamente o resultado pode ser que todos perderão mais tempo. Não basta adicionar mais e mais estradas para reduzir congestionamentos, não é uma função linear, mais estradas podem piorar o trânsito. E uma versão um tanto mais complexa, mas ao mesmo tempo mais previsível do paradoxo foi observada no grande experimento involuntário da ampliação da marginal.
“Até quem não pegava mais a marginal voltou a usar, e então já excedeu a capacidade da via”, diz Horácio Figueira, mestre em transportes pela USP. Exatamente o Paradoxo de Braess. E somado a isto, o foco em investimentos de infra-estrutura e crédito baixo, incluindo descontos em impostos, para automóveis teve outro resultado nada paradoxal. “A frota cresceu 35% de 2005 para 2011, chegando a 7,1 milhões de veículos — índice de 63,4 para cada 100 habitantes” [Crescimento da frota fez trânsito piorar em SP, afirma CET].
Somos reféns do automóvel, porque o automóvel é fácil de ser medido economicamente. É um bem de consumo durável de grande valor, que gera empregos e movimenta diversos setores da economia. O impacto de um automóvel na economia é muito mais fácil de ser percebido do que, digamos, o de uma bicicleta. Uma bicicleta tem uma fração do valor de um automóvel, gerando uma fração dos empregos e movimentando uma fração de setores econômicos. Você não vê anunciantes de bicicleta nos intervalos do Jornal Nacional.
O combustível que a bicicleta irá consumir não é medido pelo governo, felizmente. A energia vem da alimentação do ciclista. Mas sendo assim, como você acompanha quantas bicicletas de fato circulam em São Paulo diariamente? É uma tarefa complicada, será preciso lidar com vários indicadores “proxy”, estimativas e tudo mais. Com automóveis, ministros podem ter prontamente dados sobre o consumo de combustíveis, sobre multas, impostos e toda uma infra-estrutura criada para estimar não só a frota como onde e qual a extensão dos congestionamentos minuto a minuto.
Esta infra-estrutura para monitorar automóveis teve um custo, é claro. A duplicação da marginal teve um custo. Você pode ter estes custos à mão… contudo porque o automóvel é um elemento econômico fácil de ser medido em seus impactos positivos na economia, e é um impacto muito expressivo, estes custos são sempre tomados como marginais.
Há então os custos associados a automóveis muito mais difíceis de serem estimados. Mais de 40.000 pessoas morrem ao ano em acidentes de trânsito. Qual é o custo disso? São quase R$2 bilhões pagos anualmente em indenizações pelo DPVAT, mas uma indenização do DPVAT certamente não equivale ao real valor de uma vida perdida. É apenas uma indenização definida pelos recursos que podem ser alocados de um fundo de seguro obrigatório pago por proprietários de automóveis. Quanto maior é o custo – econômico! – das vidas ceifadas? Qual é o custo da poluição? Quanto custa o estresse?
Não temos esses números, ou ainda que tenhamos estimativas, elas não se traduzem em indicadores tão diretos e considerados tão urgentes para a economia quanto número de empregos, impostos pagos e tanto mais. Temos os números dos carros, e eles guiaram a lógica simples da política pública de investir em automóveis. Isso, deixando a parte toda a questão de lobbies da indústria automobilística, que amplificam o poder de influência e decisão em favor do automóvel, e a facilidade com que a corrupção pode ser praticada com grandes obras viárias.
“Quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida”, diz a Lei de Goodhart. “A lei de Goodhart é um análogo sociológico do princípio da incerteza de Heisenberg na mecânica quântica”. Em economia, a Lei de Goodhart traduz o fato de que para alcançar qualquer meta atrelada em um indicador, é muito mais fácil que os fundamentos desse indicador sejam distorcidos do que realmente mudar – e melhorar – o que esse indicador realmente pretendia medir para início de conversa.
É mais fácil maquiar a inflação, congelando preços, do que controlar o que a inflação realmente significa, que é a erosão do valor dos salários. Na União Soviética, grandes planos econômicos estabeleciam metas de crescimento que levavam em conta o número de quilômetros rodados por trens. Para alcançá-las, diz a lenda que trens andavam milhares de quilômetros vazios.
