Brasil x Chile – A anatomia de um gol

Trinta e três minutos do primeiro tempo, o Brasil vem dominando o jogo, embora ainda não tenha gerado grandes sustos para a defesa chilena, o placar está em 0 x 0. Em um ataque pelo lado esquerdo do gol chileno a bola é colocada para fora numa tentativa de afastar o perigo e reposicionar a zaga. Maicon vai bater.

juan

Quem diria, precisar contar com zagueiro para sair gol para o Brasil!

Fonte: www.fifa.com

 

Na grande área um monte de brasileiros e chilenos se espremem e empurram de um lado para o outro tentando atrapalhar ou se posicionar melhor. O zagueiro Juan, com 1,83 m, fica por ali para colaborar na jogada aérea com sua altura. Olhando ao redor ele tenta memorizar a posição dos adversários. Vê que Lúcio anulou pelo menos dois jogadores chilenos, vê Gilberto Silva se posicionando para um possível rebote e Luis Fabiano à sua frente, mas muito marcado, vê ainda o goleiro mal posicionado. Estas informações entram pelos olhos de Juan e vão para um mapa mental de curta duração cuja informação será apagada logo que a jogada terminar.

No mesmo córtex bailam informações sobre o papel de cada jogador em lances semelhantes trazidos direto do hipocampo: As instruções do Dunga antes do jogo e nos treinos de bolas paradas e um histórico do próprio Juan em jogadas semelhantes. Memórias boas, como outro gol de cabeça em um dos rachões na fase de grupos desta copa, vêm à tona estimulando positivamente sua decisão de participar da jogada. Memórias ruins, como o gol praticamente feito que ele desperdiçou enquanto jogava pelo Milan e cabeceou para fora uma bola espalmada coincidentemente pelo Júlio Cesar na final do campeonato italiano contra o Roma, também vêm à tona como uma punição. Dosar os custos e os benefícios de participar da jogada é o que o córtex frontal de Juan faz nas frações de segundo que antecedem o escanteio.

cortex

A retina recebe, toca para o quiasma óptico, ele trabalha com o tálamo que faz o lançamento para o lobo occipital e é goooool!

Fonte: www.psicofarmacos.info

 

O sistema nervoso de Juan capta informações das mais diferentes naturezas. Da mesma forma que a posição dos adversários entra por sua retina, seus neurônios táteis do pé coletam informações sobre a textura da grama, sensores no sangue o avisam de uma leve sensação de sede e os ouvidos comunicam o constante zumbido das vuvunzelas. Essa torrente de informação passa antes pelo tálamo, onde é filtrada e apenas o que interessa para o problema que Juan precisa resolver (meter a jabulani na rede chilena) é transmitido ao córtex. As informações sensoriais importantes vindas do tálamo se articulam às informações memorizadas pelo zagueiro nos treinos e preleções, resultando em um plano de ação. A resposta do jogador após o escanteio que o camisa 2 ainda nem cobrou já começa a ser delineada no córtex motor do lobo frontal, como um ensaio mental dos movimentos que se seguirão.

O chute no estilo chuveirinho sobrevoa a muvuca toda de jogadores de ambas as equipes e cai aberto na altura da segunda trave. A resposta programada pelo córtex motor de Juan é retransmitida ao cerebelo, que irá coordenar as dezenas de contrações e relaxamentos musculares necessários ao pulo e à cabeçada baseando-se em memórias de ações fixadas pela repetição à exaustão de jogadas nos treinos.  O zagueiro sobe mais alto que todo o mundo e cabeceia por cima do goleiro bem no cantinho direito do gol. Brasil 1 x 0 Chile, abrimos o placar para mais dois gols que se seguiriam e garantimos a pertida de quartas de final contra a Holanda.

Pensamento de Segunda

“A base da superstição é que o homem observa quando as coisas dão, certo, nunca quando dão errado. E só memoriza um, ignorando o outro.”
Sir Francis Bacon

Tudo em um ano 3 – Genoma Zero

A essa altura você mal se lembra do que se trata esta série. Se este for o caso clique aqui e em seguida aqui para recapitular. Nos fogos de reveillon que deram boas vindas ao ano de 2010 eu enxerguei a grande explosão, a maior de todos os tempos, aquela que deu início a tudo e desde então os grandes eventos da história do universo que estão mais intimamente relacionados a nós, humanos, vêm se acumulando. Desde o último post desta série o universo não passava de uma porção de nuvens de poeira vagando nas fronteiras do espaço, nenhum objeto maior, nenhuma estrela, planeta ou satélite existia. Era como se o universo estivesse em gestação, uma gestação que ainda irá durar até agosto, daqui a dois bilhões de anos.

