O nudibrânquio emasculado

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Não devia ter chamado o cliente de lesma. A secretária olhava o rastejando para dentro do consultório com o lábio inferior evertido e as narinas contraídas numa clara expressão de nojo. A doutora não conseguia entender como a secretária podia ver com asco aquilo que ela mesma considerava lind@. Uma lesma marinha com duas protuberâncias alaranjadas na parte da frente e um tufinho de brânquias atrás, tod@ vermelho vinho com pintas brancas. É isso, não devia ter chamado de lesma.

-Entre, senhor@ Chromodoris. – Convidou a analista tentando evitar uma declinação de gênero a esse animal hermafrodita. – O que @ traz aqui hoje?

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

Por um tempo @ nudibrânqui@ tergiversou sobre seu trabalho de arquivista numa repartição burocrática, sobre o conforto que a rotina dava e sobre sua falta de criatividade, que el@ não via como problema, porque era melhor não ousar que ver as coisas dando errado. A psicóloga, que já tinha alguns anos de experiência, sabia quando tentavam evitar problemas reais.

-Como era sua relação com sua pãe e seu mai? – Pãe, como se sabe, é o indivíduo hermafrodita que recebeu os espermatozoides do mai na hora do sexo. Um mesmo animal pode ser pãe de um filho e mai de outro se o sexo for recíproco.

-Nossa, doutora, que mudança radical de assunto. Bom, meu mai foi pouco presente em nossa família, nunca nos deu muito apoio. Em compensação minha pãe tinha um pulso firme. Pulso é maneira de dizer, né. Nós nudibrânquios não temos pulso. Papãe era muito sever@, fazia questão de que tudo andasse nos eixos. Papãe era mai e pãe ao mesmo tempo, e não era só porque era hermafrodita. Acho que é normal ser oprimido, né?

-Não é não. @ senhor@ precisa se impor também. Isso é complexo de castração! – Pronunciada a última frase, ficou instantaneamente lívid@ , os rinóforos murchos completavam o quadro de desolação.

-Co-como a senhora sabe? – Gaguejou baixinho em pânico.  – Como sabe que eu fui castrado? Todos podem perceber?

– Eu quis dizer em sentido figurado. Mas por que você diz isso? Quer me contar algo mais?

Chromodoris passou os minutos seguintes contando sobre seu primeiro e último relacionamento apenas algumas horas antes, mas que pareciam uma eternidade. Como @ namorad@ era charmos@, mas ao mesmo tempo dominador@. Como haviam se amado mutuamente, mas também como a culpa havia surgido avassaladora. Num momento de confusão entre ser macho, fêmea ou hermafrodita, arrancara violentamente o próprio membro. Agora era toda mulher, mas a culpa e a confusão não passavam. Já perdera a concha quando ainda era uma larvinha, agora a perda auto-infringida do pênis era demais para suportar. Por isso marcara a sessão urgente com a analista.

Enquanto narrava @ cliente percebeu aquela sensação intoxicante no osfrádio e lágrimas começaram a escorrer aos borbotões. A psicanalista esperou alguns instantes e preparou um lenço de papel e sua voz mais acolhedora.

-Acalme-se. Você é o que você é. Sua castração é meramente temporária, de fato, se você olhar agora mesmo perceberá que um novo pênis está se formando. Quando encontrar outr@ parceir@ já estará pront@ para copular outra vez.

Despediram-se na porta do consultório. @ nudibrânqui@ rastejando para o elevador do prédio enxugando as lágrimas. Mais conformad@ e menos assustad@, el@ até ensaiou um sorriso amarelo que mal descobria a rádula enquanto a porta do elevador se fechava. A doutora ficou para trás, pensando em como somos todos hermafroditas e temos dificuldade de lidar com isso.

ResearchBlogging.org
Sekizawa, A., Seki, S., Tokuzato, M., Shiga, S., & Nakashima, Y. (2013). Disposable penis and its replenishment in a simultaneous hermaphrodite Biology Letters, 9 (2), 20121150-20121150 DOI: 10.1098/rsbl.2012.1150

 

O peixe limpador intrépido

Elacatinus evelinae, o destemido peixe limpador. Fonte: en.wikipedia.org
Elacatinus evelinae, o destemido peixe limpador

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora ouvia de dentro da sala os risinhos da secretária nova na antessala. Ao sair para checar o que acontecia surpreendeu-se. Seu próximo cliente, um peixe limpador listrado de preto e azul iridescente, estava enfiado entre os dedinhos do pé da secretária mordiscando-lhe as pelancas. A doutora pigarreou e a secretária se recompôs de súbito na cadeira, assustando o peixinho.

-Entre, Sr. Elacatinus, está um pouco atrasado. – O peixinho nadou até o alto do divã e se deitou ali com o corpo em “S”.

– Doutora, tudo bem com a senhora? Percebi que está pigarreando. Está bem da garganta? Abra a boca. Posso fazer alguma coisa por você? – Perguntou ansioso o limpador.

-Volte para seu divã, por favor. Aqui o cliente é o senhor. O que lhe trouxe ao consultório hoje?

-Não sei o que há de errado comigo. Qualquer peixe do meu tamanho, diante da bocarra de uma garoupa ou de uma moreia, dispara em fuga ou congela de pavor. Eu simplesmente me atiro sobre as tenebrosas e começo a catar-lhes parasitas mal elas me pedem o serviço. Por que não sinto medo?

– Sr. Elacatinus, por que você não sente medo?

– Mas foi o que acabei de perguntar, doutora! Não sei explicar. Minha nadadeiras tremem, minha boca seca, meu coração dispara, começo a suar frio. Mas mesmo assim corro para limpar esses ameaçadores clientes. – Explicou o peixe.