É mais fácil criar e administrar políticas relacionadas a automóveis para melhorar indicadores econômicos do que tentar abordar indicadores muito mais complexos e difíceis de quantificar como qualidade de vida. Mas mesmo confiando em indicadores, todos mostram que o trânsito em São Paulo voltou a piorar, a despeito de bilhões de investimento de várias esferas do governo. E quando a realidade confronta abertamente o absurdo de indicadores há muito inadequados, algo precisa ser feito.
Para diminuir a quantidade de congestionamentos em São Paulo, para melhorar a qualidade de vida do paulistano, deve estar claro que a solução não é simplesmente criar mais vias.
O Tao do Google
Em 1984 uma companhia de computadores que era a menina dos olhos de investidores, de produtos revolucionários mas com resultados concretos ainda longe de serem tão vistosos lançou o novamente revolucionário computador pessoal Macintosh em um comercial que também se tornou icônico, dirigido por Ridley Scott e veiculado durante o Super Bowl. Uma heroína com o logo do Macintosh salva a humanidade da conformidade representada pelo “Grande Irmão”, que discursava:
“Hoje, celebramos o primeiro aniversário glorioso das Diretivas de Purificação de Informação. Criamos, pela primeira vez na história, um jardim de ideologia pura – onde cada trabalhador pode florescer, seguro das ervas daninhas que transmitem verdades contraditórias. Nossa Unificação de Pensamentos é uma arma mais poderosa que qualquer frota ou exército na Terra. Somos um só povo, com uma vontade, uma determinação, uma causa. Nossos inimigos vão tagarelar até a morte, e nós iremos enterrá-los em sua própria confusão. Nós iremos prevalecer!”.
Ao que a heroína lança uma marreta libertadora e destrói a enorme tele-tela, deixando os espectadores estupefatos com a explosão. “Em 24 de janeiro, Apple Computer lançará o Macintosh. E você verá por que [o ano de] 1984 não será como 1984 [de George Orwell]”.
Quase 30 anos depois, a Apple Computer, Inc. já não fabrica mais apenas computadores, mudando seu nome apenas para Apple Inc., e é a companhia com maior valor de mercado no mundo, superando gigantes petrolíferas e mesmo concorrentes da indústria de tecnologia de informação como Microsoft e IBM – esta última o alvo original do comercial de 1984. Suas reservas de capital são maiores do que o PIB de vários países. É uma ironia fina aquela que interpreta que se há hoje um Grande Irmão “purificando” informação, criando um jardim de aplicativos puros onde cada usuário possa florescer seguro das ervas daninhas que transmitem interfaces contraditórias, é a própria Apple, que com sua Unificação de Pensamentos transformou sua marca na propriedade intelectual das mais valiosas, e poderosas, do planeta. O Grande Irmão carismático em seus Keynotes para um público babando pela última novidade era ninguém menos que o próprio Steve Jobs.
Esse cúmulo da ironia se deu em pouco mais de uma geração, em uma história que contém meandros fractais – reviravoltas sobre reviravoltas. Mas este é um comentário sobre o Google Inc., que precisou começar pela Apple porque nenhuma outra empresa de tecnologia que busque vender também um verniz de ideologia é tão icônica quanto aquela fundada por Jobs. Ou pelo menos, tão valiosa quanto a Apple Inc. é hoje.
Se a Apple vendeu-se como uma empresa visionária de produtos à frente de seu tempo, o Google passou boa parte de seu tempo promovendo o lema informal menos pretensioso “don’t be evil”, ou “não seja malvado”. Embora design nunca tenha sido seu ponto forte, o Google se destacou pela tecnologia, o que é uma grande vantagem quando se é uma empresa de tecnologia. Enquanto à época outras grandes corporações moviam enormes fundos e conglomerados de mídia para capitalizar um ecossistema que buscava sempre prender os visitantes dentro de “jardins de ideologia pura”, de propriedade desta ou daquela corporação, o Google apostava na eficiência de seu buscador como ponto de início e norte para todos internautas.