Hoje, porém, a data não marca um acontecimento de fato, mas uma suposição. E com essa suposição vem uma série de novas dúvidas. Por regra de três, se a história do universo se resumisse a um único dia algo que ocorreu há 7.000.000.000 anos teria ocorrido exatamente hoje, 25 de junho.

Desde o advento da biologia molecular que os cientistas observaram uma tendência ao aumento da complexidade nos genomas dos seres vivos. Esta complexidade é, em geral, derivada apenas do aumento da quantidade de informação carregada neste genoma, ou seja, da quantidade de genes que o organismo possui. Nosso DNA tem por volta de 23 mil genes, e 3 bilhões de pares de bases; o DNA da Mycoplasma genitalium tem 523 genes e 500 mil pares de bases. Outro aspecto geralmente aceito hoje é que o aumento do material genético ocorre por duplicação de pedaços de DNA previamente existentes. Existem inclusive formas de usar a taxa de transformação do DNA no tempo como um tipo de relógio para medir geneticamente quanto tempo faz que dois grupos de organismos se separaram na história evolutiva, por exemplo. São os chamados relógios moleculares.

Bom, se sabemos que toda a complexidade genética existente hoje derivou de duplicações e que essas duplicações ocorrem com uma dada frequência no tempo, é possível calcular quando foi que o genoma mais simples possível existiu, o chamado genoma zero. Fazendo os cálculos necessários, supõe-se que o genoma zero teria existido há cerca de sete bilhões de anos, em 25 de junho do nosso ano universal.

O leitor mais atento há de ter percebido que em nossos episódios anteriores não foi descrita ainda a formação de nosso planeta, portanto, se a hipótese do genoma zero vier a se confirmar isso seria uma evidência de que a vida não surgiu em nosso planeta, mas em outro rincão deste universo, apenas tendo chegado aqui num segundo momento. Como dizem meus alunos: “é o tipo de coisa que se você for parar para pensar muito, enlouquece.” Mais complicado do que a vida ter surgido solta no universo e ter vindo para a Terra depois é que neste período não havia muitas opções de onde surgir vida, já que estrelas, planetas e luas ainda estavam em formação, o que de fato ameaça a hipótese do genoma zero.

Neste caso, como se explicaria o resultado de sete bilhões de anos. Bem, pode ser que a taxa de multiplicação genômica que vemos hoje não seja a que existiu em toda a história da vida. Mecanismos de correção do DNA e intolerância a mutações são fatores relativamente recentes na história evolutiva que nos fizeram acreditar que o genoma zero ocorreu antes. Também é possível que nunca tenha havido um organismo geneticamente super simplificado, já que neste caso o DNA codificaria muito pouca informação, não sendo funcional. Pode ser que os seres vivos tenham surgido já com um genoma mais amplo de forma a portar as instruções necessárias à vida deles como um todo.

De qualquer forma o que o genoma zero nos faz pensar é na possibilidade da vida não ter surgido na Terra. Esta possibilidade existe e meios para que ela viajasse pelo espaço e viesse colonizar esta terceira rocha a partir do sol também são concebíveis.

Moção de repúdio

Este blogueiro manifesta-se aqui em repúdio à falta de gols do jogo de hoje que simplesmente arruinou as ideias de prosseguimento à série “anatomia de um gol”. Aprovieta-se do ensejo o autor para afirmar que neste ritmo as próximas postagens da série terão de ficar engavetadas até 2014.