-E o senhor diz que não tem medo?

-Pois é. Medo tenho, mas por que não ajo como todos os outros animais doutora?

-Ora, o mundo não é feito de dicotomias, meu caro. Não acredite em tudo o que dizem por aí. Talvez nem todos os animais fujam em disparada ou congelem de pavor. Você poderia recorrer a um mecanismo que os psicólogos chamam de contra-fóbico. Encara seus medos. – Explicou a analista.

-Mas doutora, não corro riscos?

-Olha, não posso garantir nada. Mas saiba que nunca viram nenhum peixe limpador ser predado durante uma sessão de limpeza. Relaxe e aceite seu instinto. Continue caprichando na limpeza que imagino que um cliente satisfeito irá pensar duas vezes antes de te comer.

-Obrigado, doutora. Nossas conversas são sempre reconfortantes. Até logo… – E saiu o peixinho nadando oceano afora.

Marta C. Soares1,2*, Redouan Bshary2, So´ nia C. Cardoso1, Isabelle M. Coˆ te´ 3, Rui F. Oliveira1,4 (2012). Face Your Fears: Cleaning Gobies Inspect Predators
despite Being Stressed by Them PLoS One

 

O carneirinho edipiano

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora se flagrou pela terceira vez desatenta aos balidos do cliente. A princípio ela achou fofa a imagem do fragilizado carneirinho sobre seu divã, mas já estava ficando enfadada daquela arenga sem fim sobre as qualidades da ovelha sua mãe. Realmente não era o dia certo para isso, a doutora mesmo havia visitado na véspera seu próprio analista-supervisor tentando discutir seus problemas com a secretária. O terapeuta da terapeuta sugeriu que ela projetara na secretária sua relação com a mãe.

Quem não se apaixonaria por uma mãe fofa assim? Fonte: everystockphoto.com

Quem não se apaixonaria por uma mãe fofa assim? Fonte: everystockphoto.com

– …ah, não sei o que faria sem minha mãezinha. Doutora, tudo o que sou devo a ela. – Pontuou o carneirinho.

– Muito mais do que você pensa, meu amigo. Muito mais do que você pensa. – Suspirou a analista. – A questão é que você já é um adulto e precisa deixar o rebanho onde nasceu.

– Ora, doutora. É claro que eu sei que terei que deixar minha mãezinha, mas quando o momento chegar. Ainda não estou pronto e nem ela. Sou jovem demais.

– Negação! Você fica berrando e batendo com os pés no chão a cada vez que se vê longe da sua mãe. Enquanto isso você mesmo disse que todos os outros filhotes que nasceram na mesma estação já estão pastando livremente formando um grupo só de filhotes.

– Isso porque eles são uns desnaturados! Eu não. Sou um filhote devotado. Além do mais, eu sou o caçula entre todos os que nasceram comigo. – Baliu o cliente com ar arrogante levantando o focinho lanoso bem alto.

– Isso explica muito. – Sussurrou a psicanalista. – Você é devotado ou exige devoção da sua mãe? Já percebeu como o carneiro dominante anda reagindo a você? Já é quase época de sua mãe entrar novamente no cio. – Argumentou a psicóloga.

– Mas minha mãe disse que nunca irá me abandonar, estará sempre lá para mim. Ela me ama tanto, doutora. Me ensinou onde pastar, em quem confiar e de que animais fugir. Me ensinou até o que comer para evitar umas dores de estômago terríveis quando o pasto está muito amargo. Tudo o que eu preciso saber para ser um carneiro grande, saudável e feliz.

– Tenho certeza de tudo isso. E tenho mais certeza ainda de que ela está tentando te ensinar uma última lição, meu rapaz. – Sentenciou a terapeuta.

– É mesmo? Que lição é essa? – Perguntou o carneirinho eriçando a lã das costas.

– Só falta lhe ensinar a ser independente e seguir sua vida adiante sem ela. Estou certa de que essa é a última lição que sua mãe deseja que aprenda. E como vai ser? Você será um bom filho e corresponderá às expectativas da sua mãe?

Essa foi a última fala da sessão. O carneirinho não respondeu. Baixou a cabeça e saiu do consultório pisando na ponta dos cascos com um ar entre o cabisbaixo e o meditabundo. Mas a doutora sabia que a sessão havia valido a pena.
Sanga, U., Provenza, F., & Villalba, J. (2011). Transmission of self-medicative behaviour from mother to offspring in sheep Animal Behaviour, 82 (2), 219-227 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.04.016

A pecerveja encalhada

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Era uma sexta-feira e a doutora só pensava em descansar. Tem cliente que acha que psicanalista é que nem aspirador de pó, enquanto você não precisa dele ele fica guardado naquele quartinho meio escuro até que você volte lá outra vez. Pois a doutora ansiava por um chope bem gelado ao fim do expediente. Ela merecia, não se recordava de ter tirado férias desde o fim do doutorado em etologia clínica (ou você achou que o “Dra.” dela era um desses títulos auto denominados?). Para complicar, essa semana sua secretária estava em licença de saúde. A suspeita era dengue e isso apavorava a analista porque uma de suas clientes mais frequentes ultimamente era uma Aedes anoréxica, só de sentir o cheiro de sangue já ficava enjoada. A suspeita era que estivesse infectada por Wolbachia.

-Bom dia, tenho uma consulta marcada com a doutora. – Disse a percevejinha que chegara dez minutos adiantada.

-Sou eu mesma. Vamos entrando, pode pousar ali no divã.

A Sra. Lygus, encalhada, mas cheia de amor para dar. Fonte: wci.colostate.edu

Já instaladas em seus respectivos estofados cliente e terapeuta iniciam a sessão.

