Pensamento de Segunda

Cientista é um aparelho que serve para transformar café em teorias.

Alfred Renyi

 

Pensamento de Segunda

O mundo seria um lugar vazio se pensássemos só em montanhas e rios e cidades, mas conhecer pessoas que sentem e pensam como nós faz da Terra um jardim povoado.

Johann von Goethe

O besouro fratricida

Para minha irmã.

Feliz aniversário.

Besouro crisomelídio da batata

Grande, bonito, saudável? Graças aos irmãozinhos que comeu na infância. Foto de Scott Bauer.

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A secretária não parava de olhar o besouro, primeiro cliente a chegar naquela manhã. Ele tinha duas olheiras sob os olhos compostos e as antenas pendiam desoladamente no alto da cabeça amarela. Ao perceber-se observado ele tentou inutilmente afastar a cara de preocupação. A psicanalista, que havia acabado de chegar para o trabalho, cutucou a atendente e pediu baixinho que parasse de encarar os pacientes. Em seguida chamou para entrar o besouro. Ele nem alçou voo. Arrastou o corpo que parecia mais pesado que de costume com os élitros baixos e um olhar lívido.

-Tive o sonho mais terrível com meus irmãos essa noite! – Declarou sem rodeios o besouro. A terapeuta nada disse. Quer dizer, ela disse que estava muito interessada e que preferia que o cliente narrasse todo o sonho antes que ela se pronunciasse. Mas tudo isso foi transmitido com um olhar consternado e interessado para o ocupante do divã que, sem alternativa, continuou a falar.

-De repente eu estava de volta à folha de batata onde nasci, àquela superfície tenra que aconchegava e deliciava. Sempre adorei comer folhas de batata, sabe, doutora? Então, lá estava eu, recém-saído do meu ovo e cercado dos ovinhos dos meus irmãos. Mas não era o mesmo campo verdejante e seguro onde nasci. No meu sonho eu eclodi num campo devastado, as folhas estavam já todas carcomidas por outros herbívoros e zumbiam no ar as asas e o fedor de percevejos vorazes e outros predadores. Apavorado com a visão daquele campo e a falta de perspectivas para meu futuro tomei a mais drástica das decisões. Comecei a destroçar e devorar os ovos de meus irmãos. – O besouro narrava com tamanho terror que às vezes lhe faltava ar. E prosseguiu.

-Doutora, meu corpo, ainda com forma de lagarta, se atirou sobre os ovos ao meu redor, maxilas em atividade, quebrando, rasgando e devorando meus irmãos. Dos ovos saíam gritos implorando piedade, mas eu os ignorava. Hemolinfa esbranquiçada escorria dos cantos da minha boca e eu gargalhava em meio à destruição de meus irmãos. Foi a coisa mais horrível! Só sosseguei quando todos já estavam estraçalhados ao meu redor. – Ele contava com movimentos frenéticos da hipofaringe e do labro como a analista jamais havia pensado possível.

-Acordei apavorado e não consegui mais dormir. Fiquei pensando em meus irmãos, minha irmã em especial. Quanto tempo não a vejo! Se mudou para tão longe, doutora. Fiquei preocupado com ela. Me senti culpado pelo sonho. Que bobagem, foi só um sonho, não é? Mas fiquei, sabe? Queria falar com ela, saber como estão as coisas. Se eu vou ganhar sobrinhos essa primavera. Sabe, doutora, durante o sonho eu me via comendo meus irmãos e ao mesmo tempo me recriminava, pensava nos meus sobrinhos que eu estava condenando a jamais nascerem. Acho que nessa hora estava já meio dormindo e meio acordado, sabe? Passei o resto da noite em claro. – A psicóloga ainda não havia aberto a boca desde o início da sessão, o que não era bem um problema, mas chegara a hora de intervir.