Não era necessário prender o visitante em uma rede infindável de sites de sua propriedade, pelo contrário, quanto mais rápido um visitante saísse de seu buscador encontrando o que procurava, mais provável era que ele retornasse depois ao seu buscador quando pensasse ir a outro lugar. Como uma espécie de koan zen budista, para fazer o visitante retornar, faça-o ir embora. Tente prendê-lo, e ele irá fugir. E à medida que o volume de informações na rede crescia geometricamente, a tecnologia do Google mostrou-se em anos decisivos a mais capaz de oferecer resultados relevantes ao usuário.
Em 2011 em um testemunho no senado americano, Eric Schmidt, então chairman do Google, concordou que o Google detém hoje o monopólio na área de mecanismos de busca. Pouco mais de uma década depois de sua fundação, em menos de uma geração, uma startup baseada em ideias revolucionárias de tecnologia venceu todos os recursos investidos por gigantes de mídia e se tornou ela mesma mais valiosa que o maior conglomerado tradicional de mídia, a Disney.
E como você pode não ser “malvado” se detém o monopólio da área mais importante da Internet e é uma das empresas mais valiosas do mundo? É simplesmente impossível. Vender-se como o underdog, aquele competidor pequeno mas valente desafiando o gigante tirânico, não funciona quando você mesmo se torna o gigante. Você também se torna automaticamente o tirano.
Mal o Google consolidou seu monopólio dos mecanismos de busca, uma forma nova de uso da rede emergiu – as redes sociais. O Facebook como rede social é desde o início um “jardim de ideologia pura” de propriedade de Mark Zuckerberg, fechado aos olhos indexadores do Google, e um ao qual os visitantes não precisam se lembrar de ir ao Google para gerar, consumir ou encontrar conteúdo: basta perguntarem aos amigos que também fazem parte da rede social. É uma forma fundamentalmente diferente de utilizar a Internet, e uma que não passa pela ideologia original do jardim aberto do Google.
O que os grandes conglomerados de mídia não conseguiram concretizar à força no primeiro boom da Internet na virada do milênio, a tecnologia das redes sociais tornou hoje não só possível, como transformou em realidade. Com um crescimento orgânico e viralizado, onde todos entram porque outros já entraram, e sem vender nem mesmo um verniz de ideologia, o Facebook se consolidou como o maior “jardim de ideologia pura” já criado. Um local onde cada mudança na forma como Zuckerberg apresenta sua timeline afeta instantaneamente a maneira com que milhões de pessoas consumirão informação. Discutir o impacto que a introdução de hashtags terá no ecossistema do Facebook é um indicador claro da pureza deste jardim onde não há ervas daninhas que não sejam podadas.
Se a possibilidade de usar outros sites em apenas um clique era um argumento usado por Schmidt para o fato de que o monopólio do Google não era prejudicial ao consumidor, quando esta possibilidade se mostrou uma ameaça concreta, o Google passou a exercer sua tirania. Todos usuários de qualquer propriedade do Google, agora parte de um jardim de ideologia, precisam aderir ao Google+. A ameaça do Facebook é tão séria à visão original do Google que hoje está claro que esta visão original foi simplesmente abandonada. Hoje, o objetivo do Google é o mesmo que o do Facebook, Apple, IBM, Microsoft, do IngSoc e do Grande Irmão. É o mesmo que o da outrora gigante AOL. É prender você em um jardim de ideologia pura de sua propriedade, do qual você não deve sair, onde todos seus pensamentos possam ser capitalizados e vendidos. Um perfil, um login, uma rede social, única, para todo o planeta, é o sonho perseguido por todas estas gigantes flexionando bilhões capitalizados no mercado.
O objetivo nada secreto de toda corporação é o lucro, não deveria haver nenhuma grande novidade nisto. Se por um breve período o Google promoveu uma filosofia aparentemente diferente, é porque na peculiar situação que existia, a filosofia contrária prometia maiores lucros no médio e longo prazo. “Nós acreditamos firmemente que no longo prazo, seremos melhor servidos – como acionistas e de todas outras formas – por uma companhia que faz coisas boas para o mundo mesmo que deixemos de lado alguns ganhos de curto prazo”, declarava o IPO do Google no mais próximo de um manifesto “don’t be evil” a que se chegou.