-Doutora, é que desde que terminou meu último relacionamento não consigo mais namorar ninguém. Estou carente, precisando de um namorado.

-Dona Pe-cerveja. Digo, Perceveja, você está precisando de um namorado ou de novo do seu primeiro namorado? Você sofre de uma fixação pelo ex? – Perguntou a psicóloga.

-Não, eu tento me relacionar, mas parece que espanto os rapazes. Eles me evitam. Parecem fugir de mim.

-Hum, espanta os rapazes… – Espelhou a psicóloga.

-É, eles até se aproximam, apalpam meu abdômen com as antenas, mas na hora de partirmos para o que interessa eles se afastam. Às vezes eu até facilito a corte, sabe como são esses rapazes, muitos deles inseguros, tímidos, mas não tem jeito, eles acabam voando embora.

-Entendo. Você percebeu alguma mudança desde sua cópula com o seu ex? Alguma coisa no seu cheiro? – A analista aspirava o ar discretamente tentando ela identificar sua suspeita.

-Não. Por que?

-Dona Perceveja, alguns insetos parecem tornar-se menos atraentes para os machos. Isso foi atribuído a substâncias deixadas pelos ex-parceiros, mas não foi confirmado em todos os casos. Tem sido difícil identificar a molécula de odor. Moscas da fruta e algumas borboletas já demonstraram problemas parecidos com o que você relata.

-Mas… mas… e agora? Aquele desgraçado me conquistou, fez o que bem quis comigo e agora me deixa assim. Covarde! O que eu faço agora, doutora?

-Calma, esse odor perde efeito em pouco tempo. Com o tempo o seu poder de sedução retornará. Só não fique muito ansiosa que isso também espanta pretendentes. O que acha de retornar semana que vem para vermos como você está?

-Obrigada, doutora. Vou esperar. Nos revemos semana que vem, sim.

Enquanto a cliente se afastava a doutora suspirou. Pe-cerveja! Humpf! Ela é que estava em fixação. E voltou para conferir sua agenda. Só mais uma sessão no meio da tarde, facilmente adiável. O fim de semana começaria mais cedo.
Brent, C., & Byers, J. (2011). Female attractiveness modulated by a male-derived antiaphrodisiac pheromone in a plant bug Animal Behaviour, 82 (5), 937-943 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.08.010
Turley, A., Moreira, L., O’Neill, S., & McGraw, E. (2009). Wolbachia Infection Reduces Blood-Feeding Success in the Dengue Fever Mosquito, Aedes aegypti PLoS Neglected Tropical Diseases, 3 (9) DOI: 10.1371/journal.pntd.0000516

O esquilo hipocondríaco

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

Já haviam se passado dez minutos da consulta. A doutora ouvia do lado de fora a voz esganiçada do cliente da vez e sua nova secretária, uma adolescente que contratou depois de meses sem recepcionista porque poucas topavam atender animais. Decidiu tomar uma atitude.

-Bom dia, Sr. Urocitellus. Não vai entrar?

-Num, instante, doutora. Ele só está terminando de compartilhar comigo umas receitas para os cravos no meu nariz. – Antecipou-se a secretária à resposta do esquilo.

– Receitando!? Que eu saiba o senhor não é médico dermatologista, é? E a senhorita tem o dever de manter minha agenda em dia para não atrasar outros clientes. Quem sabe, ao invés de se consultar comigo, o senhor não prefira atender minha secretária? Nesse caso a senhorita lhe pague seus serviços e volte a me chamar quando o próximo cliente chegar, por favor.

– Não, não, doutora! – Gritou o esquilo passando por entre as pernas da lacaniana ligeiramente e saltando para cima do divã.

– Melhor assim. – O olhar severo da analista se transmutou em seu melhor sorriso num instante. – Bom dia. Pelo que vejo ainda anda preocupado com sua saúde.

– Sim, senhora. E isso não é uma coisa boa? Vivemos em tempos de cuidados ao próprio corpo, todos se exercitam, se alimentam melhor. Preocupar-se com a saúde é politicamente correto. – Respondeu orgulhoso o roedor.

Urocitellus columbianus

Urocitellus columbianus, o esquilo de chão de Columbia procurando uma farmácia. Foto de Martin Pot.

Silêncio.

Silêncio.

Mais silêncio…

– Doutora, me ajude. Não consigo me livrar dos remédios. Cada vez que tento parar de tomar começo a sentir comichões por todo o corpo, me sinto coberto de pulgas, carrapatos, piolhos e sarnas. Meu estômago fica embrulhado só de pensar nos vermes que devo ter. – Choramingou o esquilinho com os pelos das costas eriçados e coçando o pescoço com as patinhas de trás.

– Sr. Urocitellus, sente-se aqui à minha frente, deixe-me dar uma olhada em você.

O esquilo posicionou-se de costas para a doutora que começou a revirar seus pelos em meio a guinchos de deleite do cliente. A pelagem era de um cinza mesclado nas costas, tornando-se castanho dourado na barriga. Os pelos brilhavam com o viço de um macho saudável. A doutora não encontrou nenhum parasita, aliás, como das outras vezes que havia feito o mesmo. Entre os pelos só havia pequenas feridas causadas pelo próprio esquilo de tanto se coçar.

– Hum, muito preocupante! – Exclamou a analista.

– O que, um monte de carrapatos nas minhas costas? – Entrou em pânico o analisado.

– Não, um monte de minhocas na sua cabeça.

– Mas, doutora. Essa semana encontrei uma lêndea na minha barriga. Estou infestado, tenho certeza. A senhora procurou direito?