-Sr. Leptinotarsa, – A doutora não cansava de se surpreender com os nomes de seus clientes. – duas forças habitam os seres vivos:  Pulsão de vida e Pulsão de morte. Entre os besouros da batata o canibalismo de ovos é fazer uso da pulsão de morte, devorando os irmãos de ninhada. Isso é mais comum na pulsão de vida daqueles que estão ameaçados por falta de comida e excesso de predadores. Exatamente o seu enredo onírico.

-Mas como é que esses besouros ficam em paz depois do que fizeram. Eu estou carregando uma tonelada de culpa por ter sonhado com isso. Imagine quem praticou mesmo o canibalismo! – Surpreendeu-se o cliente.

-Olha, nossos sonhos são manifestaçõesdessas pulsões básicas e incontroláveis. A culpa é a censura por atendermos nossos instintos. Portanto, a felicidade está fadada ao fracasso, já que sempre haverá duas forças contraditórias. Só nos resta aceitar uma infelicidade mais branda. Nem imagino a culpa deles, mas não devorar os irmãos também é um problema. Se não comerem, tanto eles quanto os irmãos serão alvos dos predadores antes de tornarem-se adultos. Comendo os irmãos pelo menos eles chegam mais rápido à idade adulta e evitam serem presas dos percevejos. Só sobra o irmão mais velho e toda a plantação só para ele. O que também é uma vantagem na hora de competir por alimento. Sabe como é: “Ao vencedor as batatas.”

-Que coisa triste, doutora. Ainda bem que nascemos na plantação de batatas mais farta que existe.

-Nosso tempo acabou, mas acho que esse assunto também.

A psicanalista ficou em sua escrivaninha enquanto o crisomelídio ia embora, dessa vez voando pesadamente. Talvez pela culpa, talvez pelo exoesqueleto quitinoso. Enquanto isso a doutora pensava em como somos tentados a julgar antes de saber a história de vida de cada um. Mesmo as atrocidades mais graves têm seus motivos.
Collie, K., Kim, S., & Baker, M. (2013). Fitness consequences of sibling egg cannibalism by neonates of the Colorado potato beetle, Leptinotarsa decemlineata Animal Behaviour, 85 (2), 329-338 DOI: 10.1016/j.anbehav.2012.11.013

Pensamento de Segunda

Se as pessoas só são boas porque temem punições ou esperam recompensas, então somos mesmo um bando de infelizes.

Albert Einstein

 

Uma malvácea muito popular

Certos produtos são tão artificiais que esquecemos que têm uma raiz natural em sua composição, mesmo que essa raiz tenha sido abandonada na composição moderna. É o caso do refrigerante mais famoso do mundo. Se você der uma olhadinha na lista de ingredientes dessa bebida verá que um dos principais ingredientes vem da noz de Cola.

A Cola, Cola acuminata, é uma árvore da família Malvaceae, a mesma do algodão, hibisco, baobá e cacau. Suas nozes vêm de um fruto rugoso e duro que contém oito sementes com um invólucro branco, mas vermelhas por dentro. As nozes podem ser secas e trituradas ou fervidas para a extração da cola. Essa árvore cresce até os 25 m na África tropical da Nigéria ao Congo.

De onde vem a noz de Cola? Ilustração de Franz Köhler

De onde vem a noz de Cola? Ilustração de Franz Köhler

A masca da noz de Cola lembra muito a da folha de coca em termos culturais. Revigora, espanta a fome e dizem que até impotência resolve. É usada em rituais que vão da escolha do nome do bebê ao funeral, adivinhos também leem o futuro nas nozes da Cola, mais ou menos como fazem com búzios. Nas tribos, a masca é feita numa grande roda como se faz com o chimarrão no sul. Não é só na cultura ocidental pós-industrial que a Cola é importante!

Hoje é comum produzir o sabor da Cola artificialmente e a extração e comercialização da semente em si perdeu muito interesse. No entanto a noz ainda é cultivada na África e em outras regiões quentes.