Funcionou, dez anos depois o Google trouxe enormes retornos a seus acionistas. A constatação triste é que hoje, todos os ganhos do Google, incluído, devem ser de curto prazo.
Se a história de reviravoltas de empresas de tecnologia é um parâmetro, porém, é muito provável que as empresas mais valiosas e poderosas do mundo daqui a uma geração ainda nem existem, e enquanto empresas com centenas de bilhões em capitalização movem seus exércitos em estratégias para criar jardins de ideologia pura, uma nova empresa focada em tecnologia ainda por surgir pode sequer depender de um clique para ser acessada.
Google, eu gostaria que fosse você, mas de toda forma, obrigado pelos peixes.
Movimento de um feto humano de 24 semanas
Este vídeo mostra um feto de 24 semanas com uma quantidade relativamente grande de fluido amniótico permitindo movimento de todos quatro membros. O registro também demonstra os movimentos pequenos dos dedos e indicações do movimento de deglutir. Este grau de movimentação é típico para um bebê desta gestação e torna a captura de imagens de seu cérebro um desafio.
Ateísmo Humano
No início de setembro de 2012, a Liga Humanista Secular (LiHS) realizou o I Congresso Humanista Secular em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Reunindo pela primeira vez ateístas, humanistas e secularistas de todo o país e do mundo em um grande evento no Brasil, eu estive lá, e uma palavra que pode resumi-lo é que foi histórico!
O termo pode parecer um tanto exagerado para o que, à primeira vista, pareça apenas uma série de palestras feitas lá no Sul. Para expressar e compartilhar melhor a satisfação que tive em acompanhar e participar desse evento, vou contar um pouco de minha história me aventurando como parte destes grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas.
A “Sociedade da Terra Redonda”
Há mais de dez anos, existia no país um grupo significativo de ateus, agnósticos, humanistas, céticos, racionalistas e tantos mais unidos pela internet em todo o Brasil e pelo mundo para trocar ideias e promover ações defendendo seus direitos e ideais para transformar a sociedade como um todo para melhor.
Era a “Sociedade da Terra Redonda” (STR), criada em 1999 por “Léo Vines”. Como muitos ateus à época, tenho orgulho de ter feito parte deste grupo, ajudando a produzir como co-editor três números da “Revista Terra Redonda”. Entre os outros editores voluntários da STR encontramos nomes que podem ser reconhecidos ainda hoje neste mesmo ativismo: Daniel Sottomaior, que viria a fundar a ATEA, e Asa Heuser, hoje presidente da mesma LiHS. Outro co-editor da revista Terra Redonda era o professor Renato Zamora Flores, um dos palestrantes no CHS2012 e a quem também tive o privilégio de enfim conhecer pessoalmente e fechar um ciclo.
Se há mais de dez anos já existia um grupo como a STR, se ele reunia algumas das figuras que hoje defendem esses ideais através de organizações formais com ações concretas, indo de campanhas de conscientização a eventos com luminares internacionais, o que aconteceu com a STR?
Bem, ela não aconteceu. Justamente quando os esforços eram para que se formalizasse – em maio de 2004! –, indo além de um grupo de pessoas unidas pela rede para se tornar uma instituição formalizada na sociedade, a figura central no grupo, seu criador, deixou-o de lado. O grupo ficou no limbo por anos, sem estar certo sobre se o presidente ainda retornaria, se delegaria responsabilidades para permitir a continuidade do projeto, ou se o barco deveria ser mesmo abandonado. Em retrospecto, hoje é claro que o barco deveria ter sido abandonado prontamente e o momentum de colaboradores preservado. Mas se passaram oito anos. Foi um fim “não com um estrondo, mas com um suspiro”. Um longo e incerto suspiro.
Limbo e Renascimento
Ao longo destes anos do limbo da STR, grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas, mas acreditam firmemente em outras, continuaram formando grupos e subgrupos pela internet unidos seja pela crença ou descrença. Porém o rubicão de “grupos de internet” continuou não sendo cruzado. Aqui se inclui o próprio CeticismoAberto, projeto que mantenho desde 2001 e ainda não é uma associação formalizada.