– Todos nós temos pequenos defeitos, são eles que nos fazem humanos, digo, esquilos. Por que esse medo todo das suas imperfeições? Por que esse desejo de um ideal platônico inalcançável? É um fardo pesado demais para um esquilo carregar. – Perguntou a psicanalista.

– E que fêmea irá querer um macho infestado e doente como eu? Acho que nem ganhar peso depois da hibernação eu ganhei esse ano.

– Sr. Urocitellus, as mulheres não olham só para essas coisas. O senhor está nublando seu olhar com essa busca insalubremente exagerada pela saúde e deixando de fazer o que geralmente conta. Está desperdiçando os poucos dias de cio das suas amigas procurando pulgas que não existem. Olha, pense nos seus colegas mais bem sucedidos com as meninas da área. Eles são totalmente livres de parasitas? – Enquanto a doutora falava o esquilo lembrou-se de como ouviu algumas fêmeas cochichando e rindo sobre como era sexy a forma como um macho rival coçava a barriga com as mãozinhas felpudas enquanto tomava sol.

– Acho que o senhor deveria se concentrar em cuidar desses pensamentos que te sugam e esquecer os parasitas imaginários. Tenho certeza de que eles afetam menos seu sucesso com as garotas do que sua autoestima. Nossa sessão acabou por hoje, mas quero voltar a vê-lo antes da próxima hibernação para saber como passou a estação reprodutiva e se seguiu meus conselhos.

Na saída do consultório o esquilo precisou interromper duas vezes a secretária, que não parava de espremer o nariz, para que ela preenchesse seu retorno dali a algum tempo.
Raveh, S., Heg, D., Dobson, F., Coltman, D., Gorrell, J., Balmer, A., Röösli, S., & Neuhaus, P. (2011). No experimental effects of parasite load on male mating behaviour and reproductive success Animal Behaviour, 82 (4), 673-682 DOI: 10.1016/j.anbehav.2011.06.018

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A caranguejo ferradura adúltera

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Naquela manhã no consultório psicanalítico…

 

Outra vez a Terapeuta aguardava com a porta do consultório aberta a chegada do próximo cliente. Ela detestava ter que fazer isto porque considerava que sua sala deveria ser algo mais reservado. Simbolicamente, o consultório é quase um útero, diria Jung. Então ali estava a Dra., com seu útero aberto, tudo por causa da secretária. Desde que um caranguejo chama-maré com síndrome da hiperatividade beliscara a secretária a ponto de arrancar-lhe a carne, haviam as duas acertado que em dia de consulta daquele ou outros crustáceos a secretária não compareceria. O cliente de hoje era, de fato, um quelicerado, mas a Dra desistiu de discutir os detalhes taxonômicos com a funcionária e a liberou.

A criatura que saiu do elevador mais parecia uma dessas semi-esferas usadas para separar duas pistas seguida de um rabinho triangular esquisito. Arrastava-se com dificuldade desde o paleozóico até o presente, consultório adentro.

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Umas fiéis (abaixo) outras se divertem(acima)
Fonte: Searcy & Barret, 2010, Animal Behaviour

-Bom dia, Sra. Límula. Seja bem vinda. Como vão seus 54208 filhos? – Saudou-a a psicanalista.

-Bom dia, doutora. Veja, agora já são 115892, mas não tenho muitas notícias deles. A última vez que os vi foi na forma de ovinhos pela areia da praia.

-Huh! Compreendo. E o que me conta hoje? – Perguntou a analista ajudando a cliente, que media 30 cm, a subir no divã.

-Ah, doutora, a estação tem sido ótima. Acabamos de ter uma maré alta perfeita, o amor estava por todos os lados, as águas tépidas. A sra. já esteve no México na primavera? Tudo é tão bonito lá, as praias têm areias brancas e águas azuis…

-Sra. Límula, a senhora não veio aqui conversar sobre o México. Por que não corta o papo e vai direto ao assunto que está tentando evitar? – Disse a analista em um tom paciente, mas assertivo.

A cliente afundou no divã, seus olhos compostos eram duas bolinhas negras de tristeza.

-Tem razão. É que aconteceu uma coisa essa última maré alta. A caminho da praia eu conheci meu marido. Nos encontramos, conversamos e ele era um macho maravilhoso, tinha uma pegada firme, me fez sentir segura com ele. Passamos meses pareados na orla esperando pela maré certa e a espera foi perfeita, nosso amor só crescia.

-Eu pressinto um “mas” vindo por aí. – Murmurou a psicóloga consigo mesma.

-Mas no  dia que subimos à praia não sei explicar o que aconteceu. Assim que chegamos um grupo de quatro machinhos  veio conversar, tinham um papo agradável e meu marido não pareceu se incomodar com a presença deles ali. Eles eram simpáticos, mas não eram o tipo que uma garota escolhe como marido, inspiravam mais uma aventura amorosa do que uma relação séria. Ainda assim, suas personalidades descontraídas e sedutoras de quem passa o dia na praia esperando para a azaração me cativou. Ai doutora, meu corpo tinha urgência de sexo que nas últimas semanas eu não tinha dúvida de que seria com meu marido, mas naquele momento aqueles quatro estranhos ali não me saíam do prossoma. Começamos a cavar um ninho e eles se aproximavam cada vez mais, agora se metendo entre eu e meu marido. Aquele que deveria ser o momento de maior privacidade de um casal agora era compartilhado com aqueles quatro rapazes. – À medida que falava, a Sra. Límula procurava no rosto da terapeuta qualquer traço de reprovação que permanecia oculto. Então ela decidiu seguir adiante. – Dra, acasalamos nós seis juntos. Ao mesmo tempo em que eu desovava na areia e meu marido fecundava meus ovos aqueles quatro pervertidos também jogavam seus gametas entre meus ovos.

