Choque cultural

Há alguns anos assisti no encontro de etologia uma mesa redonda bem interessante sobre cultura. Foram convidados um sociólogo e um antropólogo (por pura maldade) e, por fim, o Biólogo Eduardo Ottoni (IP USP). Este pesquisador fez uma longa lista de comportamentos em animais que variavam de chimpanzés a polvos que se encaixariam perfeitamente na definição de cultura se ela não fosse exclusividade humana. Sou fã desses trabalhos que derrubam nossas vaidades do tipo: os humanos são os únicos seres vivos a acasalar um de frente para o outro, a dar gargalhadas, a usarem ou confeccionarem ferramentas, a usar símbolos ou terem prazer sexual. Todas estas afirmações foram elegantemente refutadas por etólogos ao longo dos anos.
Recentemente escutei de novo no livro da Eva Jablonka (Evolution in Four Dimensions) um caso que me lembrou esta discussão. Então resolvi retomar a discussão adicionando o exemploretirado do livro da Eva Jablonka aos elencados pelo Eduardo Ottoni. Vejamos algumas definições de cultura:
– Processo cumulativo resultante de toda a experiência histórica de gerações anteriores, que limita ou estimula a criatividade do homem (Kroeler).
– Idéias e comportamentos dentro do homem, entre dois homens ou deste com suas ferramentas (White).
– Complexo de conhecimentos e habilidades adquiridos pelo homem na vida em sociedade (Tylor).
– Soma das idéias, reações e comportamentos que os humanos adquiriram por imitação ou instrução (Linton).
– Totalidade das ações e comportamentos dos indivíduos que compõem uma sociedade humana (Boas).
Pode-se perceber que ao longo das definições acima houve uma tendência a expandir o conceito de cultura de forma a englobar a maior parte das atividades e conhecimentos, mas algo de que não se abriu mão foi defini-la como uma propriedade humana.
Algumas coisas chamam a atenção nas cinco definições acima: o caráter de herança cultural, a influência dela no comportamento, a construção da cultura via experimentação ou imitação e sua relação com a socialidade. Vejamos se esses critérios são preenchidos por fenômenos encontrados em outras espécies. Vou explorar para isto uma história clássica na etologia, a dos macacos japoneses (Macaca japonica). Esta espécie de macacos habita montanhas nevadas no Japão, em 1963 uma população que habitava as proximidades de um balneário viu que alguns humanos, apesar do frio que impera ao redor, entravam em poços de água fumegante. É que ali ocorrem águas termais, dessas aquecidas por atividade geotermal, como em Poços de Caldas ou Caldas Novas. Logo uma fêmea começou a frequentar as piscinas sob o olhar descrente dos outros indivíduos, em algum tempo aquela fêmea ensinara seus filhotes a fazer o mesmo e logo toda a macacada se refestelava nos ofurôs naturais.
Essa história ilustra todos os pressupostos de cultura mencionados acima. Há transmissão da idéia de banhar-se nos poços de um indivíduo ao outro, a idéia definitivamente alterou o comportamento daquela população de macacos, a informação “entrar nas piscinas é bom” foi transmitida entre os membros da população por imitação ou experimentação e tal idéia só foi disseminada graças à socialidade desses macacos. Assim, todos os pressupostos das definições de cultura estão respeitados, exceto o que se refere a tal fenômeno só ocorrer na espécie humana, claro. Não seria o caso de deixarmos de assumir esta necessidade então. Acho que para isto só faltam os humanistas perderem esta nova forma de etnocentrismo que exclui as qualidades das culturas de outras espécies, um antropocentrismo.
O caso mencionado é só um exemplo. São conhecidos padrões de apertos de mão entre chimpanzés, ensino do uso de uma pedra como ferramenta para a abertura de sementes em macacos-prego, uso de símbolos por golfinhos e cães e até aprendizado de uma linguagem em bonobos. O filme abaixo mostra os macacos japoneses tirando proveito máximo de seu aprendizado cultural.

Pensamento de segunda

“Esse é o caminho para… para… Esse é o Caminho! Usar letras maiúsculas é sempre uma boa saída para lidar coisas para as quais não se tem uma boa resposta.” (Douglas N. Adams)