Por algum tempo em sua evolução o sítio online CeticismoAberto foi hospedado como uma área da STR, e durante o limbo da STR, percebi o valor e a necessidade que havia em auxiliar outras iniciativas na rede a encontrar algo tão básico quanto uma hospedagem fixa, para que seus responsáveis pudessem concentrar seus esforços em criar e divulgar conteúdo. Com o estabelecimento do CeticismoAberto de forma independente, desde agosto de 2006 ele passou a sustentar o chamado projeto HAAAN, uma incubadora de projetos de divulgação do pensamento crítico pela rede. O nome foi escolhido pela sonoridade (“hãããn”) e por não ter associação direta a nada, de forma que cada site hospedado possa firmar sua própria identidade e ao final estabelecer-se sozinho.
Através do projeto HAAAN hospedamos iniciativas eletrônicas selecionadas, com um foco em iniciativas analisando de forma crítica temas extraordinários, na linha do CeticismoAberto. Apesar de não ter o ateísmo ou o laicismo dentro do foco, o HAAAN também já hospedou na rede a iniciativa “Brasil para Todos”, que foi uma das ações que Sottomaior levou à frente depois da STR e antes de fundar a ATEA, com a bandeira do Estado laico. Hospedamos, registramos e ajudamos a criar ainda o site da “União Nacional dos Ateus” (UNA) e mesmo o “Bule Voador”, lançado na rede em 2008.
E foi em 2008 que o rubicão foi finalmente cruzado. Em agosto de 2008 a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, ATEA, foi fundada por um trio incluindo Daniel Sottomaior. A associação logo pôs em prática ações concretas de destaque além do mundo virtual, incluindo ações jurídicas e campanhas de divulgação em outdoors.
Por sua parte, e ao longo do tempo o Bule Voador, de suas origens como um blog, passou a ser mantido como canal de comunicação pela LiHS, que assim como a ATEA, foi muito além do que o próprio HAAAN ou o CeticismoAberto alcançaram. Esses grupos cruzaram o rio e se estabeleceram formalmente: se o limbo da STR durou anos, eles foi superado pelo estabelecimento formal primeiro da ATEA e então da LiHS.
Depois de praticamente uma década desde que começaram a se organizar através da tal de Internet, grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas no Brasil finalmente saíram da rede e solidificaram sua posição na sociedade. São instituições.
Pouca Fé
Entetanto, minha fé em grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas não durou tanto. Ao longo deste ativismo, de editor da STR, já fui um associado da ATEA, diretor da UNA e membro-emérito da LiHS. Hoje não sou formalmente associado a nenhum desses grupos ou associações. Para explicar essa posição, mais história.
Apoiar e participar de iniciativas promovendo ciência, com foco na análise crítica de alegações extraordinárias, ao longo de mais de uma década tem sido extremamente gratificante. Não me lembro de qualquer conflito ou divergência que não valesse a pena, não me recordo de nenhuma frustração que não fosse compensada por uma grande satisfação. Ter respondido a duas ações judiciais movidas por um suposto “premonitor”, apesar do inconveniente e do prejuízo financeiro, é mais do que compensado pelo apoio recebido de todas as formas de todos amigos e colegas, o que permitiu atravessar essa pendenga jurídica com duas vitórias judiciais. Meu amigo e advogado, Alexandre Medeiros, aceitou a causa pelo CeticismoAberto. Foi um de vários apoios fundamentais que recebi. Ser ofendido por certas figuras é de certa forma um elogio, receber o apoio de outras é um dos prêmios mais valorosos que se pode receber. O “ativismo cético”, se o chamarmos assim, abriu-me muitas portas, permitiu que aprendesse e ganhasse muito, inclusive profissionalmente. Nada foi em vão.
Infelizmente o mesmo não se pode dizer do ativismo ateu. Para mim, sempre foi nítida a diferença na prática entre a luta por estas duas causas tão próximas. No ativismo ateu, desde o início de meus contatos, desde a STR, divergências internas tendem a fragmentar grupos já pequenos e quantidades absurdas de esforços são dedicadas a tarefas pouco produtivas ou mesmo contra-produtivas – incluindo fomentar mais divergências internas. A STR não implodiu, ela definhou antes de implodir, mas vários grupos contemporâneos ou mesmo posteriores implodiram ou mesmo explodiram em tempestades internéticas durante o período do limbo. Não que tempestades internéticas façam qualquer barulho fora da Internet.