-A senhora gostou de ser cortejada por tantos machos? – Perguntou a psicanalista.

-Ora, doutora. Isso não é certo! Eu deveria ter deixado a praia assim que aqueles rapazes chegaram. Uma xifosura séria não deveria…- A frase foi interrompida pela analista.

-Poupe seus recalcamentos para seus diálogos internos. Se a senhora veio em busca de perdão tem uma igreja católica ali na esquina. Aqui é um consultório psicanalítico. Aqueles cinco pretendentes te encheram a bola, não foi?

-Foi sim, doutora! Alimentaram meu narcisismo. Eu adorei acasalar com aqueles cinco homens. Não achei certo com meu marido depois de tanto tempo de devoção. Mas, no que se refere a mim, eu adorei o sexo. Sou uma vadia e gosto disso! – Gritou a carangueja numa catarse que terminou em lágrimas que ela tentou esconder com as quelíceras.

A psicóloga esperou alguns instantes até que a cliente se acalmasse. – Sra. Límula, seu marido não é o único xifosuro interessante no mundo. ele é UM deles. Por que acha que não tem direito ao prazer de ter vários parceiros ao mesmo tempo se o mais interessado na sua monogamia, que é o seu marido, pareceu ceder a ela?

-Mas e a minha segurança? Isso de ter vários parceiros não é perigoso? – Foi a vez da cliente perguntar.

-Sua fecundação é externa, isso reduz o risco de doenças sexualmente transmissíveis. Ainda há outros custos possíveis, mas nenhum parece te afetar muito. Sra. Límula, parece ser uma tática entre alguns caranguejos ferradura ser monogâmicos e outros não o serem. Você deveria se preocupar menos e aproveitar mais, ainda mais sabendo que seu marido aceita essa relação aberta. – Concluiu a doutora no exato momento em que a duração da consulta se esgotou.

A terapeuta ficou assistindo enquanto aquela criaturinha tão primitiva e tão complicada se afastava a passos vacilantes. Dava para perceber que ela deixara o consultório ainda não convencida, mas a semana que se seguiria iria se encarregar de convencê-la através de seus diálogos internos.

Johnson, S., & Brockmann, H. (2010). Costs of multiple mates: an experimental study in horseshoe crabs Animal Behaviour, 80 (5), 773-782 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.07.019

O díptero traído

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à minha colega, Profa. Celice Silva,

sim, há coisas legais nas plantas também

 

Naquela manhã, no consultório psicanalílico…

 

Já haviam se passado cinco minutos e nada do cliente aparecer. A doutora foi conferir na ante-sala e teve um sobressalto. Sua secretária, rolo de jornal em riste, se preparava para golpear uma mosquinha de asas murchas que havia pousado sobre sua mesa. A doutora deu um ágil pulo e tomou a arma da mão da secretária, salvando assim seu cliente da morte súbita.

-Pode entrar e ir se acomodando, Sr. Megapalpus. Eu vou num segundo. – Disse a analista sem tirar o olhar de repreensão da secretária.

A mosquinha pousou bem no encosto do divã, alheio aos gritos do lado de fora da sala, no máximo percebeu uma leve vermelhidão no rosto da terapeuta e suas carótidas saltadas ao entrar na sala.

-Bom dia. Como tem andado o senhor?

-Estou sofrendo de amor, doutora! Num momento nunca tive tanta sorte com as garotas, no seguinte todas me abandonaram. Não tenho mais motivo para viver. A senhora deveria ter me permitido o alívio eterno debaixo daquele rolo de jornal – E o pequeno díptero pontuou a frase com um muxoxo do labro.

-É mesmo? Que coisa. Quer me falar mais sobre esta maré de azar? – A terapeuta era treinada em ignorar rompantes depressivos.

-Olha, doutora. Nunca fui um rapaz de muito traquejo com as fêmeas. Sabe como é, há tantos outros machos por aí com os tergitos sarados de academia. Quase nunca me dava bem. De uns tempos para cá, em uma floreira perto de casa não paravam de aparecer mosquinhas lindas pousadas sobre as belas pétalas alaranjadas que nos serviam de lençol. Elas eram perfumadas como uma flor. Tão lindas, tão acessíveis e tão… tão… tão pouco seletivas!

– E como era a vida de vocês longe da floreira? – Indagou a psicóloga.

-Relacionamento fora da floreira? Doutora, isso praticamente não existia. Elas eram insaciáveis, sempre dispostas a mais e mais. Me aceitavam como sou, me enchiam de amor e prazer. No mais, elas me escutavam e me compreendiam como ninguém. Se eu começava a falar de mim elas eram excelentes ouvintes, jamais me interromperam. Mas era só um interlúdio entre uma sessão de sexo e outra. Nós nos amando no jardim e uma chuva dourada de pólen jorrando sobre nós com o frenesi dos meus movimentos.

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É o que não pode ser que não é

Fonte: Ellis e Johnson, 2010

 

-Menos detalhes, meu amigo. Menos detalhes. Quantas eram as suas amigas especiais? Quando começaram estes casos?

-Na primavera. Foram dois meses de muita paixão. Tinha no total dezesseis amantes. – Respondeu o díptero quase orgulhoso.

– E quando e por que tudo terminou?

-Me parte o coração só de lembrar. Ontem pela manhã voltei para minhas deusas na floreira e tudo havia mudado. Nossos lençóis de pétalas alaranjadas caídas sobre a terra, assim como os cacos do meu coração. Todas haviam partido juntas, só restava na floreira os frutos compostos das margaridas em início de amadurecimento. Fiquei tão preocupado com elas, perguntei a uma aranha de jardim que passava por ali. Mas, em vez de me responder, a maldita riu de mim. Não sei se minhas amantes foram raptadas, se me usaram e se cansaram de mim.