Pensamento de Segunda

“O fato de alguns gênios terem sido ridicularizados não faz com que todos os que foram ridicularizados sejam gênios. Riram de Cristovão Colombo, riram de Fulton, riram dos irmãos Wirght, mas também riram do palhaço Bozo.”
Carl Sagan

Brasil x Costa do Marfim – A anatomia de um gol

Luis Fabiano

Esse foi com o pé mesmo

Fonte: www.fifa.com

 

Brasil e Costa do Marfim, 24 minutos do primeiro tempo, Robinho invade a intermediária densamente povoada de jogadores da Costa do Marfim, toca para Luis Fabiano que, de calcanhar, passapara Kaká. O meio-de-campo limpa um pouco a jogada e devolve para Luis Fabiano que manda uma bomba por cima do goleiro.

Ao receber o serviço do Kaká, o artilheiro (agora sim, pelo menos) acompanha com os olhos a bola e registra mentalmente a posição dos zagueiros e do goleiro.

Feita a mira e encontrada a oportunidade o camisa 9 prepara o chute contraindo bíceps femurais e glúteos direitos, o equilíbrio é garantido pelos braços erguidos pela contração dos deltóides, nos ombros.

quadriceps

Bendito seja o fabuloso quadríceps do Luis Fabiano

Fonte: auladeanatomia.com

 

Neste momento, impulsos nervosos cefálicos descem a coluna vertebral até um alargamento nervoso no início das vértebras lombares, dali saem diversos nervos que seguem por dentro das cavidades vertebrais até a altura das vértebras lombares 2 a 4, quando deixam a coluna e formam um nervo femoral. Neurônios motores destes nervos irão inervar o quadríceps, o músculo da parte da frente da coxa. Axônios terminais destes neurônios descarregam substâncias de comunicação em um estreito espaço entre a célula nervosa e a muscular chamada de fenda sináptica, estas substâncias de comunicação, neste caso a acetilcolina, irão fazer com que proteínas na membrana da célula muscular da coxa do Luis Fabiano se abram, deixando entrar uma grande quantidade de íons de sódio e expelindo íons de potássio, um efeito semelhante a um choque elétrico em escala microscópica. A consequência deste “choque”, espalhado pelo interior da célula através de canais especializados, é que um reservatório dentro da célula muscular irá jogar no citoplasma íons de cálcio, um elemento essencial para a contração muscular em si.

 

 

O que faz a perna do Luis Fabiano se estender e acertar com o peito do pé a famigerada Jabulani, mandando-a para a rede é um encurtamento do quadríceps, que começa na parte alta do fêmur e na bacia e termina na patela com prolongamentos que vão até a tíbia, um dos ossos da canela. Este encurtamento é o resultado da contração de inúmeras células musculares. No interior delas há um arranjo de proteínas organizadas em filamentos chamadas actina e miosina, os filamentos mais grossos são de miosina e os mais finos de actina, um desliza sobre o outro em ciclos de reações químicas levadas a cabo pelo cálcio e por ATP, a molécula energética. Para que a actina deslize sobre a miosina, uma parte da miosina precisa se encaixa no filamento de actina e puxá-lo, o problema é que exatamente esta parte da actina fica coberta por um outro filamento, a tropomiosina. Ao cair no citoplasma da célula muscular o cálcio se gruda a uma molécula chamada troponina, que arrasta a tropomiosina para o lado, descobrindo o local onde a actina irá se ligar. Actina e miosina se conectam, a miosina dobra a parte da sua estrutura que conecta as duas proteínas e faz a actina caminhar sobre a miosina. Depois, uma molécula de ATP é quebrada para desfazer a conexão e disponibilizar a miosina para repetir o movimento, contraindo ainda mais o músculo da coxa.

Como junções celulares no músculo espalharam o que eu chamei aqui de micro choque por todo o quadríceps, muitas células são contraídas ao mesmo tempo, dando muita força ao chute. A bola foi tão rápida que o goleiro marfinense ergue os braços depois que ela já tinha passado e a bomba do Luis Fabiano explodiu na rede encerrando seu jejum de seis jogos.

Outros dois gols Brasileiros se seguiriam e um vacilo da nossa defesa permitiria umzinho da Costa do Marfim, mas o que importa é que estamos na próxima fase.

Pensamento de Segunda

“Je n’ai pas besoin de cette hypothèse”
“Eu não preciso desta hipótese.”
Jean-Pierre Laplace

Pensamento de Segunda

” A Ciência sempre está errada. Ela nunca resolve um problema sem criar outros dez!”
George Bernard Shaw

O peixe cachimbo grávido

Naquela manhã no consultório psicanalítico

 

ResearchBlogging.org

 

– Ah, que gracinha! Quanto falta para a senhora dar à luz? – Perguntou a secretária novata tentando causar uma boa impressão e interagir com o paciente que acabava de entrar.