Mesmo após o limbo, com o estabelecimento da primeira organização formal para defesa de direitos de ateus e outras causas relacionadas, os desentendimentos continuaram, e em certos pontos se acentuaram. A UNA teve como um de seus germes a dissidência da ATEA, e a LiHS em sua gênese compartilhou também muito com a UNA, embora por fim também acabasse por haver divergências entre esta e a própria UNA. Não que isso a aproximasse da ATEA, pelo contrário. O episódio duplo da série South Park, “Go God Go”, satirizando o neo-ateísmo, pode ser simplesmente bobo ao retratar Richard Dawkins apaixonado por um Senhor Garrison transexual, mas na apresentação da guerra absurda entre grupos ateístas sobre a “questão final” irrelevante a sátira é praticamente um documentário.
Profundamente decepcionado com a capacidade de ateus organizarem-se em torno de ideais comuns para promover ações efetivas que mudem a sociedade para melhor, vendo esforços serem perdidos e erros repetidos desde o início com a STR, acabei por solicitar meu desligamento de todos esses grupos e associações de pessoas-que-não-acreditam-em-deus.
Além da decepção, enquanto estava envolvido diretamente nesses grupos eu também me envolvi em divergências que consumiam esforços e não levam a nada de positivo. O vírus da necessidade de vencer o último debate da Internet é contagioso, e eu certamente não estou imune a ele. Se a Internet fomentou o surgimento de inúmeros grupos de minorias, ateus incluídos, ela também infecta aqueles em sua ânsia pela razão e retórica, pela ilusória e breve “fama” de internet, a discussões sem fim pela rede. Em nome da razão, mas em verdade sob seu disfarce, argumentos secos são disparados para servir ao que são claramente desentendimentos pessoais mesquinhos.
A Internet, sua impessoalidade, seu imediatismo, desperta um lado negativo da discussão racional. Se como ferramenta a Internet fomentou o surgimento de inúmeros grupos, ela trouxe também o cavalo de tróia que tem destruído e atrasado grupos ateus há mais de uma década. Este não é um fenômeno exclusivo do Brasil, tampouco um vírus no qual o único vetor seja a rede eletrônica, mas se há uma análise que possa arriscar do (não) desenvolvimento dos grupos ateus por aqui ao longo de uma década, é esta.
Fé Renovada
É aqui, finalmente, que chegamos ao I Congresso Humanista Secular do Brasil em Porto Alegre. Descrente, penso que posso confessar hoje que não esperava muito do evento. Há um limite para o que um pequeno grupo de pessoas consegue fazer, ainda que algumas dediquem esforços heroicos. E grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, como havia me desiludido, nunca conseguem ficar muito grandes. Minha falta de fé significou que, com pouco tempo antes do evento, não preparei como deveria as palestras que fui convidado a apresentar. Ninguém deveria reparar muito, imaginei, não esperando muito seja de mim, seja do evento.
Eu estava errado. A imagem acima traduz como estava errado. Esses não são os palestrantes. Esses são mais de uma dezena de organizadores presentes, ao final do evento, boa parte dos quais vieram de quase todos os cantos do Brasil. E boa parte dos organizadores não pôde estar presente, mas também colaborou para concretizar um evento espetacular, não só por si mesmo como também pela forma como foi concretizado.
No momento em que me desiludia e me afastava do ativismo ateu e ainda prestava atenção a algumas velhas novas tempestades internéticas, se consolidava um grupo grande e organizado de pessoas centradas e dedicadas a realmente fazer coisas. Fora da Internet. E o mais importante, que descobri durante o congresso e pude acompanhar após ele: é uma instituição sólida, que não depende exclusivamente de um punhado de pessoas. Depende de um grande grupo de pessoas, suficiente para dar segurança institucional à associação.
A Liga Humanista Secular concretiza hoje não apenas o que sonhava ao participar da STR há dez anos, mas vai além. Seu escopo é amplo, sua visão é clara, sua execução tem sido muito eficiente. O evento equilibrou bem todos os eixos do humanismo secular, apresentados pelo então presidente da LiHS, Eli Vieira.