-Senhor Megapalpus, tenho outra má notícia para o senhor. – Instantaneamente o rosto da mosca se deformou de preocupação e uma lagrima escorreu do ocelo esquerdo. – Acho que o senhor estava sendo enganado desde o início da primavera. Fêmeas meio inertes, sempre acessíveis, cheirosas como uma flor, encontros sobre as pétalas, tudo começou na primavera, chuva de pólen. Elementar, meu caro díptero, estás sendo ludibriado por flores precisando de um polinizador. Em algumas orquídeas as pétalas simulam em odor e forma uma fêmea que atrai machos para copular. Ao tentar isto os machos se cobrem de pólen que é levado a outra planta quando este macho novamente é enganado. Nunca havia ouvido falar de margaridas fazendo isto com moscas, mas é a única explicação que me ocorre.

Na saída do consultório mosca e secretária se defrontaram novamente. Desta vez ambas estavam com cara de humilhadas; esta por ter sido enganada por uma flor, aquela pela bronca que levara. O Sr. Megapalpus capensis nem se deu ao trabalho de marcar outra sessão, aquela questão seria resolvida com sangue, ou melhor, neste caso com seiva bruta.

 

Ellis, A., & Johnson, S. (2010). Floral Mimicry Enhances Pollen Export: The Evolution of Pollination by Sexual Deceit Outside of the Orchidaceae The American Naturalist, 176 (5) DOI: 10.1086/656487

A foca superprotetora

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A Dra. aguardava a chegada da próxima cliente de portas abertas, o que muito a incomodava. Seu consultório deveria ser uma alcova para estimular a falar quem em seu divã se deitasse. Consultório psicanalítico não é que nem botequim que todo o mundo que passa diante da porta deve ver o que tem lé dentro. Ainda mais um consultório para animais de todas as espécies. Estes que escondem os mais reconditos segredos aos quais só a doutora teria acesso. Estes que nela confiam. Mas desta vez a secretária estava de licença médica. Havia pego malária de um gorila que vinha tendo problemas com seu harém de quatro esposas, todas ovulando juntas. Agora a moça exigia um adicional de insalubridade e periculosidade ao seu soldo.

O sinal sonoro do elevador foi o prenúncio da chegada, mas a doutora ainda teve que esperar quase um minuto para a cliente desta manhã atravessar aos tabefes os doze metros que separavam a porta do consultório e o elevador. Era uma foca de pelagem e humor cinzentos que atravessou a antessala sem responder o “Bom dia” que a doutora lhe dirigiu. Foi direto ao divã onde subiu como pode e deitou-se de lado.

– Meu filho, doutora. Não sei o que fazer com ele. Vocês psicanalistas vivem dizendo que é tudo culpa da mãe, pois eu queria ver o que seria do Sr. Freud sem sua mãe judia! Isso não é culpa da mãe, né? – Foram as primeiras palavras da foca naquela sessão.

– Sra. Halichoerus, bem vinda. Como é que a Sra. está? – Perguntou a terapeuta com um sorriso forçado, ciente do histórico da cliente.

– É impressionante que eu precise pagar alguém para me perguntar como estou. Ninguém se preocupa com como é que eu estou! Meu filho? Um desnaturado. Não fica ao meu lado, nada pela praia com outros filhotes que não lhe são boa companhia, entra na água e some por aí, nem mamar ele mama. Ele é jovem demais para sair de casa.

– Que idade mesmo tem seu bebê?

foca superprotetora

Se fosse seu filho você o perderia de vista?

Fonte: Animal Diversity Web

– Só 17 dias, meu filhinho. Pode uma coisa dessas? Essas crianças de hoje não têm coração, nunca ajudam em nada e não se preocupam com suas velhas mães quando resolvem sair de casa. Sabe que eu já perdi peso desde que meu filhinho me abandonou? Estou me sentindo tão fraca. – Disse a foca com os olhos rasos d’água.

– É mesmo? E por que a senhora emagreceu?

– Porque não tenho saído para pegar peixes?

– E por que não? – Interrogou a doutora.

– E se meu filhinho retorna e eu estou no mar procurando comida? Não podia correr o risco! – Concluiu a foca.

– Mas Sra. Halichoerus, filhotes da sua espécie tendem a desmamar aos 15 dias de idade. São muito independentes desde cedo na maioria dos casos. A senhora não pode querer controlar a vida dele. – Ralhou a analista.

– A senhora diz isso porque não é o seu filho. Sabe que nem ganhar peso ele ganha? Os outros filhotes na praia estão grandes e gordos. Saudáveis. Meu filho está esquelético. O bebezinho de uma amiga ganhou 5 kg em uma semana, já meu filho perdeu 2 kg, pesa só 40 kg. A senhora sabe que ele pode até morrer por causa disso? Aposto que não, nem filhos deve ter! – Disse a foca com os bigodes eriçados e um ar que seria aterrorizante se sua aparência não fosse tão dócil.

A doutora adotou seu tom mais severo e recolheu-se para longe do abajur onde a foca não a podia enxergar. – Minha vida pessoal não lhe diz respeito. Estamos aqui para falar sobre a senhora. Além do mais, filhotes de foca mal nutridos podem sim ter problemas, mas seu filhote está saudável, 40 kg é mais do que suficiente para ele. Por que a senhora sente tanta culpa?