– Ora pois! Eu sou macho. Estás a estranhar-me? – O peixe cachimbo respondeu com forte sotaque português e muito mal humor.

A secretária, ligou para a analista: “Doutora, está aqui uma senhora grávida que diz ser macho. Mando entrar?”

– Entre, meu colega d’além mar. – Acolheu-o a psicóloga com um sorriso largo. – Há quanto tempo? Pois vejo que me traz boas novas, está grávido.

O peixe cachimbo entrou no consultório e logo se fez confortável no divã. Era longo o seu histórico de terapia, um caso clássico de crise de identidade, desses de ilustrar livro-texto. A despeito dos anos de terapia o bicho não conseguia quebrar o ciclo de repetir, recordar e reelaborar, talvez não fosse da sua natureza.

– Doutora, até sua secretária me confunde, no estuário todos se põem a rir de mim, caranguejos, camarões, vieiras. Ninguém me dá o devido respeito. Estou farto disto! – Desabafou o peixe cachimbo.

– Sei. E o que o senhor pretende fazer a respeito, Sr. Syngnathus?

– O que eu posso fazer, se nem minha parceira me respeita? – O peixe fez o bico mais comprido do reino animal.

– O senhor se respeita? – Perguntou a analista em tom de desafio.

– Ora pois! É claro que sim. – As nadadeiras dorsais do Sr. Syngnathus agora estavam eriçadas. Após o rompante de ira os longos segundos de silêncio fizeram o peixinho pensar de fato na pergunta à medida que suas nadadeiras baixavam novamente.

– A senhora acha que eu deveria me impor mais? Mas como? A mãe dos filhotinhos que carrego agora é uma fêmea grande, forte, tem quase 3 cm a mais que eu. É prepotente, agressiva. Ela me oprime! Não tem quem se imponha diante dela, espanta a todos os que se aproximam de mim. Na verdade, sei que estão todos a rir de mim dizendo que não sou eu o macho do casal. Só não escuto isso mais constantemente porque ela põe para correr todos os que resolvem criticar nossa relação.

– Então ela te protege vez por outra? – A analista perguntou num tom quase de afirmação.

– Sim, é muito protetora. Lhe adimiro neste ponto, quem me dera saber me impor desta maneira. Quando é assim com os outros não me importo, mas passa que o mesmo modo de lidar com os outros animais do estuário é o jeito dela em casa. Chega a me colocar medo. – Confessou o peixe cachimbo à boca miúda

– Sr. Syngnathus, a relação de vocês é de muita complementaridade, não é? Um é bastante o oposto do outro. Estou certa? – O peixe se restringiu a acenar afirmativamente com a cabeça, meio envergonhado do que assentia.

– O pior é que de uns tempos para cá apareceram mais fêmeas no pedaço. Nunca a vi tão agressiva. Sempre acabava sobrando uma grosseiria para mim. Ela criava confusão com casais a namorar, arrumava casos por aí, até em brigas se envolveu. Eu, por minha vez, só queria saber de romance. – O peixe cachimbo com aquela barriga cheia de filhotes e aquela cabeça cheia de problemas era uma imagem aterradora para a analista.

– O senhor é responsável pela sua vida. Não adianta se queixar, faça por merecer ou aceite a frustração desta relação de vocês. O senhor já considerou mudar-se para um lugar com menos fêmeas, talvez um lugar onde houvesse muito mais mulheres do que homens? – Perguntou a doutora.

Um lampejo de alegria varreu o rosto do peixe cachimbo de opérculo a opérculo e ele abriu o primeiro sorriso desde que a sessão começara.

– A Sra. acha que daria certo? Sabe, vou agora mesmo procurar um novo lugar para ir morar. Faz todo sentido, doutora. Muito obrigado, prometo que irei tentar.

Silva, K., Vieira, M., Almada, V., & Monteiro, N. (2010). Reversing sex role reversal: compete only when you must Animal Behaviour, 79 (4), 885-893 DOI: 10.1016/j.anbehav.2010.01.001