Os vídeos das palestras ainda devem ser divulgados pela LiHS, toda e cada apresentação foi espetacular. Ainda me centrando nesta visão mais ampla do evento e do movimento ateu, se há uma palestra que gostaria de comentar, é a palestra do filósofo português Desidério Murcho, sobre o sentido da vida para ateus. Em linguagem e abordagem acessíveis, o professor expôs ideias e argumentos profundos condensados no pequeno espaço temporal da palestra. Na resposta às perguntas da plateia, o filósofo se colocava no lugar daqueles que lhe faziam perguntas e procurava a melhor forma de efetivamente transmitir sua resposta. Uma palestra de filosofia imensamente prazerosa e empolgante, de um tema central a todos que lá estavam, proferida por um experiente professor.
O título deste texto, “ateísmo humano”, é um certo contraponto a um texto anterior publicado aqui, “ateísmo halsenflugel”, em que criticava a abordagem feroz que Eli Vieira e um dos participantes do Bule Voador faziam sobre a definição “correta” de “ateísmo”, apoiados largamente no que seria a abordagem filosófica do tema. Pois se aquilo representava um erro e ainda outro retrocesso contraprodutivo na história do movimento ateu no país, bem, Eli Vieira, ainda como presidente da LiHS, foi um dos responsáveis pelo equilíbrio de abordagens e também pela participação brilhante do filósofo Desidério Murcho.
Assistir ao espetáculo proporcionado pelo ateísmo humanista renovou minha fé e orgulho em ser humano e ateu.
Um Movimento sobre Nada – e Tudo
O ateísmo, por si só, é literalmente nada, é a ausência de crença em deus. A vertente do ateísmo mais popular, e a que é tida automática e orgulhosamente como sinônimo de ateísmo, é o ateísmo racionalista, aquele a que se chega após uma análise racional dos argumentos sobre deus e a conclusão de que não haveria razão para aceitar esse conceito. Que é uma questão de fé, e uma que ateus racionais escolheram descartar.
Este ainda é um conjunto de valores bem tênue, e um tanto confuso. Se é a razão o valor comum que une ateus racionalistas, não deveriam se centrar em associações racionalistas, ao invés de ateístas, sendo este mero detalhe? Se, por outro lado, a causa mais urgente pela qual devem lutar é pela aplicação de direitos e liberdades definidas constitucionalmente, não deveriam se centrar em associações de direitos humanos e constitucionais?
As duas e novas associações formais no país oferecem escolhas, não necessariamente excludentes. A ATEA, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, tem como foco o ateísmo, a congregação de ateus, a defesa de seus direitos. A LiHS, Liga Humanista Secular, tem como foco o humanismo secular, uma posição filosófica mais ampla e ao mesmo tempo mais estrita.
Mais ampla e mais estrita? Mais ampla porque o humanismo secular promove valores indo da razão à ética, pela qual o Congresso Humanista Secular de 2012 contou com a participação de acadêmicos, jornalistas e defensores de direitos humanos. Sua ação na rede tem se destacado ultimamente na defesa de direitos LGBT e pelo feminismo. Essa amplitude angariou a contribuição e participação de ativistas de um amplo espectro.
Há contudo um posicionamento político estrito nos valores do humanismo secular. Em retrospecto, não é surpresa que isso cause repulsa daqueles que discordam de um ou outro destes aspectos promovidos – ou simplesmente discutidos! – pela LiHS. O humanismo secular é amplo em sua abordagem, e pode ser um tanto estrito em suas conclusões. Apenas a tolerância pode estender e abrigar neste espectro opiniões divergentes sobre assuntos específicos quando a concordância em temas mais relevantes deve ter prioridade. Esta tolerância nem sempre é exercida como deveria seja por pessoas de fora ou de dentro da LiHS.
Como não é surpresa que haja aqueles que se sintam inconformados com o foco estrito da ATEA, que por vezes permite em silêncio discursos de ódio entre suas fileiras tão condenáveis quanto o mesmo ódio do qual procura defender ateus. Afinal, congregar e defender ateus é sua prioridade maior.