Agora todas as defesas da cliente pareciam ter desmoronado. Ela largou-se prostrada no divã e disse em um sussurro rouco: – Dra., acho que escolhi o pior ponto da praia para ter meu filhote, perto demais da margem. Temos muitas tempestades e quando o vento aumenta as ondas varrem a praia. A primeira vez que meu filhote foi para a água foi numa tempestade dessas, levado por uma onda. É tudo culpa minha! – Dito isto a foca pôs-se a chorar.

Passados uns dois minutos e meia caixinha de lenços a psicóloga recomeçou a falar.

– Tenho certeza que ele sabe como a competição por um lugar na praia é acirrada, Dona Halichoerus grypus. Se ainda não o sabe, logo descobrirá. A senhora não deve se culpar por isto. O que importa é que seu filho é mais franzino do que seus colegas, mas é saudável. Sabe do que mais? Estou certa de que nessas incursões marinhas que a senhora tanto se preocupa, seu filhote estava aprendendo muito sobre como capturar peixes. Logo mais todos os seus colegas irão perder o peso que ganharam sob as barras das saias de suas mães quando forem para o mar. E então será a vez do seu guri se destacar e engordar novamente.

– Ah, mas é tão duro deixá-los ir embora. Eu olho para meu filhote e não o vejo como uma foca adulta. Para mim ele será para sempre a coisinha branca e felpuda de grandes olhos negros que eu vi nascer e criei. – Dizia a mãe superprotetora quando o final da sessão foi anunciado.

– Até breve, Sra. Halichoerus. Não se preocupe nem se culpe tanto. Vá aproveitar a vida que ela é curta. – Despediu-se a analista com um sorriso ao ver as formas roliças da foca afastando-se pelo corredor.

Jenssen, B., Åsmul, J., Ekker, M., & Vongraven, D. (2010). To go for a swim or not? Consequences of neonatal aquatic dispersal behaviour for growth in grey seal pups Animal Behaviour, 80 (4), 667-673 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.06.028

O gobião na secura

ResearchBlogging.org

Naquela manhã no consultório psicanalítico

– Doutora, a senhora poderia vir receber o seu paciente, por favor!

Já era a terceira vez que a nova secretária interfonava para o consultório, mas a psicóloga estava bastante ocupada e ainda não era o horário do próximo paciente. A doutora tinha uma preferência por atendentes bonitas, mas ultimamente não podia escolher muito. Desde que a última secretária se apaixonara por uma hiena lésbica bem-dotada que frequentava o consultório e fugira para Botswana com seu novo amor, a doutora contratou a primeira moça que lhe apareceu pela frente e não queria perdê-la. A secretária tinha 1,88 m, pesava no máximo 50 kg, até aí poderia ser uma modelo esquuálida se a pele do seu rosto não lembrasse areia fina depois da chuva, seu cabelo não parecesse um tamanduá enrolado para dormir e se entre um dente o outro não passasse um dedo.

Na antessala um gobião olhava lânguido para a secretária enquanto fazia uma reverência e estendia ao objeto de seus desejos um buque de flores de plástico.

– Senhor Chlamydogobius, o senhor já chegou! Deve estar ansioso para conversarmos. Por que não devolve as flores do consultório odontológico ao lado, para de beijar a mão da minha secretária e se apressa a tomar o seu lugar no divã?

– Ah, doutora. Não tenha pressa. Eu poderia esperar a eternidade ao lado desta beldade. – Respondeu o peixe soltando coraçõezinhos pelos olhos. A doutora o arrastou pela nadadeira caudal para dentro de sua sala deixando para trás um rastro gosmento como seu amor.

chlamydogobius

Muito tempo sem namorada reduziu seus critérios?

Fonte: www.fishbase.org

– Então, meu amigo australiano, sobre o que quer conversar hoje? – Veio a voz suave, mas num tom claramente repressor, de um ponto invisível atrás do espaldar do divã.

– Sobre o amor! Estou apaixonado. – Declarou o gobídeo ainda fitando a porta.

– Ah, mas isto é muito bom! E desde quando o senhor está amando assim? – Perguntou como que casualmente a analista, mas já ciente do caso.

– Para falar bem a verdade, acho que desde que vi sua secretária. Foi paixão à primeira vista.

– Quanto tempo faz que o senhor está solteiro? – Agora não havia nem sinal de casualidade.

– Não vejo qual o interesse de sua pergunta, mas agora que falou, acho que já faz um bom tempo desde que a última garota passou pela minha toca. Como não saio muito dela, acabo dependendo de alguma fêmea ativamente passar por lá. – O peixinho agora parecia intrigado.

– Veja, meu amigo, essa paixão arrebatadora é fruto do longo período de espera. Você…

– Não é, não. Eu amo sua secretária. Como é que ela se chama mesmo? – Interrompeu o cliente negando a terapeuta, que se calou e ficou esperando que ele terminasse.

Alguns instantes de silêncio pareceram ao peixe uma eternidade. Para quebrar aquela situação constrangedora ele precisava falar novamente.

– A Sra. acha isso mesmo? – Perguntou o cliente com olhos de peixe morto.

– A paixão, Sr. Chlamidogobius, é proporcional ao volume de esperma acumulado*. – A voz detrás do divã disse com assertividade incontestável.

-  Mas… – ouviu-se um longo suspiro. – Essa visão não é muito romântica, não é mesmo?

– Veja bem, é claro que o senhor sabe o que é uma fêmea bonita. Só que, à medida que o tempo passa, vai baixando seus critérios com receio de ficar sozinho até chegar a um ponto de achar irresistível uma mulher como minha secretária. Se o senhor a conhecesse logo após encontrar uma fêmea bonita certamente não a desejaria tão vorazmente. – À medida que a dra. falava o peixinho parecia ficar revoltado, mas lhe restava pouca energia para discutir. – O que quero do senhor é que volte na próxima semana e que, daqui até lá, faça um exercício: encontrar-se com o maior número de fêmeas que conseguir. Se na próxima semana essa paixonite não passar, serei madrinha de casamento de vocês dois!