Pensamento de Segunda

Apesar de podermos inventar soluções tecnológicas para o problema ambiental, somente uma mudança comportamental poderá nos salvar em longo prazo.

Garrett Hardin

O cervo veado?

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora havia instalado na antessala um equipamento de som ambiente. caixinhas de som bem fracas apenas para quebrar o silêncio e o clima tenso da sala de espera. Fez também uma seleção de bossas, jazzes e até uma levada eletrônica mais lounge que ela gostava. Acontece que a secretária nova insistia em trocar as músicas e colocar algo de seu gosto (duvidoso). Aquele dia a doutora encontrou na antessala seu cliente novo incomodado com o repertório da atendente, que ia de Village People a Barbara Streisand, numa playlist que poderia receber o nome de gay parade.

-Credo, doutora. Essas suas músicas dão sono. Nem aumentar o volume dá com esses alto-falantes fracos que você comprou. – Reclamou a secretária. – O veado do seu próximo cliente já chegou.

-Não sou veado, sou um cervo! – bramiu o cliente, bufando pelas narinas.

-Ele não é veado e isso aqui não é uma danceteria. Por favor, desligue isso! – Respondeu a analista e, transformando a cara sisuda num sorriso sutil virou-se para o cliente. – Bom dia, Sr. Cervus, queira entrar e acomodar-se no divã.

Veados preferem ficar juntos com outros do seu próprio sexo, mas disso a gente já sabia. Foto: Mehmet Karatay

Veados preferem ficar com outros do seu próprio sexo, mas disso a gente já sabia. Foto: Mehmet Karatay

O enorme cervo, um macho garboso, com andar elegante e galhada imponente, entrou e deitou-se. Atrás dele a terapeuta posicionou-se num ponto onde o cervo não enxergava, sob a luz fraca de um abajur alto.

-Doutora, minha fama não está das melhores. Andam dizendo coisas de mim…

-É mesmo? Não estou interessada no que os outros dizem. Quero saber o que você tem a me dizer sobre você. – cortou a terapeuta astuta.

-Doutora, eu sou muito macho! Macho mesmo! Sou o cervo mais macho que existe.

-Interessante. Por que toda essa sua formação reativa? Ser muito macho é a informação mais importante que tem sobre você?

-É sim, no momento é! Ah! Só porque eu só ando com machos, os outros animais ficam me chamando de veado. Ridículo! Eu gosto mesmo de andar com meus amigos, só ligo mesmo para estar com as meninas da minha espécie quando elas estão no cio. Mas isso não quer dizer que sou gay, oras. Eu ando com outros machos se eu quiser. Pronto!

-Tudo bem. Mas qual é o seu desejo? Para que você quer andar com seus colegas?

-Ah, eu e meus amigos sempre vamos para onde tem comida melhor, nos separamos das crianças e dos mais velhos. Ficamos só nós, que mais temos a ver um com o outro. É uma coisa de afinidade e do que é melhor para nós. – Desabafou o cervo abanando as vastas galhadas.

-Sr. Cervus, não se preocupe tanto com o que os outros falam. A sociedade nos impõe mais pressões do que somos capazes de suportar, então seja você mesmo, seja feliz.

E o cervo saiu do consultório caminhando mais confiante sem perceber as Weather Girls fazendo aquela tradicional previsão do tempo. Para trás ficou a psicóloga pensando em como somos manipulados por desejos e pressões que nem nossos são e no tempo que perdemos tentando agradar os outros.

 

Alves, J., Alves da Silva, A., Soares, A., & Fonseca, C. (2013). Sexual segregation in red deer: is social behaviour more important than habitat preferences? Animal Behaviour, 85 (2), 501-509 DOI: 10.1016/j.anbehav.2012.12.018

Pensamento de Segunda

Jamais conte uma mentira que você não possa provar empiricamente.

Millôr Fernandes