Fundamentalmente, tanto a LiHS quanto a ATEA são associações irmãs. A defesa dos direitos de ateus é um dos objetivos do humanismo secular, por sua parte a ATEA declara explicitamente entre seus objetivos a promoção de sistemas éticos seculares. Uma anedota ilustra bem essa congruência de valores: o presidente da ATEA, Daniel Sottomaior, é pessoalmente um defensor ferrenho do vegetarianismo como conclusão ética racional. O ex-presidente da LiHS, Eli Vieira, recentemente também passou a defender no âmbito pessoal, com ênfase, o vegetarianismo como conclusão ética racional.
A diferença na abordagem e ênfase destes dois grupos, assim como seus eventuais conflitos, advém mais das prioridades e características de seus dirigentes e seu histórico do que de uma incompatibilidade de princípios. Como são instituições formalizadas e democráticas, é minha esperança que estes conflitos ainda sejam solucionados, se não pelos voluntários de hoje, pelos de amanhã. Foi uma pena não ver a ATEA representada no Congresso Humanista Secular.
Encontrando Nada, e Tudo
E, como a história se repete, por pouco a LiHS não se viu representada como apoiadora do II Encontro Nacional de Ateus (IIENA), coordenado pela Sociedade Racionalista, um novo grupo articulado nas redes sociais e que conta já com mais de 130.000 seguidores no Facebook. Após um desentendimento em outra tempestade virtual contraproducente, os ânimos por fim se acalmaram e ultimamente valores comuns prevaleceram.
Depois do Congresso Humanista, e após um primeiro encontro bem-sucedido no ano passado, o segundo encontro nacional de ateus neste fim-de-semana (17/02) promete. Com minha fé renovada em grupos de pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, participarei de mais um evento, e já contribuí com a “vakinha” para ajudar a cobrir os custos locais. Será fabuloso encontrar outras pessoas-que-não-acreditam-em-coisas, incluindo aí uma palestra do procurador Jefferson Dias, autor da ação que levou à condenação do canal de TV Band, após declarações proferidas pelo apresentador José Luis Datena reconhecidas pela Justiça como impróprias, a esclarecer a população sobre a diversidade religiosa e a liberdade de consciência e de crença no Brasil.
Resultados concretos estão sendo alcançados. A Internet também pode favorecer e alavancar o que há de melhor em nós, eventos em escala nacional ou internacional como os que estão sendo promovidos seriam impossíveis, com os escassos recursos de que se dispõe, sem a rede eletrônica. E a notícia da vitória judicial sobre o discurso de ódio de Datena na TV acompanha o enorme sucesso que o vídeo-resposta de Eli Vieira, o mesmo ex-presidente da LiHS, alcançou refutando as falácias pseudocientíficas de um pastor condenando a homossexualidade “cientificamente”.
Ainda me preocupa que a nova Sociedade Racionalista não seja uma associação formalizada, já adentrando o segundo ano organizando um evento em escala nacional. Ainda preocupa que as rixas entre os grupos por vezes se aprofundem ao invés de serem remediadas. Ainda preocupa que os mesmos erros continuem sendo repetidos. Mas já estou há algum tempo afastado de tudo isto, sentado agora confortavelmente como espectador, apenas mais um ateu na multidão, e se antes o que me restava era descrença e decepção, o que há agora é esperança e, como um termo que não me canso de repetir, fé.
As vitórias e conquistas recentes são espetaculares. Os últimos meses têm sido quase inacreditáveis após uma década de esforços pouco produtivos. Ateus têm salvação, e pessoas-que-não-acreditam-em-certas-coisas podem criar coisas fantásticas e concretas para beneficiar toda a sociedade. Aos poucos, a sociedade muda, para melhor, com a participação de ateus, em nome de deus algum, pela sociedade em si mesma.
***
[Agradeço especialmente a Daniel de Oliveira e Cíntia Brito dos Santos pela acolhida, compartilho a honra que me foi ser palestrante acompanhado de figuras tão ilustres, e parabenizo todos da LiHS, em especial à comissão organizadora que vi correndo por horas seguidas, em um evento de tirar o fôlego e inspirar ânimos.]