– De verdade, doutora? – Exclamou o peixe excitado. – Onde é que tem uma boa joalheria por perto?

A doutora se despediu do cliente na antessala com a intenção de proteger do assédio sua secretária. Ela agora estava com olhos que pareciam arregalados mesmo através das espessas lentes de seus óculos fundo de garrafa. O Sr. Chlamidogobius não pode evitar encarar o objeto de seu amor, mas subitamente começou a enxergar coisas que pareciam não estar ali antes, como a pinta muito escura e peluda do tamanho de uma digital que havia na testa da menina.

 

Svensson, P., Lehtonen, T., & Wong, B. (2010). The interval between sexual encounters affects male courtship tactics in a desert-dwelling fish Behavioral Ecology and Sociobiology DOI: 10.1007/s00265-010-1007-z

 

*Pequeno dicionário amoroso.

O opilião aproveitador

ResearchBlogging.org

Naquela manhã no consultório psicanalítico

 

– Ah, que horror! – A doutora, preocupada, correu para a antessala ao ouvir o grito de sua nova secretária. Desde que sua última pedira demissão, apavorada com um tubarão martelo enorme que estava deprimido pelo fim da simbiose de limpeza com uma peixinha recifal, ela decidiu contratar uma estudante de veterinária para o cargo. Pelo menos veterinários seriam mais acostumados à fauna que comparecia ao consultório. Na recepção sua secretária estava de pé sobre a cadeira, com um tamanco na mão pronta para atirá-lo. No outro canto do cômodo uma criatura cheia de longas pernas se encolhia contra a parede com os omatídeos arregalados.

pseudopucrolia

O Sr. Pseudopucrólia sobre o divã da doutora.

Foto de Glauco Machado

 

A terapeuta se colocou entre a secretária e o aracnídeo. – Calma, abaixe o tamanco. Ele é um cliente e é inofensivo. Não é uma aranha, mas um opilião. – Depois voltou-se para o bichinho sorrindo e convidou-o a entrar no consultório. Ela não imaginou que uma veterinária não teria familiaridade com animais menores.

Agora o opilião, um macho cheio de espinhos e bolotas nas pernas posteriores estava seguramente deitado no divã – O que tem a me contar, Sr. Pseudopucrolia? – Perguntou a dra.

– É a danada da culpa, doutora. Não sei mais o que fazer com ela.

– E o que te causa tanta culpa? – A doutora estava com um vestido até os joelhos e os cabelos, meio revoltos, soltos por cima dos ombros. Não havia um cliente que não a achasse linda.

– Doutora, sou um pai dedicado, protejo dos predadores meus futuros filhotes em seus ovos, mas no fundo sei que só estou me aproveitando disso. – O opilião respondeu fazendo um muxoxo de tristeza com as pedipalpos.

– E como é que você se aproveita dos seus filhotes? – A analista perguntou enquanto cruzava as pernas e reclinava o corpo para ouvi-lo melhor.

– Cuido bem dos meus ovinhos, mas é tudo uma desculpa para seduzir as mulheres. Tem um monte de fêmeas que ficam caidinhas por um bom pai e eu me aproveito disso. Desde que consegui minha primeira leva de ovos desta estação reprodutiva já acasalei com outras cinco! – Disse o aracnídeo, gabando-se.

– Entendi. É comum que as fêmeas gostem de rapazes que saibam cuidar bem dos seus filhotes, protegê-los e ajudá-los a sobreviver. Não há do que se envergonhar por ser um bom pai, você não está obrigando elas a nada.  Pode ter certeza de que, enquanto você cuida dos seus ovinhos, elas estão por aí, se alimentando, tem até muitos outros ovos mais para deixar com outros machos, se assim preferirem.

– Exatamente, doutora. Às vezes até invejo os machos sem cria, que passam o dia vadiando, sem ninguém a se preocupar além de si mesmos. Mas tenho certeza que na hora do amor é o meu ninho que estará cheio e eles estarão tristes e solitários. Sabe que tem uns caras que, tamanho o desespero, chegam a roubar os ovos de outros pais para fingir que são seus? Um verdadeiro horror! – Confidenciou o cliente.

– Pois acredito em você. Aliás, isso é mais comum do que o senhor pensa aqui no consultório. – Disse a analista.

– A senhora quer ver uma foto dos meus filhos? Olha que lindos. – O Sr. Pseudopucrolia sacou de um bolso da carteira a foto abaixo. Nada muito visualmente atraente.

 

pseudopucrolia ovos

O bom pai e seus filhinhos

Foto de Glauco Machado

 

-Hum, que gracinha. – Disse a terapeuta sem conseguir disfarçar muito bem o desinteresse.

-Você achou? Quem sabe não gostaria de passar lá em casa um dia desses para conhecê-los melhor? – O opilião estampou um sorriso sedutor nas quelíceras encarando a doutora.

A terapeuta lançou-lhe um olhar de repreensão encaminhando-se à porta. – Estamos conversados por hoje, senhor Pseudopucrolia. Passar bem!

O opilião saiu visivelmente envergonhado do consultório enquanto a doutora dava um profundo suspiro ao notar a escrivaninha da secretária vazia exceto por um bilhete onda a palavra DEMISSÃO podia ser lida à distância.

 

Nazareth, T., & Machado, G. (2010). Mating system and exclusive postzygotic paternal care in a Neotropical harvestman (Arachnida: Opiliones) Animal Behaviour, 79 (3), 547-554 DOI: 10.1016/j.anbehav.2009.11.026